29 de novembro de 2010

Princípios metafísicos e princípios lógicos


Antes de tudo, é preciso entendermo-nos a respeito do que seja ciência e do que seja sabedoria.

Ciência é a observação dos fenômenos à luz de princípios. Sabedoria é o conhecimento dos princípios. Às vezes a ciência não estuda os fenômenos à luz direta dos princípios (ou pelo menos dos princípios mais universais) e sim à luz de princípios relativos deles deduzidos, e dos quais se deduzem por sua vez regras para a atividade científica. As regras constituem o método, e é por isso que se diz correntemente que a ciência não é pura observação, mas sim observação "metódica".

"Princípios" em sentido estrito são somente aqueles que não têm antecedentes, e sim apenas consequentes, isto é, aqueles que estão "antes" de tudo o mais (não sendo a palavra "antes" entendida necessária e exclusivamente em sentido cronológico, mas em sentido lógico e ontológico). Assim, a rigor, somente são "princípios" aqueles de ordem estritamente universal, sem limitação de espécie alguma, isto é, os princípios metafísicos, dos quais todos os outros -- os princípios lógicos, por exemplo -- não são mais do que deduções ou aplicações a domínios mais limitados. Estes últimos podem denominar-se "princípios segundos", e as regras da maioria das ciências são deduzidas de princípios segundos, e não diretamente dos universais. [1]

Os princípios caracterizam-se por três marcas: sua necessidade (ou absolutidade), sua antecedência (ou primordialidade) e sua universalidade (seja universalidade em sentido extenso, como no caso dos princípios metafísicos, seja universalidade dentro de um campo determinado, como é o caso dos princípios lógicos).

Podemos classificar os princípios, segundo sua universalidade, em:

Princípios metafísicos e ontológicos;
Princípios lógicos;
Princípios cosmológicos;
Princípios (e regras) das ciências particulares.

Evidentemente, não pode haver contradição entre nenhum desses princípios. É fácil também compreender que os princípios cosmológicos só são  "princípios" em relação a seus consequentes (os conhecimentos cosmológicos deles deduzidos), e não em relação a seus antecedentes (os princípios lógicos, ontológicos e metafísicos de que derivam).

A descoberta dos princípios segundos pode ser feita através da dedução lógica, mas os princípios metafísicos e ontológicos não têm antecedentes, e são, a rigor, chamados por isso de "primeiros princípios".

Não podendo ser descobertos por dedução -- nem, a fortiori, por observação, já que a observação científica requer o concurso dos princípios --, os primeiros princípios são conhecidos por um método próprio, que é o método da sabedoria ou gnose.

Para compreender em que consista este método é preciso ter em mente que a definição mesma de ciência -- observação dos fenômenos à luz de um princípio -- estabelece constituir a ciência uma unificação da multiplicidade. A aplicação dos princípios permite reduzir à unidade de uma lei, ou invariante, toda a extensão de múltiplos fenômenos estudados.

Do mesmo modo, o conhecimento dos primeiros princípios é uma unificação, mas, como acima deles não há outras instâncias a que possamos remeter-nos, a sabedoria é então definida como redução à Unidade primeira (ou, sob outro aspecto, derradeira), acima e para trás da qual nada existe.

Ora, nisto os primeiros princípios diferem de todos os princípios segundos, porque estes podem ser princípios tão somente gnoseológicos, isto é, princípios do conhecer enquanto tal, mas os primeiros princípios não podem admitir nenhuma dualidade, e devem ser, portanto, simultaneamente princípios do conhecer e princípios do ser. A rigor, conhecer e ser nunca podem estar completamente separados, mas, quando se trata de princípios segundos e derivados, podemos conceber tal separação, por abstração e ad hoc, por economia de pensamento, e, no caso dos primeiros princípios, ela seria totalmente contraditória, pois deixaria subsistir uma última franja de dualidade, cuja exclusão é precisamente o que faz com que eles sejam princípios primeiros, e não segundos.

A diferença, portanto, entre ciência e sabedoria, é que a ciência requer apenas um método de conhecer, enquanto que a sabedoria requer um método de ser. Como todos os conhecimentos têm sua validade derivada, em última instância, da conexão entre o conhecer e o ser, todas as ciências, em última instância, derivam da sabedoria.

Por isso, escreve Platão, "o conhecimento de todas as ciências, sem o conhecimento da melhor delas (que é a sabedoria), não somente é inútil como é prejudicial" (Alcibíades II, 144b).

Por outro lado, a não-dualidade do conhecer e do ser requer que se entenda o próprio conhecer como um modo de ser. "Ser homem é conhecer", escreve Frithjof Schuon [2]. E Aristóteles, tomando a palavra "inteligência" como o instrumento da sabedoria, escreve: "A inteligência é mais verdadeira do que a ciência".

Para o sábio ou gnóstico, conhecer é ser, e vice-versa. Isto tem duas consequências: uma prática, outra teórica. A primeira, que ele não pode, na sua própria pessoa cognoscente, admitir hiato e muito menos contradição entre aquilo que ele conhece e aquilo que ele é. Este é o fundamento de toda moral, que pode então ser definida como coesão entre o que se conhece e o que se é (e, por extensão, o que se faz, o que se pensa, o que se sente, etc.). Ou, com diz Platão: "Verdade conhecida é verdade obedecida". A segunda consequência, de ordem teórica, é que todas as modalidades de ser passam a ser entendidas como modalidades do conhecer; por exemplo, as formas existenciais dos entes -- a forma dos planetas, dos anjos, das flores e bichos, entendendo-se forma, evidentemente, em sentido amplo e estrutural, não restrito e visual -- são também suas modalidades de conhecer. De conhecer o quê? A Unidade mesma da qual derivam. Há, por exemplo, modalidades externas e internas de conhecer -- a flor não tem interioridade autoconsciente, e por isso seu conhecimento da Unidade, ou de Deus, consiste e reside na sua forma corporal (e na função correspondente). O homem tem interioridade autoconsciente, e por isso seu conhecimento de Deus não está tanto na sua forma sensível, mas na sua consciência de Deus, e nas consequências existenciais que ele tira dessa consciência.

Tais asserções já constituem por sua vez os princípios de toda cosmologia tradicional.

Uma terceira consequência é que, inversamente, os modos de conhecer são modos de ser, e que, portanto, entre vários seres -- humanos, por exemplos -- que "conheçam" a Unidade segundo várias gradações de integração, absolutidade e relatividade -- podemos discernir várias modalidade ou planos de existência nos quais eles se situam; e como, segundo o adágio escolástico, "para agir, é preciso ser", compreendemos que a essas várias modalidade ou planos existenciais, que correspondem às hierarquias espirituais ou iniciáticas, fazem eco outras tantas modalidades de ação e de presença, que podem estreitar ou alargar as possibilidades de atuação humana desde o estritamente corporal, aparentando-o às pedras e aos vegetais, até o universal que transcende aos próprios anjos. "Senhor, que é o homem, para que te lembres dele, ou o filho do homem, para que o visites? No entanto, fizeste-o pouco menor que os anjos, e o cobriste de nobreza e glória" (Salmo 114).

[1] Isto não deveria fazer maior diferença, mas o fato é que na prática os cientistas se esquecem de que sua ciência deriva de princípios segundos e, portanto, depende de uma metafísica e de uma sabedoria.

[2] De l´Unité Transcendante des Réligions, Chap. IX.

Fonte: Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 23-27.