5 de março de 2016

Viva o preconceito


As pessoas que desejam derrubar todos os preconceitos não se interessam tanto assim pela verdade, mas importam-se muito mais com a sua liberdade – o que vale dizer, uma liberdade concebida como o mais amplo campo para a satisfação de seus caprichos. O ceticismo dessas pessoas varia de acordo com o assunto. Elas acreditam que, ao apertarem o interruptor, a luz se acenderá, mesmo que lhes falte qualquer conhecimento sobre eletricidade. Todavia, um feroz e insaciável espírito investigativo as domina por completo no exato momento em que percebem que os seus interesses estão em jogo – o que significa, mais precisamente, a liberdade ou licença para que possam agir segundo os seus caprichos. Então, subitamente, todos os recursos da filosofia lhes são disponibilizados, e serão imediatamente usados para desqualificar a autoridade moral dos costumes, da lei e da sabedoria milenar.

Derrubar determinado preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito. O preconceito que afirma ser errado criar um filho fora do casamento foi substituído por outro que diz que não há absolutamente nada de errado com isso. A ideia de que não gostar de alguém não constitui base suficiente para xingar esse alguém, o fato de relações sociais toleráveis requererem autocontrole, o fato de viver em sociedade implicar o dever de se submeter a limites – tudo isso são noções que infelizmente não foram inculcadas em nossa atual sociedade como preconceitos.

Algumas pessoas desejam escapar das convenções tanto quanto outras desejam escapar da necessidade de ganhar a vida. De fato, não ser convencional tornou-se para elas uma virtude em si, da mesma forma que a originalidade se tornou hoje uma muleta para aquelas pessoas cujas aspirações artísticas excedem em muito o seu talento. Infelizmente, o desejo de se furtar a uma convenção é, em si mesmo, uma convenção.

A filosofia – ou, talvez, a “atitude” seria um termo melhor para descrevê-la – do individualismo radical instila um preconceito profundo em favor do eu e do próprio ego. A vida passa a ser concebida como uma extensão ilimitada da escolha do consumidor, uma rede em volta do supermercado existencial, de cujas prateleiras diferentes estilos de vida podem ser adquiridos, da mesma forma que se faz com os alimentos industrializados, e sem quaisquer consequências mais profundas ou significativas. Aquela pessoa que se diz contrária a toda e qualquer autoridade é, na verdade, somente contrária a algumas autoridades, aquelas de que desgosta. A autoridade que ela realmente respeita, é claro, é a sua.

Um radicalismo individual como esse tem outro efeito paradoxal: aquilo que começa como busca por um individualismo ampliado ou mesmo total termina com o aumento do poder do governo sobre os indivíduos ao destruir toda a autoridade moral que se coloca entre a vontade individual humana e o poder governamental. Tudo aquilo que não é proibido pela lei será ipso facto permissível. Isso, é claro, torna as leis e, portanto, aqueles que as produzem, os árbitros morais da sociedade. A ausência de qualquer autoridade intermediária entre o indivíduo de um lado e o poder político soberano do outro permite que o último se insinue por entre os mais recônditos lugares da vida diária. A falta de autoridades intermediárias, tais como família, igreja, organizações profissionais etc., nos acostumou a esperar, e aceitar, o direcionamento centralizado de nossas vidas, mesmo quando resulta em absurdidades.

Uma coisa é dizer que este ou aquele preconceito é revoltante ou extremamente danoso, outra coisa é dizer que podemos nos virar sem absolutamente nenhum preconceito. Havia, no passado, operações cirúrgicas que causavam mais danos do que benefícios, e sem dúvida isso ainda acontece em alguns casos, mas certamente não há motivos pelos quais a humanidade devesse abrir mão das vantagens salvadoras da cirurgia por uma questão de princípio.

Se a maioria de nosso conhecimento factual sobre objetos particulares se funda na confiança e na autoridade – pois não é dado a nenhum homem, não importa quão brilhante seja, a condição de viver tempo suficiente para ser infinitamente investigador – por que seria diferente em relação à dicta dos julgamentos morais e estéticos? A vasta maioria dos homens simplesmente não consegue levar a vida como se ela fosse constituída de longas séries de enigmas morais e intelectuais.

Mesmo que não seja possível derivar uma afirmação de valor de uma de fato, é necessário e inevitável que façamos afirmações de valor. Na prática, ninguém vive ou poderia viver sem julgamentos estéticos e morais, e refiro-me àqueles que não podem ser meramente deduzidos dos fatos. Bom e ruim, bonito e feio, estão construídos na estrutura mesma de nossos pensamentos, e não podemos eliminá-los, não mais do que podemos eliminar a linguagem ou o sentido de tempo. Infelizmente, nenhum sistema de proposições éticas, ou mesmo nenhum outro sistema de proposições, pode existir sem pressuposições, isto é, sem preconceitos. Existe um ponto para além do qual a racionalidade, ou o naturalismo, não pode ir, mesmo entre criaturas que foram dotadas de razão pela natureza.

Mas não é verdade que muitos preconceitos são de fato danosos, cruéis, estúpidos e malignos? Certamente que sim. Mas, reitero, não é porque alguns preconceitos sejam danosos que podemos viver sem preconceitos. Todas as virtudes levadas ao excesso se tornam vícios, e se tornam manifestações de orgulho espiritual; o mesmo vale para os preconceitos, inclusive os melhores, e o mesmo valerá para a tolerância. Eu não me dedico a examinar os nossos preconceitos; isso seria ridículo. Temos que ter, ao mesmo tempo, confiança e discernimento para pensarmos logicamente a respeito de nossas crenças herdadas, e a humildade para reconhecermos que o mundo não começou conosco, e tampouco terminará conosco, e que a sabedoria acumulada da humanidade é muito maior do que qualquer coisa que podemos alcançar de forma independente. A expectativa, o desejo e a pretensão de que podemos sair nus no mundo, libertos de todos os preconceitos e preocupações, de modo que toda situação se apresente como algo completamente novo para nós, são em igual medida atitudes tolas, perigosas e nefastas.

Essa pretensão é nociva porque não estaremos apenas enganando os outros, mas a nós mesmos, e desconsideraremos aquela pequena e constante voz dentro de nós. Debates estridentes e agressões virão. O quanto mais insistirmos em público a respeito de coisas que sabemos, ou mesmo suspeitamos, que não são verdadeiras, mais veementes e intransigentes nos tornaremos. O quanto mais rejeitarmos o preconceito qua preconceito, mais difícil será para nós recuarmos das posições que tomamos, e recrudesceremos a fim de provar que estamos livres de preconceitos. Um dogmatismo ideológico será o resultado, e todos sabemos a devastação que um dogmatismo como esse pode provocar.

É preciso ter capacidade de discernimento para saber quando um preconceito deve ser mantido e quanto deve ser abandonado. Os preconceitos são como as amizades: devem ser mantidos em bom estado. Por vezes, os amigos se distanciam e por vezes o mesmo deve acontecer aos homens diante de certos preconceitos; mas a amizade frequentemente se aprofunda com a idade e a experiência, e o mesmo deve acontecer com alguns preconceitos. Eles são aquilo que dão caráter às pessoas, mantendo-as juntas. Não podemos viver sem eles.

Fonte: Theodore Dalrymple, Em Defesa do Preconceito, É Realizações Editora, São Paulo, 2015, trechos selecionados e adaptados.

4 de março de 2016

A desonestidade emocional



"...o sentimental é a pessoa que quer ter o luxo de ter uma emoção sem pagar por ela".
Oscar Wilde

"Travaillon donc à bien penser. Voilà le principe de la morale". [Esforcemo-nos,portanto, para pensar bem. Eis o princípio da moral].
Pascal

Uma importante característica do tipo de sentimentalismo para o qual desejo chamar atenção é seu caráter público. Não mais basta derramar uma lágrima em particular, longe da vista alheia. É necessário fazê-lo, ou seu equivalente moderno, à plena visão do público. Suspeito, ainda que não possa provar, que isso seja em parte consequência de viver num mundo, incluindo um mundo mental, tão amplamente saturado por produtos da mídia de massa. Nesse mundo, aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. Não é real no sentido de que um reality show é real.

A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunham. Essa resposta deve, de maneira geral, ser simpática e afirmativa, a menos que a testemunha esteja preparada para correr o risco de um confronto com a pessoa sentimental e ser acusada de dureza de coração ou de pura e simples crueldade. Há, portanto, algo coercitivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar.

Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições. Não há muito sentido em fazer algo em público se, de fato, ninguém repara. Isso significa que exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam necessárias, se se pretende que elas compitam com outras e sejam notadas. Os tributos florais ficam maiores; a profundidade de um sentimento é medida pelo tamanho do buquê. O que conta é a veemência e o volume expressivo.

Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não coagem apenas os transeuntes ocasionais, como que os sugando para um fétido pântano emocional, mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas, começam a afetar as políticas públicas. O sentimentalismo permite que o governo jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa.

Assim, há um consenso universal de que a expressão da emoção deveria ser consoante tanto com a própria emoção quanto com a situação social, ainda que não haja acordo quanto ao ponto preciso em que essa expressão se torna excessiva. Isso em si não deveria nos preocupar, nem lançar dúvidas sobre a ideia de uma expressão excessiva da emoção, assim como o fato de não haver um consenso universal a respeito do que constitui um homem alto não deve lançar dúvidas sobre a existência de homens altos.

Sobre o razoável pressuposto de que a emoção está sob o controle consciente, o grau em que ela é expressa é, portanto, uma questão moral. Aquilo que é permissível e até louvável entre pessoas íntimas e confidentes é repreensível entre estranhos. De fato, o desejo ou a exigência de que todas as emoções sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em todos os momentos destrói a possibilidade mesma de intimidade. Se o mundo inteiro é seu confidente, então ninguém é. A distinção entre o privado e o público é abolida, e a vida, por conseguinte, fica mais rasa.

Mas não é só a expressão da emoção que deve ser disciplinada, é a própria emoção que deve ser sujeita à disciplina.

Perguntar quanta emoção é demais – na expectativa de que a resposta seja que nunca podemos dizer e, portanto, que nunca pode haver emoção demais – presume uma teoria quase hidráulica. Isso equivale a dizer que uma pessoa tem dentro de si certa quantidade de emoção, que se acumula (e a pessoa não controla a quantidade), e que, no que diz respeito à expressão, ela deve expressar-se de algum jeito – para dentro, ou, o que seria preferível segundo as maneiras modernas de pensar, para fora.

Na medida em que os homens diferem biologicamente pelo temperamento, seja pela operação da herança genética ou de alguma outra variável biológica, a teoria hidráulica contém um elemento de verdade. Alguns, sem dúvida, nascem fleumáticos, ao passo que outros nascem coléricos. Contudo, a ideia de que homens são, na questão das emoções que sentem, meros prisioneiros de seus dotes naturais é muito simplista e redutora. O apetite cresce com a alimentação; a emoção também cresce com sua expressão. Em outras palavras, o caráter de um homem é em parte obra dele mesmo, e aquilo que de início demanda esforço e autocontrole acaba se tornando uma disposição. Nem a emoção nem a expressão da emoção se justificam em si mesmas, ainda que às vezes se creia que sim, crença essa que é simplisticamente sentimental.

Sem dúvida, todos nós caímos no sentimentalismo às vezes sem que ninguém sofra nenhum grande mal. Talvez faça até bem. Mas aquilo que é inofensivo em privado não é necessariamente inofensivo, muito menos benéfico, em público; e aqueles que acham que sua conduta privada e pública deveria ser sempre a mesma, por medo de na diferenciação introduzir a hipocrisia, têm uma visão da existência humana que carece de sutiliza, de ironia e, sobretudo, de realismo.

O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ela seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil  (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade.

A necessidade de julgamento implica que nossa situação no mundo, assim com a de outras pessoas, é quase sempre incerta e ambígua, e que nunca se pode fugir da possibilidade de erro. Em nome de uma vida mental quieta, portanto, queremos simplicidade, não complexidade: o bem deveria ser inteiramente bom, o mal inteiramente mau; o belo inteiramente belo, e o feio inteiramente feio; o imaculado inteiramente imaculado, e o estragado inteiramente estragado; e assim por diante.

Hoje se considera que controlar a expressão das emoções para não ser inconveniente nem causar constrangimentos aos outros, e em nome do respeito próprio, é algo que está longe de ser admirável. Pelo contrário, é algo considerado psicologicamente nocivo ao eu, e uma traição para com os outros.

É psicologicamente nocivo ao eu porque a repressão inevitavelmente resulta em efeitos prejudiciais depois: afinal, a emoção é um fluido que, como todos os fluidos, não pode ser comprimido e, portanto, vai manifestar-se de algum jeito. Por exemplo, aqueles que não fazemo devido luto por um ente querido que se perdeu, isto é, que não se expressam com soluços, lágrimas e choros, ficarão seriamente deprimidos um pouco depois na vida; e aqueles que não expressam sua raiva têm mais chance de sofrer ataques do coração ou de ter câncer. A agressão não expressada contra os outros inevitavelmente se transforma em agressão direcionada para si mesmo.

Ocultar as próprias emoções é traiçoeiro com os outros porque implica uma desconfiança deles, uma falta de confiança em sua capacidade de compaixão. O ocultamento é furtivo, dissimulado, desonesto e culpado; o homem bom nada tem a esconder, sua vida é um livro totalmente aberto. Na verdade, quanto melhor ele for, mais aberto ele é: idealmente, devíamos viver num mundo de pleno fluxo de consciência, em que dizemos sem reservas tudo aquilo que pensamos.

A exigência de que a vida seja vivida assim abertamente é impossível. A maioria de nós provavelmente seria linchada em minutos se decidíssemos expressar em público cada ideia que nos vem à mente. Porém, só porque uma demanda ou um ideal é impossível de ser posto em prática, isso não significa que não tenha influência ou importância. A expectativa de que as pessoas expressem suas emoções ou enfrentem o risco de que não acreditem que elas têm emoções ou enfrentem o risco de que não acreditem que elas têm emoções na verdade inibe o exercício da imaginação, e toda faculdade que não é usada logo se atrofia. Por que fazer um esforço para imaginar quando se espera que tudo seja explícito? Porém, como a vida não pode ser vivida com tudo explicitado, isso significa que nossas simpatia e empatia por outras pessoas diminuem com a expressão da emoção em vez de aumentar – ao menos quando ela se torna excessivamente rotineira ou extravagante. Um homem que exclama “Caramba!” uma vez na vida transmite mais com essa palavra do que um homem que use continuamente expressões muito mais vulgares. Como todas as moedas, a da expressão emocional pode ser inflada e depreciada; e, outra vez, como no caso da moeda, o que é ruim afasta o bom.

É essencialmente tirânica a expectativa, que chega à exigência histérica, de que as pessoas expressem suas emoções em público após uma experiência traumática. Ela não reconhece que as pessoas são, por natureza, diferentes umas das outras; de acordo com essa exigência, todos devem conformar-se com um único padrão de conduta ou enfrentar o risco de serem considerados desumanos, esnobes ou emproados.

A expressão pública de uma emoção profunda, ou de uma emoção supostamente profunda, é intrinsecamente coercitiva. Isso não equivale a dizer que ela nunca é adequada, mas apenas a dizer que há a questão da adequação. Quando alguém expressa uma emoção profunda, ou quando uma emoção bem menos forte é expressa en masse, espera-se que todo observador tenha algum tipo de participação ou de reação. É isso que se espera. Normalmente, tentamos consolar aquele que julgamos ter boas razões para seu pesar manifesto; congratulamos aquele que está alegre por ter recebido excelentes notícias. Quanto mais próxima for nossa relação com a pessoa que expressa a emoção forte, mais próxima de sua emoção costuma ser nossa própria reação, ainda que haja circunstâncias excepcionais em que não seja assim.  Se permanecermos como pedra diante de uma pessoa num estado de grande emoção que devidamente julgamos ser genuína, e não damos absolutamente nenhum sinal de nos comovermos com ela, seremos suspeitos de não ter coração.

É lugar-comum afirmar que o sofrimento é intrinsecamente subjetivo. Em outras palavras, sua situação é abominável se você disser que é. À primeira vista, essa doutrina pode parecer profundamente imaginativa e compassiva, mas a realidade é bem diversa: ela é, ou pelo menos pode ser, uma máscara para a mais completa indiferença para com o sofrimento alheio. Ela dá a entender que todo sofrimento deve ser considerado a partir da própria estimativa do sofredor, o que significa que sofre mais quem expressa o sofrimento com mais força ou, pelo menos, com mais veemência. Não importa qual seja a origem do sofrimento. Se não podemos julgar a afirmação de sofrimento de uma pessoa contrastando-a com sua situação, comparando-a, por exemplo, com a situação de outra porção da humanidade, então não deixamos nada para a imaginação e não precisamos dar um salto de empatia: baseamo-nos puramente naquilo que é declarado. Não temos qualquer noção do que seja sofrer em silêncio; e, ao mesmo tempo, somos obrigados a tomar parte na autopiedade de todo mundo. Mal chegaria a surpreender se, a fim de atrair a atenção de nossa simpatia, as pessoas se sintam obrigadas a declarar sofrimentos inauditos, mesmo a partir das frustrações e desapontamentos mais banais e ordinários – e, na verdade, inevitáveis, que são a consequência da existência humana. Aqueles que em voz alta declaram sofrer muito por razões triviais acabam sofrendo mesmo. A imaginação alinha a realidade. Ademais, a apropriação do sofrimento alheio para ampliar a escala e a importância do sofrimento próprio é hoje um lugar-comum. É uma tendência internacional: a desonestidade emocional não conhece fronteiras.

Quando reivindicações falsas da condição de vítima se tornam frequentes, elas acabam servindo para reduzir a simpatia por aqueles que realmente sofreram e para induzir um estado de cinismo.

Por fim, cabe dizer que o desejo ou a ânsia de se transformar numa vítima tornou-se tão grande que hoje as pessoas afirmam ser vítimas de seu próprio mau comportamento. Como todo acontecimento é causado por algo, segue-se que todo comportamento que leva a consequências infelizes ou indesejadas deve ter uma causa; e, como uma escolha é também um acontecimento, ela também deve ter uma causa. Porém, como ninguém sabe a origem de suas próprias escolhas, todos são vítimas de circunstâncias além do próprio controle. Não é preciso dizer que essa lógica se aplica apenas ao que precisa ser justificado, e não apenas explicado. O sofrimento se tornou a marca da condição de vítima, não importando sua origem. Não se faz qualquer distinção entre o sofrimento que é autoinfligido e aquele que é inteiramente fortuito (e muito menos entre todas as sutis gradações intervenientes). Fazer a distinção seria julgar, o que se julga a pior coisa que se pode fazer, e por isso ninguém faz julgamentos dessa natureza.

A sugestão de que vítimas de comportamentos maldosos às vezes são cúmplices dele parece cruel a muitas pessoas, quando na verdade é sentimental ou aviltante não reconhecer isso. Esse não reconhecimento transforma adultos em bonecos, em meros simulacros de seres humanos, sem pensamentos ou atos próprios, sugerindo que eles nada podem fazer para ajudar a si mesmos, e dá poderes ilimitados àqueles que afirmam, no mais das vezes falsamente, serem seus protetores e salvadores. E, estranhamente, a recusa de ver o papel que as pessoas desempenham em sua própria ruína leva, na prática, a uma total insensibilidade e indiferença a seu sofrimento. Contudo, o hábito de evitar o juízo moral é, em todo caso, a máscara da indiferença e da insensibilidade. É uma impossibilidade psicológica ser igualmente compassivo com todos os sofredores do mundo, e a exigência de que o sejamos é, na verdade, a exigência de que não o sejamos com ninguém.

A desonestidade emocional na criação dos filhos

Será que há alguma razão inteligível para que as crianças e seus pais, que, pelos padrões de todas as gerações anteriores, gozam de excelentes condições de saúde física e de acesso a fontes jamais concebidas de conhecimento e de entretenimento, estejam tão ansiosas, agressivas e violentas? Há sim, e muitas delas têm sua origem no sentimentalismo, o culto do sentimento.

Os românticos enfatizavam a inocência e a bondade intrínseca das crianças, em contraste com a degradação moral dos adultos. Assim, o jeito de criar adultos melhores, e de assegurar que essa degradação não acontecesse, era encontrar o jeito certo de preservar sua inocência e sua bondade. Educar corretamente passou a ser impedir a educação.

Junto com sua inocência e com sua bondade estavam – ou lhes eram atribuídas – outras qualidades, como curiosidade inteligente, talento natural, imaginação vívida, desejo de aprender e capacidade de fazer descobertas por conta própria. Se a evidência de que as crianças não eram iguais sob todos os aspectos era forte demais para ser absolutamente negada, em seu lugar foi posta a ficção de que todas as crianças eram dotadas de ao menos um talento especial, e que, assim, eram iguais – e claro que todos os talentos seriam de igual importância.

A teoria educacional romântica, a que comprometidos pesquisadores subsequentemente deram a aura de ciência, está repleta de absurdos que seriam deliciosos momentos de riso caso não tivessem sido levados a sério e usados como base de uma política educacional que empobreceu milhões de vidas. A relutância daqueles que possuem inclinações românticas em reconhecer que havia algo profundamente errado com um sistema educacional que deixava uma grande proporção do povo incapaz de ler direito ou de fazer contas simples provavelmente deriva de sua falta de vontade de abandonar sua mentalidade pós-religiosa, a ideia de que, não fosse pelas deformações da sociedade, o homem é bom e as crianças nascem em estado de graça.

Hoje em dia, é comum que se pense que ter uma opinião sobre um assunto, algo que é ativo, é mais importante do que ter qualquer informação sobre aquele assunto, que é passivo; e que a veemência (sentimento) com que se sustenta uma opinião é mais importante do que os fatos (conhecimento) em que ela se baseia. Claro que os fatos não são tudo. É comum que as pessoas mais bem informadas sobre um assunto possam ignorar totalmente seu cerne, ao passo que as pessoas menos informadas o apreendam imediatamente. Contudo, o desenvolvimento do senso de proporções que possibilita esse feito demanda uma mente bem fornida de conhecimento de mundo, tanto implícito quanto explícito. Uma mente vazia de todos os fatos não está exatamente capacitada para enxergar qualquer questão em perspectiva.

O triunfo da visão romântica da educação foi duplamente desastroso por ter coincidido com o triunfo da visão romântica das relações humanas, particularmente das relações familiares. Essa visão é mais ou menos assim: sendo a felicidade o objetivo da vida humana, e sendo óbvio e patente o fato de que muitos casamentos são infelizes, é hora de basear as relações humanas não em bases extemporâneas e antirromânticas como a obrigação social, o interesse financeiro e o dever, mas em nada além de amor, afeto e inclinação. Todas as tentativas de estabilidade baseadas em qualquer coisa que não seja o amor, o afeto e a inclinação são intrinsecamente opressoras e devem, portanto, ser descartadas. Uma vez que as relações – especialmente aquelas entre os sexos – se baseiem apenas no amor, toda a beleza da personalidade humana, até agora tapada pelas nuvens do dever, da convenção, da vergonha social e afins surgiria como uma coruscante libélula no verão.

Afirmando querer trazer um mundo só de alegrias, sem tristezas, os intelectuais quase sistematicamente denegriram a família, tomando seus piores aspectos pelo todo e usando a reforma (muitas vezes, deveras necessária) como pretexto para a destruição.

O afrouxamento dos laços entre os pais dos filhos, não importando como foram forjados, teve consequências desastrosas tanto para os indivíduos quanto para a sociedade. Assim, obviamente, é preciso ser um intelectual treinado para ser capaz de negá-los. Ninguém pode duvidas seriamente de que sob aquilo que hoje pode ser chamado de ancien régime das relações sexuais – em que a normalidade era considerada o casamento monogâmico – havia frustração, infelicidade e hipocrisia. Muita coisa era varrida pra baixo do tapete; não apenas muita coisa acontecia sem ser observada, como também havia uma disposição, muitas vezes difícil de distinguir da necessidade, de passar por cima do óbvio. O divórcio e a separação eram a exceção, não a regra.

Por outro lado, um realista, mas não um sentimental, jamais ignoraria que o único modo de eliminar a hipocrisia da existência humana é abandonar todo e qualquer princípio; e que para os seres humanos, com suas mentes extremamente complexas, que mesmo assim não são capazes de compreender (porque nenhuma explicação de nada chega a ser definitiva) uma única ação sua, é impossível viver de maneira totalmente aberta. A crítica de uma prática porque ela demanda hipocrisia e ocultação, portanto, não é de modo algum uma crítica. A questão, na verdade, deveria ser: que prática e que tipos de hipocrisia e de ocultação são menos nocivos ao bem-estar humano? A resposta ao caos afetivo que a nova prática trouxe cai em dois padrões principais, que no entanto não são de todo mutuamente excludentes, a saber, de um lado, a indulgência excessiva e, de outro, a negligência e o abuso.

Obviamente, os pais estão aprisionados pela ideia romântica de que, parafraseando Blake, é melhor matar uma criança no berço do que permitir que ela cultive desejos sem tentar realizá-los. Essa ideia, parvamente sentimental, com sua recusa cega de ver que a realização dos desejos às vezes pode levar precisamente ao assassinato da criança no berço, para nem falar de outros horrores, é hoje bastante disseminada. Os pais de crianças a quem nada foi negado ficam sinceramente chocados quando elas se mostram egoístas, exigentes e intolerantes com a mais mínima frustração.

O outro lado da moeda do excesso de indulgência são a negligência agressiva e a violência. Aquele que promove pais e mães postiços na sociedade promove a negligência com as crianças e a violências contra elas. Aqueles adultos que formam e rompem casais como vidro sendo estilhaçado por uma pedra estão eles mesmos agindo a partir da teoria sentimental de que desejos tolhidos são excessivamente perigosos. A extrema fragilidade e friabilidade das relações entre os sexos, combinada com o desejo persistente pela posse sexual exclusiva do outro leva, não de maneira antinatural, a muito ciúme, que em si é a causa mais comum e mais forte da violência entre os sexos.

A maioria dos homens acha que os outros homens são como eles, e em qualquer ambiente social isso será provavelmente mais ou menos verdadeiro; assim, se eles forem sexualmente predatórios e se, como costuma ser o caso, eles “pegaram” a parceira sexual de seu melhor amigo, eles supõem que todos à sua volta, incluindo os amigos ou supostos amigos, estão empenhados em agir da mesma maneira.

Em suma, a visão sentimental da infância e das relações entre os sexos tem as seguintes consequências: deixa muitas crianças incapazes de ler adequadamente e de realizar cálculos simples. Isso, por sua vez, resulta em encerrar essas crianças nas condições sociais em que nascem, porque a incapacidade de ler, e uma educação básica de má qualidade, é quase (ainda que talvez nem tanto) impossível de ser consertada posteriormente. Não apenas isso significa que talentos possam ser desperdiçados e que crianças e adultos inteligentes possam ficar profundamente frustrados, como também reduz o nível geral de cultura na sociedade. A ideia de que as relações humanas devem ser permanente e apaixonadamente felizes, e, portanto, que todo obstáculo social, contratual, econômico e de costumes à consecução desse fim deve ser removido, assim eliminando todas as fontes de frustração e de motivos para a hipocrisia, leva ao excesso de indulgência, à negligência das crianças e à violência contra elas, e também a um aumento nos níveis de ciúme, a mais forte de todas as motivações para a violência entre os sexos.

A visão romântica e sentimental dos aspectos mais importantes da existência humana está, portanto, intimamente conectada à violência e à brutalidade da vida cotidiana. Ainda se deve observar que uma das consequências da adoção geral da visão romântica e sentimental da existência humana é a perda da clareza dos limites entre o permissível e o não permissível; afinal, a própria vida decreta que nem tudo é ou pode ser permissível. Contudo, a perda da clareza dos limites causada pela adoção de uma visão impossível como se fosse verdadeira, e a consequente recusa dos indivíduos em aceitar limitações a suas próprias vidas impostas por forças extemporâneas, isto é, forças que independem de sua vontade ou de seus caprichos, como as convenções sociais, os contratos e coisas afins, significa que a incerteza se torna não o terreno da especulação intelectual, mas da maneira mesma como a vida deve ser vivida. A incerteza, por meio da reação contra ela, gera intolerância e violência.

Fonte: Theodore Dalrymple, Podres de Mimados, É Realizações Editora, São Paulo, 2015, trechos selecionados e adaptados.

26 de fevereiro de 2016

Casamento e vida familiar


Casamento

Você passará por muitas dificuldades na vida. Chuvas de problemas cairão em você. Preocupações o cercarão e manter sua vida cristã não será fácil. Mas não se preocupe. Deus o ajudará. Faça o que estiver ao seu alcance. Você consegue ler um livro espiritual por cinco minutos? Então leia. Você consegue rezar por cinco minutos? Reze. E se não conseguir por cinco, reze por dois minutos. O resto é com Deus.

Quando você enfrentar dificuldades no casamento, quando perceber que não está progredindo na sua vida espiritual, não se desespere. Mas também não se contente com qualquer progresso que porventura já tenha obtido. Eleve seu coração a Deus. Imite aqueles que entregaram tudo a Deus e faça o que puder para ser como eles, mesmo que tudo o que consiga seja desejar em seu coração ser como eles. Deixe a ação para Cristo. E quando avançar dessa forma, você verdadeiramente sentirá o propósito do casamento. Senão, assim como um cego perambula por aí, você também vai acabar perambulando na vida.

Mas então qual o propósito do casamento? Vou lhe dizer três dos principais propósitos. 

Em primeiro lugar, o casamento é um caminho de dores. O casamento é uma jornada em conjunto, um compartilhamento de dores e, claro, de alegrias. Mas normalmente são seis acordes de nossa vida que soam tristes e apenas uma que soa alegre. Pensar que o casamento é uma estrada para a felicidade é adulterar seu verdadeiro sentido, é como negar a cruz. A alegria do casamento está no fato de que marido e mulher encostam seus ombros na roda e, juntos, rolam ela montanha acima. “Você nunca sofreu? Então você nunca amou”, dizia um poeta. Só quem sofre pode amar de verdade. Eis porque a tristeza é uma característica necessária ao casamento. Assim como o aço é forjado na fornalha, assim também o marido e a mulher são forjados no fogo das dificuldades do casamento.

Em segundo lugar, o casamento é uma jornada de amor. Dizer “sou casado” significa dizer “não posso viver um único dia, nem mesmo alguns momentos, sem a companheira da minha vida”. O casal troca alianças exatamente para mostrar que, em meio às tormentas da vida, permanecerão unidos. Cada um tem uma aliança colocada no dedo do qual corre uma veia direto para o coração justamente para demonstrar que o cônjuge está inscrito em seu próprio coração. O aspecto mais fundamental do casamento é o amor, e o amor nada mais é do que a união de dois em um. Deus abomina a separação e o divórcio. O que Ele quer é uma unidade inquebrantável (cf. Mateus 19:33-9; Marcos 10:2-12).

Em terceiro lugar, o casamento é uma jornada para o céu, um chamado de Deus. Por exemplo, o ícone é um mistério. Quando veneramos um ícone não estamos venerando a madeira ou a pintura em si, mas o Cristo, a Mãe de Deus ou o santo que está ali misticamente retratado. A santa cruz é um símbolo do Cristo, ela contém Sua presença mística. O casamento também é uma presença mística, exatamente como o ícone e a cruz. É o Cristo, portanto, que está no coração do mistério e no centro da vida do casal. Quando você vislumbra seu casamento, seu marido, sua esposa, o corpo de seu cônjuge, quando você vê seus problemas, tudo o que está em sua casa, saiba que tudo isso são sinais da presença de Cristo. Todas essas coisas são as sombras do Cristo, são coisas que revelam que Ele está conosco.

O casamento é um movimento, uma progressão, uma jornada que termina no céu, na eternidade. À primeira vista parece que o casamento é a união de duas pessoas. Mas na verdade é a união de três pessoas. O marido se casa com a mulher, a mulher se casa com o marido, mas os dois juntos também se casam com Jesus Cristo. Portanto, os três tomam parte no mistério, e os três permanecem juntos ao longo da vida. – Arquimandrita Emiliano do Mosteiro de Simonopetra, Monte Athos

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Não são paredes nem móveis refinados que constituem um lar. Os milionários que moram em magníficas mansões talvez nunca tenham visto um lar. Mas onde há bons relacionamentos, onde o amor une os membros da família entre si e a Deus, aí sempre haverá felicidade. Pois os bons relacionamentos são o céu em qualquer lugar em que estejam. Monotonia e miséria não existem onde há amor. Mas a lareira do amor deve ser mantida aquecida e viva com a doce lenha do sacrifício. Nosso Senhor, ao nos ensinar a arrancar o “eu” de nossas vidas, nos ensinou o segredo da felicidade: é aquilo que os santos chamam de êxtase da autodesatenção. Pois o amor divino sempre é modesto, busca sempre dar em vez de receber, servir em vez de ser servido, amar em vez de ser amado. E a tudo sacrificar pelo bem do amado.

Vida familiar

Disse São João Crisóstomo: “É a total desatenção dos pais que causa a desordem que faz com que nossa sociedade sofra. Observem com atenção o que seus filhos fazem, seus relacionamentos e seus apegos, e não esperem piedade de Deus se vocês não cumprirem esse dever”. Não se esqueçam: Deus os colocou como cabeças e mestres de suas famílias. É seu dever observar, e observar continuamente o comportamento de seus filhos.

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O Ancião Porfírio deu um dos melhores conselhos que eu, uma indigna mãe de muitas almas, já vi: “Se você tem um filho de caráter rebelde, o que quer que você diga a ele, diga antes a Deus. Ajoelhe-se perante Deus e por meio da graça de Deus suas palavras serão transmitidas a seu filho... Outra criança pode até ouvir o que você diz, mas a verdade é que ela esqueça muito facilmente o que ouve. Portanto, ajoelhe-se e peça a graça de Deus para que suas palavras maternais caiam sobre solo fértil e deem frutos. Não pressione seus filhos. Não importa o que queira dizer a eles, diga com suas orações. Os filhos não ouvem com ouvidos. Eles só vão ouvir o que queremos lhes dizer quando a graça divina estiver presente e os iluminar. Quando quiser dizer algo a seu filho, diga à Mãe de Deus e ela fará todo o trabalho. Suas palavras se transformarão em um abraço espiritual, as quais abraçarão seus filhos e os motivarão. Mas nossas orações têm de ser fortes, vivas. Sempre conseguimos bons resultados quando rezamos com fé e confiança”.

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O rigor é um elemento essencial no trabalho pedagógico. Porém, ele tem de ser dosado de maneira consistente para que não se transforme em mera grosseria; mas também não deve deixar a impressão de que é apenas ameaça vazia. Bater nos filhos continuamente, portanto, não é a maneira correta de castigar. A criança acaba se acostumando com os castigos e nem por isso fica mais sábia. O método mais apropriado para castigar é ameaçar de castigar e, de vez em quando, colocar a ameaça em prática para que a criança tema de fato os castigos e não pense que a ameaça são só palavras ao vento. O contínuo rigor não deve ser permitido porque o homem, por natureza, precisa de indulgência e tolerância.

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Quando me perguntam como pode o amor de Deus permitir que crianças pequenas morram, eu respondo assim: “Deus designou os pais para criarem os filhos dEle, e não os filhos deles. As crianças são de Deus, não dos pais. Muitas vezes Deus faz, com a morte das crianças pequenas, o mesmo que os pastores fazem com as ovelhas rebeldes que insistem em não se juntar ao rebanho: ele agarra o cordeirinho para forçar a ovelha rebelde a vir a ele”. – Ancião Epifânio Theodoropoulos (+1989)

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As crianças que adormecem no Senhor em tenra idade vão direto para o paraíso, como anjos. E quando os pais veem a falecer, são esses pequenos anjos que os recebem no céu com velas acesas. Os pais são espiritualmente recompensados pelos seus filhos-anjos. – Ancião Paísio, o Atonita (+1994)

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A dor suaviza o coração e dele remove sua dureza. Na medida em que o coração é suavizado, o terreno se torna apto para receber as sementes do verdadeiro arrependimento e da correção genuína. – Santo Ignácio Brianchaninov (+1867)

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Em geral os pais são os culpados pelo mau comportamento dos filhos. O comportamento deles não melhora mediante reprimendas, disciplinas ou crueldades. Se os pais não buscam uma vida de santidade e se não se esforçam na batalha espiritual, graves erros acabam sendo cometidos e transmitidos para seus filhos. Se os pais não vivem uma vida santa e não demonstram amar um ao outro, o diabo tormenta os pais com as reações de seus filhos. Amor, harmonia e entendimento entre os pais é do que os filhos precisam. Isso lhes dará a verdadeira segurança de que precisam.

O comportamento dos filhos é diretamente proporcional ao estado dos pais. Quando os filhos são vítimas do mau comportamento que os pais demonstram entre si, eles perdem a força e o desejo de progredir em suas vidas. Suas vidas tornam-se fracas, fajutas, e o edifício de suas almas está sempre prestes a desmoronar.

Vocês, pais, devem rezar silenciosamente a Cristo com os braços erguidos e abraçar seus filhos misticamente. – Ancião Porfírio (+1991)

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Quando há um incêndio na casa, ninguém diz “Nossa, que fogo lindo!”, mas imediatamente pede ajuda o mais rápido possível. Quando o fogo das paixões começa a irromper nos filhos, ameaçando-os temporal e eternamente, como é possível que fiquemos apenas observando? Portanto, vocês, pais, estejam sempre atentos e não deixem de notar o mais mínimo sinal de maldade, mesmo na mais tenra idade – pois os defeitos, que são inconscientes em princípio, tornar-se-ão conscientes mais tarde. Pois tais são as consequências miseráveis do pecado ancestral. – Bispo Irineu de Ekaterinburg (+1994)

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A teimosia é tão contrária à Ortodoxia que acaba bloqueando o crescimento espiritual. É responsabilidade dos pais impor sua vontade sobre a criança, mesmo nos mínimos detalhes, mesmo nas áreas aparentemente mais insignificantes da vida da criança.

A vontade dos pais deve se impor em todos os passos da vida da criança – claro, de maneira geral. Do contrário, o comportamento da criança pode facilmente se corromper. Quando se acostuma a fazer sua própria vontade, a criança sempre teima em não obedecer aos pais, mesmo nas pequenas circunstâncias. O pescoço não vira, as mãos e os pés não se movem, e os olhos nem mesmo desejam olhar conforme lhes é ordenado.

A mãe deve ser forte e olhar para seu filho sob o ponto de vista do que é melhor para sua alma eterna. Ele deve:

(1) Insistir com firmeza que todas as ordens que der ao filho, mesmo as mais aparentemente insignificantes, sejam obedecidas. Se a obediência não vier, consequências imediatas e desagradáveis lhe sucederão.

(2) Ensinar a criança a respeitar a propriedade das outras pessoas. Isso não apenas lhe conferirá certa humildade (não sou o centro do universo, não é tudo que me pertence), mas tornará a criança mais confiável em situações onde não esteja sob supervisão.

(3) Ensinar a criança a pedir permissão para fazer as coisas.

Permissividade não é bondade. A criança que desde pequena convive com a mãe tende a querer lhe agradar. A tenacidade e a rebeldia não fazem a criança feliz, mas em verdade não passam de traços da humanidade decaída. – Presbítera Juliana Cownie

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Os pais cujos filhos apresentam retardamento mental não devem se sentir tristes por isso, pois suas almas já estão salvas. Na verdade, eles deveriam estar felizes, pois seus filhos, sem esforço algum, merecerão o paraíso. O que mais seus pais poderiam desejar a seus filhos? Se eles encararem o defeito de seus filhos sob um ponto de vista espiritual, verão que eles também foram beneficiados e recompensados por Deus. – Ancião Paísio, o Atonita (+1994)

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Cansada de lavar roupa? Cuidar dos filhos e da casa é um chamado de Deus. Os afazeres domésticos são uma bênção para nós e nossa família. Até mesmo lavar roupa é uma atividade abençoada – sem filhos, sem roupas. O que seria de nossas vidas sem eles? Portanto, na medida em que você lava e passa cada peça de roupa, reze “Senhor, tem piedade do (nome do dono da roupa)”. Isso vale para as roupas do seu marido, dos seus filhos e suas também. “Senhor, tem piedade de mim”. Isso acaba santificando nosso tempo e trabalho. Também ajuda a adquirir paz e oração incessante.

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As alegrias mundanas não confortam a pessoa espiritual. Na verdade, elas cansam. Se você colocar uma pessoa espiritual em uma casa mundana ela não se sentirá confortável. Mesmo uma pessoa secular não encontra descanso em uma casa assim. Na verdade, o que se sente é apenas prazeres superficiais, externos. No fundo, em seu coração, não há prazer, apenas sofrimento.

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É muito importante que haja uma pessoa na família que reze verdadeiramente. A oração atrai a graça de Deus e todos os membros da família a sentem, mesmo aqueles cujos corações se endureceram. Reze sempre. – Ancião Tadeu de Vitovnica (+2002)

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Certa vez queixei-me com uma abadessa que ser mãe e ter uma vida de oração é muito difícil. Ela disse: “Ora, é claro que é difícil! Você queria o quê? Que os demônios jogassem chocolate para você?!”

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O que entra nos ouvidos acaba no coração e na alma. A maioria das pessoas já ouviu falar que o rock não passa de música satânica e que faz mal para nossos filhos, mas e quanto às “músicas românticas”, essas que estão sempre nas “paradas de sucesso” e que falam como ele a ama, como ele a amou, como ele quer ser amado por ela, como ela partiu seu coração etc. etc. etc. Essas músicas parecem inocentes, mas na verdade elas rastejam sorrateiramente para dentro da mente do ouvinte e acaba fazendo com que a pessoa deseje esse tipo de amor passional, fantasioso e ilusório. O verdadeiro amor é aquilo que sobra depois que a paixão vai embora. Essas canções só servem para perturbar o curso natural do casamento. A música pop passa uma falsa imagem de “amor” e não deve ser programada nas mentes e corações de nossas inocentes crianças.

Fonte: Orthodox Christian Parenting, compilado por Marie Eliades, Zoë Press, EUA, 2013, trechos selecionados. Os trechos sem autoria são de Marie Eliades.

18 de fevereiro de 2016

A frivolidade do mal


Questões comportamentais

É preciso dizer algo a respeito do termo “depressão”, que eliminou quase por completo o termo “infelicidade” ou mesmo o seu conceito na vida moderna. Dos milhares de pacientes que tratei, apenas dois ou três disseram que eram infelizes, todos os outros alegaram estar deprimidos. Essa mudança semântica é altamente significativa, pois implica que a insatisfação com a vida é em si patológica, uma condição médica, e que seria responsabilidade do médico aliviá-la por meios médicos. Dentro dessa lógica, todos têm direito à saúde; depressão é falta de saúde; portanto, todos têm direito de ser feliz (oposto de ficar deprimido). Essa ideia, por sua vez, implica que o estado mental de alguém – ou o humor de um sujeito – atua de forma independente do modo com esse sujeito leva a vida, uma crença que necessariamente priva a existência de todo o seu significado humano, desconectando, de forma radical, a recompensa da conduta.

A recusa das pessoas em considerar e agir seriamente a partir dos sinais que veem e do conhecimento que têm não foi consequência de uma espécie de cegueira e ignorância. Foi fundamentalmente deliberado. Elas sabem, por experiência própria, como também observando o que acontecia com muitas pessoas em torno delas, que suas escolhas, baseadas no prazer ou no desejo do momento, forjariam a miséria e o sofrimento de si mesmas.

Na verdade isso não é apenas a banalidade, mas também a frivolidade do mal: a elevação do prazer efêmero que se sobrepõe à miséria de longo prazo.

Aqui, entramos no reino da cultura e das ideias. Não basta acreditar que é economicamente viável comportar-se de forma irresponsável e egoísta, mas também acreditar que é moralmente admissível viver assim. Essa ideia vem sendo vendida pela elite intelectual há muitos anos, chegando ao ponto de ser, hoje em dia, considerada natural. Houve uma grande marcha que não devastou apenas as instituições, mas sobretudo as mentes dos jovens. Os jovens querem louvar a si mesmos, descrevem a si mesmos como “tolerantes”. Para eles, a forma mais alta de moralidade é a amoralidade.

Existe uma aliança ímpia entre a esquerda, que acredita que o homem é dotado de direitos sem deveres, e os libertários da direita, os quais acreditam que a escolha do consumidor é a resposta para todas as questões. Dessa forma, as pessoas se veem no direito de gerar crianças da forma como bem entenderem, e as crianças, certamente, têm o direito de não serem privadas de nada, ao menos nada no plano material. Já que homens e mulheres se associam e têm filhos, a criação destes últimos torna-se apenas uma questão de direito do consumidor, sem quaisquer grandes implicações morais, semelhante ao ato de escolher entre chocolate branco ou preto.

Assim, embora as pessoas tenham ciência de que estão cometendo um grande equívoco, elas se sentem encorajadas a continuar agindo dessa forma por acreditarem que têm o direito de agir assim, já que tudo é apenas uma questão de escolha. Hoje em dia, quase ninguém desafia publicamente essa crença.

Meus pacientes, com raras exceções, conseguem enxergar a verdade: que eles não são deprimidos; estão infelizes – e são infelizes porque escolheram viver de uma forma que não deveriam viver, na qual é impossível ser feliz.

As elites não conseguem sequer reconhecer o que aconteceu, muito embora seja óbvio, uma vez que tal reconhecimento solicitaria admitir a pretérita irresponsabilidade em relação à questão, e isso seria muito incômodo para elas. Melhor que milhões vivam desgraçadamente e na imundície do que as elites se sentirem mal sobre si mesmas – outro aspecto da frivolidade do mal.

Inúmeras pacientes meus, com toda a oportunidade que têm para levarem vidas pacatas, úteis, equilibradas e prósperas, escolhem, em vez disso, a senda da complicação. Se não exatamente perigo físico e violência, ao menos drama e constante adrenalina, que leva a noites sem sono e perdas financeiras. Eles rompem casamentos, criam ligações desastrosas, perseguem quimeras e se comportam de maneira que previsivelmente terminarão em desastre. Como mariposas em volta da chama, eles cortejam a catástrofe.

Aquelas pessoas que não estão satisfeitas com o próprio trabalho, ou que não têm quaisquer interesses intelectuais ou culturais e cujas grosseiras emoções não foram refinadas nem pela educação nem por uma introdução aos hábitos civilizados, encontram-se particularmente sujeitas a buscar as complicações compensatórias das desordens e dos transtornos domésticos.

O bebê não é socializado pela enfermeira, mas ele a agride toda vez que se percebe contrariado em seu desejo, que na infância só pode ser instintivo. É somente ao ter o desejo contrariado, e dessa forma aprendendo a controla-lo – em outras palavras, sendo civilizado – que os homens se tornam inteiramente humanos.

Devemos reconhecer tanto as limitações a nós impostas pela nossa natureza como, ao mesmo tempo, não podemos desistir de nosso esforço em controlar os impulsos. Caso fracassemos em quaisquer dos dois, inevitavelmente sucumbiremos a uma bestialidade ideológica ou instintiva – ou cairemos na curiosa realização de nossa época, que sucumbe a ambas.

Na visão de mundo psicoterapêutica adotada por todo bom progressista, o mal simplesmente não existe; temos apenas vitimização. O ladrão e o roubado, o assassino e o assassinado, são todos vítimas das circunstâncias, subjugados e unidos pelos acontecimentos. As futuras gerações (espero) acharão curioso como, justamente no século de Stálin e Hitler, pudemos ser tão veementes em nossa obstinada negação quanto à capacidade do homem para o mal.

A lascívia escancarada da imprensa ao tratar das vidas privadas das personalidades públicas tem um objetivo ideológico: subverter o próprio conceito de virtude e negar a possibilidade de sua existência. Portanto, negar a necessidade de um comportamento contido. Segundo essa lógica maliciosa, se cada pessoa que visa defender a virtude for pega com as mãos sujas (quem de nós as teria?), ou se fosse descoberto que ela se entregou em algum momento de sua vida a um vício que se opõe à virtude defendida por ela, então, a virtude, em si mesma, será exposta como nada mais do que pura hipocrisia; por consequência, poderemos nos comportar exatamente como bem entendermos. A atual falta de compreensão religiosa sobre a condição humana – que o homem é uma criatura caída para o qual a virtude é necessária, embora nunca completamente alcançável – representa uma perda, e não um ganho, para uma verdadeira sofisticação da vida. Seu substituto secular – a crença na perfeição da vida na Terra por meio da extensão sem limites do leque dos prazeres – não é apenas imaturo por comparação, mas muito menos realista em sua compreensão da natureza humana.

A primeira requisição para a vida civilizada é que o homem esteja disposto a reprimir seus instintos e apetites mais ferozes. O fracasso no estabelecimento desse primeiro requisito tornará o homem, devido à faculdade da razão, um ser muito pior do que as feras da natureza.

Por exemplo: o consumo de drogas tem o efeito de reduzir a liberdade das pessoas, ao reduzir drasticamente o âmbito de seus interesses. O consumo prejudica a busca de objetivos humanos mais importantes, tais como constituir uma família e cumprir obrigações públicas. Muito frequentemente prejudica a habilidade de construir uma vida profissional e promove o parasitismo. Além do mais, longe de expandir a consciência, a maior parte das drogas a limita. Uma das características mais universais dos drogados é a forma intensa e tediosa como ficam absortos em si mesmos, e as jornadas que empreendem ao espaço interior são geralmente incursões a vácuos internos. Consumir droga é uma forma preguiçosa de buscar felicidade e sabedoria, e esse atalho acaba se tornando a mais sem saída das ruas sem saída. Perdemos realmente muito pouco com a proibição do consumo de drogas.

A ideia de que a liberdade é uma mera habilidade de um sujeito fazer valer os seus caprichos é um tanto quanto rasa, e mal consegue capturar as complexidades da existência humana; um homem cujos apetites são sua lei nos chama a atenção não como alguém liberto, porém escravizado. E quanto uma liberdade tão estreitamente concebida transforma-se no critério das políticas públicas, a dissolução da sociedade estará próxima. Nenhuma cultura que tenha na autoindulgência publicamente sancionada o seu mais alto bem pode sobreviver por muito tempo, e um egotismo radical será desencadeado, no qual quaisquer limites sobre o comportamento pessoal serão experimentados como infrações contra os direitos básicos. Perceber as distinções entre o importante e o trivial, entre a liberdade de criticar ideias recebidas e a liberdade para se consumir LSD, por exemplo, é o tipo de discernimento que mantém as sociedades livres do barbarismo.

Arte e cultura

Existe um tipo de consolação azeda para a ideia de que vivemos nos piores dos tempos, de que os horrores que enfrentamos – ou ao menos ouvimos ou lemos a respeito – são de natureza sem precedentes na história humana. Mas, seria fato que as duas Guerras Mundiais, as fomes implantadas, o Gulag e os campos de extermínio do século XX foram de uma natureza completamente distinta de todos os outros horrores da história, tornando o esforço artístico tradicional não apenas redundante, mas uma traição positiva da humanidade? Seria o caso de o florescimento de uma árvore não poder mais ser visto por uma pessoa decente e sensível sem uma sombra de horror a recair sobre ela? Alguns de meus pacientes dizem que nunca bateriam numa mulher porque viram seus pais bater na mãe, ao passo que outros dizem que batem nas mulheres porque viram seus pais fazerem o mesmo com suas mães. Além disso, poderia muito bem ser dito que, diante da catástrofe, a apreciação lírica da beleza da vida se torna ainda mais importante. Sir Ernst Gombrich, o historiador da arte, conta a história de alguns amigos seus em sua Viena natal, os quais, depois do Anschluss, esperavam ser imediatamente presos pela Gestapo. Eles gastaram aquilo que pensavam ser as últimas horas vivos, tocando quartetos de Beethoven.

A ideia de que, depois de um fato como a Grande Guerra, uma celebração artística do mundo não seja mais possível não faz o menor sentido, na verdade trata-se de uma mistura de romantismo deformado com sentimentalismo invertido. Isso nada mais é do que pura encenação. A baboseira de tudo isso fica evidente de imediato. A arte é precisamente o meio pelo qual o homem dá sentido a suas próprias limitações e defeitos, transcendendo-os. Sem arte – ou sem as artes – existe apenas fluxo.

A segunda grande causa da dissolução total da tradição artística está intimamente ligada ao tipo de baboseira política que Miró incorporou. Falo do culto romântico do artista original, divorciado de seus predecessores. Segundo o diretor da Fundación Pilar I Joan Miró: “Seguindo a mesma lei que rege a própria natureza, nova vida, novas e vibrantes formas podiam nascer a partir da destruição”. De fato, alguém poderia, a não ser um bruto, realmente acreditar sinceramente nessas palavras, em seu sentido literal? Quem, a não ser um completo bárbaro, não é capaz de perceber que um homem não pode estar só, caso ele deseje criar, que a tradição é a precondição da criação, não a sua antítese? O problema, ao se anunciar esse tipo de lixo pomposo, é que milhares – não, milhões – de tolos sempre estarão prontos para acreditar nessas coisas.

Alguém inevitavelmente dirá: por que só os artistas podem quebrar tabus? Por que não o resto de nós? Um tabu só faz sentido se funciona para todo mundo, e aquilo que é simbolicamente quebrado na arte será, em breve, quebrado na realidade.

Que a vida civilizada não seja possível sem determinados tabus – que alguns deles são de fato justificáveis e, portanto, nem todo tabu é em si um mal a ser derrotado – é um pensamento demasiado sutil para os estetas do niilismo. O homem sábio e inteligente examina os seus preconceitos não para rejeitá-los a rodo só por serem preconceitos, mas para avaliar quais devem ser preservados e quais não devem. A sofisticação moderna exige uma sensibilidade absolutamente resistente a qualquer tipo de ofensa ou surpresa, absolutamente blindada contra oposições e sensibilidades morais. Hoje em dia, para mostrar-se como homem de gosto artístico, é preciso se abster de quaisquer padrões e acolher todas  as violações, o que, como disse Ortega y Gasset, caracteriza o vestíbulo do barbarismo. Uma petulante brutalidade intelectualizada é a marca registrada da cultura moderna.

O homem autêntico, na concepção romântica, é aquele que se libertou por completo de toda convenção, que não reconhece qualquer restrição no livre exercício de sua vontade. Isso se aplica tanto à moral quanto à estética, e o gênio artístico se torna sinônimo de imprevisibilidade. Mas um ser dependente de sua herança cultura, como é o caso do ser humano, não consegue escapar tão facilmente da convenção, e o desejo de conseguir tal façanha já se tornou um clichê.

A grosseria da qual reclamo resulta da combinação venenosa entre uma admiração ideologicamente inspirada por tudo o que é demótico e uma boa dose de esnobismo intelectual. Numa época democrática, vox Populi, vox dei: a multidão não pode se enganar; e sugerir que existam ou que devam existir certas atividades culturais em relação às quais grandes quantidades de pessoas poderão ficar excluídas, por causa de sua falta de cultura e despreparo mental, é tido como inaceitavelmente elitista e, por definição, uma postura repreensível. A obscenidade é o tributo que os intelectuais pagam, não aos proletários exatamente, mas a sua esquemática, imprecisa e condescendente ideia de proletariado. Os intelectuais provam a pureza de seu sentimento político por meio da sordidez daquilo que produzem.

Em relação ao esnobismo, o intelectual se eleva acima do cidadão comum, que ainda se agarra quixotescamente aos padrões, preconceitos e tabus. O intelectual, no entanto, rejeita-os de modo categórico. Diferentemente dos outros, ele não é mais um prisioneiro de seu passado e de sua herança cultural; e, dessa forma, ele prova a medida da liberdade de seu espírito em função da amoralidade de suas concepções.

Não é de estranhar que os artistas envolvidos nessa atmosfera mental sintam-se obrigados a habitar somente universos visualmente revoltantes, pois de que outra forma, num mundo repleto de violência, injustiça e imundice, um sujeito consegue provar sua democrática originalidade, a não ser residindo no âmbito do violento, injusto e imundo? Qualquer retorno ao convencionalmente belo significaria uma fuga elitista. No universo mental do multiculturalismo, no qual os selvagens são sempre nobres, não há critério algum pelo qual seja possível distinguir a boa arte do simples lixo. E se os intelectuais – altamente treinados na tradição ocidental – estão preparados para elogiar uma pornografia brutal e degradada como o rap, como exigir daqueles que não receberam o mesmo treinamento uma reverência pela boa arte? Os rappers e seus admiradores com certeza vão pensar que não há nada de valor nessa tradição. Assim sendo, de forma covarde, o multiculturalismo abre as portas para formas extremistas de antiocidentalismo.

Hoje em dia, o termo civilização raramente aparece em textos acadêmicos, ou no jornalismo, sem o devido uso de irônicas aspas, como se a civilização fosse uma criatura mítica, como o Monstro do Lago Ness ou o Abominável Homem das Neves, e acreditar nela demonstrasse um sinal de ingenuidade filosófica. Episódios brutais, pelo fato de serem muito frequentes na história, são tratados como demonstrações de que tanto a civilização quanto a cultura são uma farsa, uma mera máscara a dissimular crassos interesses materiais. Ao mesmo tempo, as realizações são percebidas como garantias invioláveis, como se fossem estar indefinidamente à disposição, como se o estado natural do homem fosse o conhecimento e não a ignorância, a riqueza e não a pobreza, a tranquilidade, e não a anarquia. Por conseguinte, temos a ideia de que não vale a pena proteger ou preservar essas realizações, pois tudo seria uma livre dádiva da natureza.

Parafraseando Burke quando disse que, para ter êxito, basta ao barbarismo esperar que a humanidade civilizada não faça nada, eu diria mais: de fato, nas últimas décadas, não foi o caso de a humanidade civilizada ficar imobilizada, mas de ela se alinhar ativamente aos bárbaros, negando a distinção entre superior e inferior, o que favorece, invariavelmente, o último. Os homens e mulheres civilizados têm negado a superioridade das grandes realizações culturais, em nome das formas mais efêmeras e vulgares de entretenimento; negam os esforços científicos de pessoas brilhantes que resultaram numa compreensão objetiva da natureza e, como fez Pilatos, tratam a questão da verdade com zombaria; acima de tudo, negam a importância de como as pessoas se comportam em suas vidas pessoais, desde que deem consentimento a sua própria depravação. O objetivo final do furor desconstrucionista, que varreu a academia como uma epidemia, é a própria civilização, enquanto os narcísicos dentro da academia tentam encontrar justificativas teóricas para sua própria revolta contra as restrições civilizacionais. Assim sendo, chegamos à verdade óbvia, de que é necessário conter, seja pela lei ou pelos costumes, a possibilidade permanente de brutalidade ou de barbarismo na natureza humana. Mas essa verdade nunca encontra espaço na imprensa ou na mídia da comunicação de massa. Os nossos intelectuais têm de perceber que a civilização é algo que vale a pena ser defendido, e que um posicionamento hostil diante da tradição não representa o alfa e o ômega da sabedoria e da virtude. Temos mais a perder do que pensam.

Por exemplo, a preservação da qualidade estética da vida exerce profundas consequências sociais e econômicas. Em lugares onde tudo é feio e esteticamente indiferente, é fácil ao comportamento se modelar a esse padrão, tornando-se vulgar e grosseiro, fazendo evaporar o orgulho coletivo. Temos um universo onde a conduta das pessoas parece não importar, pois não há mais nada para estragar. Atenção aos detalhes, importante tanto na produção de bens quanto na provisão de serviços, é rebaixada num ambiente de generalizada feiura. Qual o sentido de limpar uma mesa se o ambiente em volta é irremediavelmente asqueroso?

Outro exemplo é a existência de desnutrição em meio à abundância de alimentos. Como de costume, nem os analistas tampouco suas pesquisas estatísticas desejam olhar o problema de frente, ou mesmo estabelecer as conexões óbvias. Para eles, a mais real e inadiável questão que se levanta é a seguinte: “Como faço para parecer que estou preocupado e que sou bom diante dos amigos e colegas?”. É desnecessário afirmar que, diante desse quadro mental, o primeiro imperativo é evitar qualquer insinuação de imputar responsabilidade à suposta vítima ao se avaliar as más escolhas que ela fez. Não é permitido sequer olhar para as motivações por detrás dessas escolhas, uma vez que, por definição, vítimas são vítimas e, portanto, não podem ser responsabilizadas por seus atos, ao contrário da pequena e relativamente diminuta classe de seres humanos que não são vítimas. Pode-se, talvez, estender a famosa máxima de La Rochefoucauld de que não se pode olhar fixamente, por muito tempo, para um problema social. Esse intelectual sentirá uma incontrolável necessidade de escapar para as divagações impessoais e abstratas, referindo-se às estruturas ou alegadas estruturas sobre as quais a vítima não tem qualquer controle. E a partir dessa necessidade de evitar a dureza da realidade ele fiará esquemas utópicos de engenharia social.

Ao não querer enxergar a conexão entre mazela e modo de vida, a intelligentsia progressista tem muitas razões para não querer perceber ou mesmo admitir as dimensões culturais da sociedade. A primeira razão para isso é a necessidade de evitar o confronto com as consequências provenientes das mudanças na ordem moral, dos costumes e das políticas sociais que essa intelligentsia tem constantemente apoiado. A segunda é evitar imputar qualquer responsabilidade às pessoas pobres cujas vidas são pouco invejáveis. Que essa abordagem leve a uma visão dessas pessoas como irrecuperáveis autômatos, enredados por forças que não podem influenciar muito menos controlar – e que, portanto, não podem assumir sua completa condição humana – não preocupa nem um pouco os membros da intelligentsia. Pelo contrário, aumenta a importância do suposto papel providencial dessa elite na sociedade.

A questão do sexo também serve de exemplo de degradação civilizacional. Semelhante a todas as outras funções naturais no ser humano, é precisamente o envolvimento do sexo com uma aura de significados mais profundos que confere humanidade ao homem, distinguindo-o do resto da natureza animal. Remover esse significado, reduzir o sexo a uma função biológica, como todos os revolucionários sexuais fazem na prática, é retroceder ao nível do comportamento primitivo, do qual não temos registro na história humana. Todos os animais fazem sexo, mas só os seres humanos fazem amor. Quando o sexo fica privado dos significados que apenas as convenções sociais, tabus religiosos e contenções pessoais, tão desprezados pelos revolucionários sexuais, podem infundir, tudo o que resta é a incessante busca – fundamentalmente enfadonha e sem sentido – pelo orgasmo transcendente. Ao ser afetado pela falsa perspectiva de felicidade por meio do sexo ilimitado, o homem moderno conclui, quando não está feliz com sua vida, que sua vida sexual não foi suficientemente explorada. Logo, se o bem-estar social não elimina a miséria, precisamos de mais bem-estar; se o sexo não gera felicidade, necessitamos de mais sexo.

É curioso notar que um disparate tão pueril como esse viesse a ser confundido como pensamento sério; mas o fato é que as visões dos revolucionários sexuais, sobre as quais seriam erigidas as bases apropriadas para um perfeito relacionamento entre homens e mulheres, são, agora, comumente aceitas, ou seja, tornaram-se uma ortodoxia. A possibilidade de que a união entre homens e mulheres pudesse servir a outros propósitos, ligeiramente mais mundanos e fraternos, nunca lhes ocorre. Que a profundidade do sentimento seja, no mínimo, tão importante quanto a intensidade (e a longo prazo mais importante) é um pensamento estranho a eles. Livres de pressões sociais que os mantenham juntos, fundamentalmente desprovidos de crenças religiosas para guiar suas vidas, e com o Estado por meio de suas leis e provisões de bem-estar a encorajar positivamente a fragmentação da família, os relacionamentos se tornam caleidoscópicos, tanto em seu ininterrupto estado de alteração como em sua esdrúxula uniformidade repetitiva.

Fonte: Theodore Dalrymple, Nossa cultura...ou o que restou dela, É Realizações Editora, trechos selecionados, São Paulo, 2015.

23 de janeiro de 2016

A autenticidade do Corpus Areopagiticum


Este texto é uma adaptação da introdução do Pe. Dumitru Staniloae (1903-1993) a uma edição romena das obras de São Dionísio, o Areopagita. Como veremos, o Pe. Dumitru acha perfeitamente plausível que São Dionísio seja exatamente quem disse que era, qual seja, o Bispo de Atenas convertido à fé cristã pelo Apóstolo Paulo. Há outros textos, entre eles os de John Parker, que também defendem a autenticidade de São Dionísio.

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I. O suposto panteísmo neoplatônico das obras de Dionísio

Dionísio é freqüentemente apresentado como sendo panteísta, o que tem insuflado no mundo cristão ocidental uma cosmovisão separatista e secularista em relação a Deus, a qual, por sua vez, acaba reforçando as filosofias mundanas como sendo as únicas explicações possíveis da realidade... É por isso que, no Ocidente, Dionísio é suspeito de ser promotor do panteísmo, enquanto no Oriente ele sempre desfrutou de enorme respeito por ser uma das fontes da espiritualidade cristã.

No que tange a suposta característica panteísta das obras de Dionísio, as quais suspeita-se terem sido escritas depois de Plotino e Proclo, julgamos necessário provar que se tratam de obras genuinamente cristãs. Concluiremos que a datação das obras dionisíacas como posteriores a Proclo é incerta, bem como é infundada a exclusão da possibilidade de que sejam de autoria de Dionísio do Areópago de Atenas, o convertido à fé cristã pelo Apóstolo Paulo. Esta conclusão será ainda reforçada com a exposição de fatos relevantes, os quais não são menos conclusivos do que os fatos fornecidos por aqueles que negam a autoria de Dionísio, o Areopagita.

II. O conteúdo cristão e os principais componentes da obra de Dionísio

Não há, em toda obra areopagítica, uma só defesa da Trindade, uma só defesa da doutrina da hipóstase de Cristo em duas naturezas, uma só preocupação com o nestorianismo ou o monofisitismo. Presume-se assim que foram escritas nem após o Primeiro Concílio Ecumênico, nem após o Segundo, Terceiro ou Quarto, ou seja, não foram escritas entre o fim do século V e o começo do século VI. Evidentemente, não estamos aqui a afirmar que não há ensinamentos sobre a Trindade ou sobre Jesus Cristo nas obras de Dionísio. Também não se encontram digressões sobre a Santíssima Trindade nas obras de Santo Atanásio, o Grande, São Basílio, o Grande, ou São Gregório, o Teólogo. Não há também nenhuma preocupação quanto à união das duas naturezas na hipóstase singular do Verbo nas obras de São Cirilo de Alexandria.

O tema das obras areopagíticas é a defesa da singularidade da doutrina de Deus na Trindade em relação às doutrinas mundanas, ou seja, é a defesa da fé cristã em geral contra o pensamento filosófico contemporâneo, mas fazendo uso do próprio vocabulário contemporâneo. Será que a rejeição das filosofias panteístas ainda era necessária no fim do século V? Quem seria mais qualificado para ganhar dos intelectuais, formados nos moldes panteístas, senão um filósofo mesmo? Será que ele se manteve inativo desde que se tornara cristão, abstendo-se de usar seus dons numa atividade para a qual estava qualificado? Ele bem poderia ter divulgado suas obras aproximadamente em 100 d.C., quando a oposição contra as doutrinas cristãs começava a tomar forma.

O fato de todas as coisas diferentes de Deus terem sido trazidas à existência como símbolos, mediante os quais enxergamos as obras de Deus, é um componente importantíssimo do tema da relação de Deus com o mundo, e é também um tema central nas obras de Dionísio. Todas as coisas possuem certa capacidade para receber em si mesmas -- e transmitirem através de si mesmas -- as obras de Deus. Quando as coisas e os gestos humanos se actualizam em símbolos, eles são santificados e tornam-se meios de santificação mútuos, conferindo-lhes assim um caráter litúrgico à sua existência.

Nas primeiras gerações cristãs, a vida litúrgica -- hinos, santificações, bênçãos -- era extremamente rica. A partir dos ricos conteúdos das Constituições Apostólicas ou da Liturgia de São Tiago, a Liturgia foi sendo abreviada, até tomar a forma da Liturgia de São João Crisóstomo. O fato das obras areopagíticas relatarem que havia uma vida litúrgica riquíssima nas comunidades cristãs é outra prova de sua antiguidade. O Oriente ortodoxo, guardião fiel da tradição apostólica, continua até hoje a praticar os múltiplos ofícios de santificação, além de manter viva a consciência de que Deus está presente em todas as Suas obras santificantes. Dionísio influenciou as descrições teológicas que ensinam a presença ativa de Deus em tudo por meio de Suas obras, ou seja, Suas energias incriadas, as quais são diferentes de Seu ser. Verificamos o mesmo nas obras de São Máximo, o Confessor, e São Gregório Palamás. O Ocidente, ao rejeitar tal distinção, conforme verificamos na oposição que Barlaão empreendeu contra São Gregório Palamás e na incapacidade em admitir a união dos homens e do mundo com a essência de Deus -- pois isso confundiria tudo com Deus --, persiste na idéia de um Deus distante do mundo e das pessoas e numa igreja liderada por um vigário (uma espécie de suplente do Cristo) e/ou corteja os extremos do misticismo panteísta (Eckhart, Jacob Boehme) e das filosofias que afirmam que este mundo é a única realidade.

No Oriente, à exemplo das obras areopagíticas, o Filho de Deus assumiu a natureza humana a fim de torná-la o meio de nossa divinização, de nossa santificação, a qual nos sustenta no caminho de uma vida mais bem examinada e mais santa. Eis por que todos os Padres, inclusive Dionísio, fazem uso dos termos "divinização", "deuses" e, evidentemente, "pela graça"... São Gregório Palamás encontrou nas obras de Dionísio a maioria de seus argumentos em defesa dos monges hesicastas, da oração incessante de Jesus e da visão da luz de Jesus em seus corações. Constatamos essa inspiração nas inúmeras citações de Dionísio. Em termos gerais, as obras de Dionísio representam, no mundo ortodoxo, os alicerces que firmam a presença ativa de Deus na vida da Igreja e do mundo.

III. Mais indícios que apontam a origem pós-apostólica ou mesmo apostólica das obras de Dionísio

No livro Hierarquia Eclesiástica, Dionísio afirma que o batismo e a Liturgia eram feitos pelo bispo, auxiliado por alguns sacerdotes e muitos diáconos. Em geral, as pessoas mais velhas eram batizadas, mas não crianças. Tais descrições são típicas da Igreja primitiva, quando as igrejas estavam começando a ser fundadas nas cidades, as dioceses também estavam sendo fundadas e os primeiros fiéis eram compostos de pessoas mais velhas.

O bispo também é retratado oficiando funerais. Outro sinal de que as obras de Dionísio pertencem à Igreja das primeiras gerações, quando os cristãos eram perseguidos, é a menção dos therapeutes (guiardiães ou porteiros), espécie de sacristãos, geralmente solteiros, que guardavam as portas dos locais de assembléia. Esse tipo de atividade era dispensável nos séculos V e VI, pois nesses tempos as perseguições já haviam cessado.

Outra objeção contra a antiguidade das obras de Dionísio é o que de que, no sexto capítulo da Hierarquia Eclesiástica, Dionísio descreve a consagração de monges, que teriam aparecido somente no século IV. Ora, sabemos que Santo Antônio, o Grande, tornou-se monge no século III (ele nasceu em 255). Será que ele estava seguindo uma antiga tradição? Não é improvável que alguns cristãos tenham escolhido a pureza de uma vida solitária... Talvez eles tenham sido os therapeutes das epístolas de Dionísio, um termo que São Máximo, o Confessor, traduz literalmente como monachos. A conexão entre os therapeutes de Filon de Alexandria com a primeira comunidade cristã em Alexandria já havia sido feita por Eusébio de Cesaréia. São Jerônimo afirmara que os monges de seu tempo estavam perpetuando a vida dos therapeutes. São João Cassiano fez exatamente a mesma afirmação, conferindo origem apostólica a esta instituição. Isso significa que a instituição monástica é tão antiga quanto o próprio Cristianismo.

Eis, pois, um breve e pobre resumo da riqueza e da profundidade das obras dionisíacas, as quais nossas traduções estão longe de lhes render o devido tributo. Isso é assim porque a linguagem, em si, é tão sutil e complexa que ninguém poderia traduzi-la satisfatoriamente. Em francês, contamos já com onze traduções... Por isso resolvemos empreender esta nova tradução (em romeno, há as traduções do Pe. Cicerone Iordachescu e Theofil Simensky), procurando expressá-la em termos romenos mais tradicionais e espirituais, evitando tanto quanto possível os neologismos de origem francesa, que são muito comuns no idioma romeno moderno. Por isso discordamos do Pe. Cicerone Iordachescu quando ele diz: "As obras de Dionísio nos remetem à dialética entre Platão e Hegel, mas sem portar o gênio destes grandes mestres do pensamento humano". Quanto a nós, julgamos que o pensamento de Dionísio é muito mais satisfatório do que o de Platão ou Hegel.

Por fim, em vista dos argumentos expostos, é de nosso desejo que o nome de Dionísio, o Areopagita, seja lembrado como o nome do autor destas obras. Mesmo que o autor tenha vivido em tempos mais recentes, aceitamos seu nome, respeitamos sua vontade e o declaramos digno do título de santo, assim como pensavam todos os Padres da Igreja.

A título de auxílio ao entendimento das obras de Dionísio, traduzmos também a Scholia de São Máximo, o Confessor. Hans Urs von Balthasar achava que a Scholia não era de Máximo, mas de João, Bispo de Scythopolis da Galiléia, da primeira metade do século VI. No entanto, Otto Bardenhewer achava que eram de São Máximo mesmo. Creio que esta opinião é a mais provável.

10 de dezembro de 2015

A metafísica da lógica


Philip Sherrard

Dos diversos fatores que podem contribuir para as profundas divergências subjacentes à formulação da doutrina metafísica, um dos mais cruciais – e um dos menos reconhecidos – é o papel atribuído à lógica. Isso não significa que algumas doutrinas sejam estruturalmente lógicas e outras ilógicas – por exemplo, que a doutrina vedântica seja lógica e a doutrina cristã seja ilógica. A coisa não é tão simples assim. A doutrina cristã, dadas suas premissas, é tão lógica quanto a doutrina vedântica, ou mesmo tão lógica quanto qualquer sistema profano de estrutura da realidade, como, por exemplo, o da ciência moderna, cujos devotos garantem que esse não é o caso, seja em relação à doutrina cristã ou a qualquer doutrina de caráter religioso. O que está em pauta aqui não é saber se uma determinada doutrina metafísica, dadas suas premissas, é ou não é lógica, mas saber qual o papel atribuído à lógica na determinação das premissas – os dados primordiais – dessa doutrina.

Eu poderia explicar isso contrastando a abordagem cristã com a abordagem, digamos, de Proclo em seus Elementos de Teologia. Em vez disso, prefiro contrastar a abordagem cristã com a do grande metafísico do século XX, René Guénon (1886-1951). Se podemos dizer que nos últimos cem anos houve alguma restauração, no mundo ocidental, do que significa metafísica e tradição metafísica, o crédito deve ser dado, acima de todos, a Guénon. Em meio à confusão em que o pensamento ocidental moderno mergulhou, chegando ao ponto de ameaçar de extinção os poucos traços remanescentes do conhecimento espiritual genuíno das mentes e corações de seus contemporâneos, Guénon, praticamente sozinho, tomou para si a tarefa de reafirmar os valores e princípios que, segundo seu entendimento, constituem a única base sólida sobre a qual a vida humana pode existir com dignidade e propósito e sobre a qual uma civilização digna desse nome pode ser formada. Ele jamais conseguiria ter contido a tendência da ignorância e da desintegração se intensificarem, muito menos revertê-la, pois isso seria contraditório ao seu entendimento acerca da fase cíclica na qual o mundo se encontra. O máximo que ele esperava era despertar a consciência desses valores e princípios em algumas pessoas; na verdade, das pessoas que hoje detêm essa consciência, poucas não a devem à obra de Guénon.

Realizações dessa magnitude em geral vêm acompanhadas de riscos e armadilhas; afirmar que pessoas assim são imunes a erros e preconceitos humanos não serve a nenhum propósito: isso seria mera adulação inócua. Certamente Guénon não estava livre deles. Em parte isso se deve a seu temperamento, treinamento e experiência; em parte à ignorância a respeito da natureza do assunto sobre a qual versava, como no caso em que relutou a aceitar, sem razões suficientes, o fato de o Budismo ser uma tradição metafísica de pleno direito, até que se lhe mostrassem evidências que o forçaram a concluir o contrário. [1] Mais recentemente, algumas opiniões emitidas por Guénon em seu livro Le Roi du Monde foram criticadas por conta de alguns fatos obviamente distorcidos, distorção essa que apelava mais ao senso do oculto do que ao senso do sagrado. [2] Em ocasiões anteriores, algumas de suas conclusões acerca da tradição cristã foram questionadas [3]; e pode haver outros artigos que questionem ou critiquem suas ideias dos quais ainda não tomei ciência.

Contudo, meu objetivo aqui não é corrigir ou criticar os erros de julgamento ou de interpretação que Guénon possa ter cometido por conta de alguma avaliação apressada de sua parte ou porque dados insuficientes lhe estavam disponíveis ou qualquer coisa do gênero. Meu objetivo é apenas e tão-somente versar e esclarecer o assunto que citei acima: o papel da lógica em determinar as premissas subjacentes, ou dados primordiais, da doutrina metafísica.

A ideia fundamental da doutrina metafísica conforme exposta por Guénon é a ideia do Infinito, isto é, da Possibilidade universal. Esta ideia é provavelmente sua ideia central, isto é, a ideia que constitui para Guénon o que podemos chamar de datum primordial da genuína exegese metafísica e que distingue essa exegese das estruturas de pensamento que, por mais que posem de metafísica, não passam de meras construções filosóficas. Conforme o próprio Guénon escreveu: “É importante notar que os filósofos, ao construírem seus sistemas, sempre impõem, consciente ou inconscientemente, alguma limitação à Possibilidade universal, algo que é contraditório, embora inevitável, às construções desse tipo. Seria interessante escrever a história das diversas teorias filosóficas modernas sob o ponto de vista das limitações impostas à Possibilidade universal”. [4] Essa observação implica obviamente que, sob o ponto de vista metafísico, a Possibilidade universal – o Infinito – é por definição livre de toda e qualquer limitação.

Ocorre que, se examinarmos com atenção a ideia de Possibilidade universal conforme apresentada por Guénon, começaremos a questionar se ele mesmo não lhe impõe “consciente ou inconscientemente” certas limitações. Em um exame mais detido, fica claro que essa limitação – se é que se trata de uma limitação – está implícita no próprio conceito da relação entre lógica e o Absoluto, o qual Guénon eleva a status de axioma. Por fim, percebe-se que há aspectos da metafísica de Guénon que não são conclusões extraídas de dados recebidos por via revelatória ou iniciática, mas consequências diretas da aplicação na ordem metafísica de princípios exegéticos radicados nesse axioma a que me referi.

Para que fique claro o que quero dizer com tudo isso, devo explicar brevemente a ideia de Possibilidade universal conforme Guénon a entendia. Para isso, será suficiente consultar uma de suas principais obras, Les États multiples de l´Être. [5] Conforme notamos acima, a ideia de Possibilidade universal é intercambiável com a ideia de Infinito. O conceito de infinito, para Guénon, tem sua origem na proposição de que “toda determinação é necessariamente uma limitação”. [6] Dado que podemos demonstrar que toda limitação – ou seja, toda tentativa de tornar finito – implica em uma negação do Infinito (omnis definitio est negatio é a famosa fórmula spinoziana deste argumento), portanto qualquer determinação é também uma negação do Infinito. Consequentemente, a ideia de Infinito só pode ser expressa em termos negativos. O Infinito é aquilo que está para além de toda e qualquer determinação. Ele é indeterminação absoluta, totalmente impessoal e inqualificado. Um corolário desse raciocínio é que o Infinito coincide com a Possibilidade universal, pois se houvesse uma única possibilidade ausente do Infinito, sua infinitude estaria limitada e, portanto, negada por essa possibilidade da qual foi privada. Em outras palavras, o Infinito é também Possibilidade universal – o Onipossível. Portanto, é esta ideia de Infinito, a qual também pode ser designada como Possibilidade universal, que constitui para Guénon o princípio metafísico supremo, o Absoluto que, por sua vez, constitui o datum primordial de sua exegese doutrinal.

A ideia de possibilidade, porém, implica em seu oposto, isto é, na ideia de impossibilidade. Guénon explica que impossibilidade é o puro nada, a negatividade absoluta. [7] É aqui que vem a pergunta: como podemos reconhecer ou determinar uma impossibilidade ou, formulando a pergunta inversamente, como podemos reconhecer e determinar o que é possível? A resposta de Guénon a este questionamento indica não apenas a limitação que ele impõe à Possibilidade universal, mas também introduz o que será o principal interesse deste capítulo, qual seja, explorar a maneira como a apresentação de Guénon da doutrina metafísica é afetada por sua postura peculiar em relação à lógica e por sua concepção peculiar a respeito da relação entre a ordem lógica e a ordem metafísica – este é um ponto muito importante. Para Guénon, uma impossibilidade é uma absurdidade no sentido lógico da palavra. O absurdo, no sentido lógico da palavra, é tudo aquilo que implica em uma contradição lógica. Inversamente, a ausência de contradição interna é o que logicamente e ontologicamente (itálicos meus) definem uma possibilidade. [8]

Em que sentido essa conclusão implica na imposição de uma limitação à Possibilidade universal é algo que veremos adiante. O que importa agora é esclarecer a postura em relação à lógica e no que tange a relação entre as ordens lógica e metafísica que ela pressupõe, além de mostrar quais as consequências que essa postura implica na maneira como Guénon é levado a imaginar a doutrina metafísica.

Já vimos que Guénon tipifica o Infinito em termos consistentes – na verdade, dependentes – das leis da lógica. Segundo as leis da lógica, toda determinação deve excluir todos os aspectos da realidade que não estejam subordinados aos limites da determinação em questão. Uma parede não pode ser uma árvore ou uma vaca ou outra coisa que não esteja subordinada à determinação denotada pela palavra “parede”. Isso significa que, segundo as leis da lógica, toda determinação implica em um grau maior ou menor de limitação quando comparado com a soma total da realidade abarcada pelo Infinito. Em outras palavras, a análise lógica suprema do Infinito deve estar para além de toda determinação, já que qualquer determinação, como vimos, implica em alguma limitação e, portanto, na exclusão de algum ou alguns aspectos da soma total da realidade do Infinito, o que seria uma contradição em termos. Assim, em termos consistentes às leis da lógica, o mais elevado princípio da ordem metafísica – a que abrange toda a realidade possível e é infinita em sua natureza – deve estar para além de toda determinação. Ele tem de ser totalmente indeterminado, impessoal e inqualificado.

Por meio de uma demonstração desse tipo Guénon chega à ideia do Infinito ou Onipossível, o qual, enquanto princípio supremo da ordem metafísica, está para além até mesmo do próprio Ser. É também por meio de uma demonstração desse tipo que Guénon estabelece a lei de que qualquer princípio metafísico que possa ser logicamente distinto do Infinito indeterminado, e por isso mesmo represente alguma determinação da soma total da realidade abarcada pelo Infinito, deve por conseguinte possuir menos realidade do que o Infinito, dado que, por definição, ele exclui algum aspecto ou aspectos da soma total da realidade contida no Infinito. Quanto maior o grau de determinação, tanto mais aspectos excluirá da soma total da realidade contida no Infinito e, portanto, tanto menor será o grau de realidade.

Por exemplo, o Ser, que representa a determinação primordial do Infinito e portanto é subsequente ao Infinito, possuirá ipso facto um grau menor de realidade absoluta em relação ao Infinito; o mesmo se aplica, em graus cada vez maiores, a todas as determinações que partem ou emanam do Ser e de tudo aquilo que está abaixo do Ser. Assim, a ordem metafísica se estabelece como uma hierarquia de gradações – os estados múltiplos do ser – cada qual real em seu próprio nível mas cada qual possuindo um grau de realidade que depende de sua proximidade relativa ao Infinito pré-ontológico. Somente o Infinito é absolutamente real; o que quer que esteja subsequente ao Infinito, e logicamente distinto do Infinito pelo grau de determinação que lhe é característico, será apenas relativamente real.

Contudo, Guénon vai ainda mais longe. Para ele, qualquer determinação em relação ao Infinito é “rigorosamente nada” e não tem qualquer relação com o Infinito. [9] Esta é apenas outra forma de dizer que qualquer realidade que seja atribuída a uma determinação não pertence a ela por conta de sua determinação, mas apenas na medida em que está implícita na ordem das possibilidades infinitas. A realidade de uma determinação, mesmo em sentido relativo, não é da determinação em si – pois ela é “rigorosamente nada” – mas do conjunto das possibilidades de determinação na medida em que elas não manifestam a si mesmas mas apenas embutem manifestação em sua natureza (itálicos meus). [10] Em última instância, somente aquilo que é possibilidade é real, e mesmo assim somente se permanecer uma possibilidade, sem se actualizar. Manifestação e multiplicidade são essencialmente irreais e ilusórias. [12]

Tudo isso se depreende lógica e necessariamente de duas proposições básicas. A primeira é de que toda determinação é necessariamente uma limitação e a segunda é de que não há nada na ordem metafísica de uma natureza que possa ser expressa somente em termos que violem o princípio lógico da não-contradição. Em outras palavras, não há nada na ordem metafísica que não possa ser expresso em termos que se moldem às leis da lógica pois, para Guénon, o que quer que não possa ser expresso dessa forma é uma impossibilidade e, portanto, não tem vez na ordem metafísica nem em parte alguma. Isso não significa dizer, nem implica em dizer, que a ordem metafísica não seja supralógica, ou que a ordem lógica coincida com a ordem metafísica. Mas implica, sim, em dizer que a ordem lógica espelha em si a estrutura da ordem metafísica, de maneira que as leis da lógica não apenas derivam, mas aplicam-se analogicamente à ordem metafísica. [13] Isso significa que quando a realidade metafísica encontra-se refletida no plano lógico da mente humana, os conceitos que formam de si serão – ou pelo menos deveriam ser em princípio – logicamente consistentes e não contraditórios, pois, em última instância, nada na ordem metafísica viola o princípio da consistência lógica e da não-contradição. Há uma correlação ou adequação total entre a ordem metafísica e a ordem lógica. É por isso que Guénon não pensa duas vezes em aplicar as leis da lógica à tipificação do reino metafísico e em afirmar de maneira tão positiva que “logicamente, assim como ontologicamente”, tudo nesse reino tem de conformar-se ao princípio da não-contradição, no sentido lógico da palavra.

O que dissemos aqui pode ser melhor elucidado se a formulação da doutrina metafísica de Guénon for contrastada com a doutrina metafísica de uma tradição, tal como a tradição cristã ortodoxa, na qual a correlação total entre ordem lógica e ordem metafísica não é pressuposta da mesma forma. Pois para os mestres doutrinários dessa tradição o princípio supremo da ordem metafísica não é o Infinito indeterminado e impessoal, como é o caso de Guénon. O princípio supremo é a Trindade. Eles reconhecem que a natureza suprema da Trindade – aquilo a que eles chamam de essência – é incognoscível e, enquanto tal, está para além tanto da determinação quanto da não-determinação; mas não é por causa disso que eles entendem que haja nessa natureza um princípio metafísico superior à Trindade. Pelo contrário, eles afirmam que a essência, embora esteja para além da determinação e da não-determinação, não é um princípio impessoal ou não-pessoalizado, pois a essência subsiste somente na medida em que está “hipostatizada” nas três pessoas da Trindade. Eles recusam a ideia de uma essência indeterminada e impessoal – o Infinito – que transcenda a Trindade, assim como concomitantemente recusam a ideia de que a Trindade represente uma determinação da essência no sentido de que cada pessoa da Trindade expresse a essência em um modo relativo ou que, por conta disso, seja menos real ou menos absoluta e infinita do que a essência. Para eles, cada pessoa da Trindade, embora distinta das demais pessoas, é tão real e tão absoluta quanto cada uma das demais pessoas, e a realidade, a absolutez e a infinitude possuída por cada pessoa são as da própria Realidade em si, e do Absoluto e do Infinito em si, no sentido mais pleno e amplo das palavras.

É claro que isso não quer dizer que eles aceitam três Absolutos, cada qual com uma essência independente, a qual, a propósito, seria a mesma essência possuída pelas demais. Há apenas um Absoluto. No entanto, este Absoluto singular não deve ser concebido como sendo constituído por uma essência que seja um princípio subsistente e à parte da hipostatização nas três pessoas, nem deve ser concebido como sendo constituído por uma das três pessoas de maneira que ela situe-se à parte das outras duas e que possa ser considerada como princípio independente com respeito às outras duas. Entre as pessoas da Trindade há absoluta unidade e absoluta diversidade; e assim como não há essência não-hipostatizada, assim também não há pessoas não-essencializadas: o que há é apenas uma concomitância de uma essência e três pessoas, sem prioridade ou subordinação de parte a parte. Portanto, imaginar uma essência que não esteja hipostatizada ou uma pessoa que não esteja essencializada é contrariar a riqueza plena e complexa do Absoluto. [14]

O corolário disso tudo é que, a despeito do quanto se penetre no reino metafísico – para além de toda manifestação formal e informal, para além do Ser, no interior das profundezas insondáveis do Urgrund pré-ontológico –, jamais a pessoalidade do Absoluto será superada, pela simples razão de que não há nada no reino metafísico que transcenda essa pessoalidade. A perspectiva suprema na qual a mais exaltada ideia de ordem metafísica consegue almejar será sempre pessoal.

Do que dissemos depreende-se que para os mestres dessa tradição o Absoluto não apenas transcende a ordem lógica (como também é o caso em Guénon), mas também não pode deixar de ser tipificado (sob pena de adulterá-lo profundamente) em termos que violem as leis da consistência lógica e da não-contradição. Ora, reconhecer distinções no Absoluto sem aceitar que tais distinções impliquem em certa relatividade àquilo que é distinto – mesmo que seja uma absolutez relativa – significa, logicamente falando, colocar-se na posição de afirmar aquilo que Guénon chama de absurdidade. Em outras palavras, a ideia da Trindade conforme apresentada pelos mestres doutrinários da tradição cristã ortodoxa transcende a correlação entre a ordem lógica e a ordem metafísica, a qual, para Guénon, é o suprassumo de qualquer doutrina metafísica digna desse nome. A afirmação de que toda determinação implica em limitação é uma afirmação da ordem lógica. Contudo, dado que para Guénon há uma correlação rígida entre a ordem da lógica e a ordem metafísica, a verdade da ordem lógica pode ser aplicada analogicamente à ordem metafísica. Assim, postular uma determinação na ordem metafísica implicará necessariamente em postular um grau relativo de limitação naquilo que é determinado em relação à natureza indeterminada e inqualificada da própria Realidade infinita e absoluta.

No contexto específico do qual estamos versando, isso tudo significa que cada Pessoa da Trindade representa uma determinação in divinis, cada Pessoa, segundo os critérios de Guénon, não pode ser propriamente o Absoluto, pois na natureza das coisas qualquer determinação implica em limitação e, portanto, não pode ser o Absoluto no sentido pleno da palavra. Consequentemente, cada Pessoa da Trindade deve ser algo menos absoluto e, portanto, menos real do que o Absoluto, pois a absoluteza, neste sentido, é prerrogativa única e exclusiva de um princípio totalmente indeterminado. Por conseguinte, se este princípio supremo e indeterminado da ordem metafísica for designado pelo termo Essência, então para Guénon a Essência deve transcender toda hipostatização e subsistir como princípio independente, enquanto as Pessoas da Trindade devem expressar a Essência de modo necessariamente relativo.

Desse ponto de vista, portanto, a afirmação de que o princípio supremo da ordem metafísica é trinitário e pessoal denuncia pura e simplesmente uma falha em apreender a natureza inqualificada e impessoal daquilo que em verdade é o princípio supremo dessa ordem, e ressalta que se está identificando o Absoluto com aquilo que, na verdade, já é certa relativização, por menor que seja,  do próprio Absoluto, pois ele transcende toda e qualquer distinção. A partir da concepção de Guénon da relação entre lógica e Absoluto, é absolutamente impossível reconhecer ou admitir como adequada a seus propósitos uma ideia doutrinal tal como a da Trindade, a qual implica ou postula que o Absoluto, no sentido fundamental da palavra, pode ser tipificado somente em termos que, do ponto de vista lógico, são contraditórios. É por causa disso que o próprio Guénon foi levado a distinguir entre o que ele chamava de “verdadeira metafísica” e a “teologia”, negando a esta o status de metafísica genuína.

Ora, mas será que as coisas são tão simples assim? A doutrina da Trindade expressa a unidade e a diversidade das três Pessoas no Absoluto: ela expressa o mistério de um Absoluto que é simultaneamente Um e Três, Mônada e Tríade. Mas a ideia de que há três Pessoas no Absoluto, cada qual concretizando o Absoluto por si mesma e portanto transcendendo toda e qualquer forma de relatividade, não é para os cristãos uma questão de especulação teológica. Para eles, a Trindade é a realidade primordial da própria vida divina, um fato metafísico transmitido por meio de revelação divina, o qual constitui para eles um datum primordial da exegese doutrinal. Enquanto tal, trata-se de um princípio ao qual a mente humana deve amoldar-se conquanto faça justiça à natureza da Verdade suprema.

Em outras palavras, a ideia da Trindade, para os cristãos, desempenha o mesmo papel na formulação de doutrinas que as ideias de Infinito e Onipossibilidade desempenham para Guénon: é o ponto do qual a exegese doutrinal parte. Que seja uma ideia antinômica e paradoxal, no sentido de que, do ponto de vista lógico, ela não se conforma à lei da não-contradição, não significa que seja arbitrária ou que falte à exegese cristã certas sutilezas e refinamentos. É algo que lhes é imposto pela maneira como o Absoluto foi tipificado pela revelação cristã. Isso significa dizer que o Absoluto revelou-se como sendo essencialmente paradóxico por natureza. Consequentemente, a tentativa de resolver esse paradoxo, seja afirmando uma proposição do paradoxo à custa da outra, ou formulando uma ideia “superior” na qual ambas acabem absorvidas de forma a aplainar quaisquer contradições internas, é ipso facto representar o Absoluto de maneira menos adequada. Na perspectiva cristã, a ideia translógica e paradóxica da Trindade é a ideia mais primordial de todas. Ela constitui o conceito-limite, o ne plus ultra, do pensamento humano, e não há nem pode haver qualquer ideia que represente o Absoluto de maneira mais adequada.

Todavia, para Guénon as coisas não podem ser assim pois, conforme vimos, ele aceita como axiomática a proposição de que a ideia mais adequada de Absoluto acessível à mente humana será, ou melhor, tem de ser, uma ideia consistente com as leis da lógica. Isso significa que, a rigor, a inteligência humana, ao formular sua ideia de Absoluto, não precisa se moldar a um datum metafísico tipificado por revelação divina, aceitando-o como um ponto de partida que determine a forma da exegese doutrinal. Pelo contrário, qualquer datum deve agora se sujeitar, no que tange sua tipificação, aos critérios da lógica, e é a esses critérios que a inteligência humana deve se moldar ao formular a ideia de Absoluto. É verdade que essa exigência – de que a inteligência humana, ao tipificar o Absoluto, deva acomodar-se aos critérios da lógica – não é uma exigência arbitrária, pois se supõe que há uma correlação entre a ordem da lógica e a ordem metafísica que a justifique e a torne obrigatória. Mas a consequência inevitável será de que o conceito-limite, o ne plus ultra, do pensamento humano, no que tange a ideia do Absoluto, não será uma ideia que seja translógica e paradóxica, mas  uma ideia obtida através de demonstrações puramente lógicas. Pode-se dizer que, sob essa perspectiva, o árbitro supremo da forma que a expressão doutrinal deve tomar é um datum tipificado pelas normas da discriminação e demonstração lógicas.

Vamos agora sintetizar o contraste cujos contornos, digamos assim, delineamos até aqui. Na perspectiva cristã, o árbitro supremo da forma que a exegese doutrinal deve assumir é o datum primordial tipificado pela revelação divina, e é a ele que a inteligência humana deve se moldar, mesmo que sob pena de violar as leis da lógica. Por outro lado, na perspectiva guénoniana, o árbitro supremo da forma que a exegese doutrinal deve assumir não é o datum tipificado pela revelação divina, mas um datum tipificado pelas normas da discriminação e da demonstração lógicas, e é a ele que a inteligência humana deve se moldar.

Assim, se o datum primordial tipificado pela revelação divina – no caso da revelação cristã – é de tal forma que obriga sua exegese doutrinal a se expressar em termos que sejam logicamente contraditórios, na perspectiva guénoniana isso só pode evidenciar que o datum primordial dessa revelação corresponde não ao nível mais elevado da realidade metafísica, mas apenas a algum nível subordinado – não ao Absoluto absoluto, mas a alguma relativização do Absoluto. Para corresponder ao Absoluto absoluto, o datum primordial de uma revelação específica deveria ser peremptoriamente tipificado em termos que se conformem às leis da lógica. Novamente, o árbitro supremo da decisão se o datum primordial de uma revelação específica corresponde ao Absoluto absoluto ou apenas a uma relativização do Absoluto, e portanto a um Absoluto relativo, são as normas da discriminação e demonstração lógicas. E tem de ser assim porque, na perspectiva guénoniana, não pode haver, em última instância, contradições entre a ideia do Absoluto absoluto e a demonstração supremamente lógica na qual a inteligência humana é capaz de operar. Na natureza das coisas, a mais elevada demonstração lógica a qual na inteligência humana é capaz de operar tem de corresponder ao Absoluto absoluto.

Ora, é evidente que, da maneira como esse contraste se definiu, a proposição da relação entre lógica e Absoluto estabelecida por Guénon assume um valor axiomático que não tem a mesma autoridade para os mestres doutrinários da tradição cristã ortodoxa. Evidentemente eles não podem aceitar que há  esse correlação ou concordância entre a ordem metafísica e a ordem da lógica, tão dominante para Guénon, pois se aceitassem chegariam a conclusões similares, pois as conclusões, dadas as proposições em questão,  são óbvias mesmo para a mais medíocre das inteligências. Ademais, os mandamentos da lógica aristotélica os quais essas conclusões pressupõem, e as quais Guénon se apega tão intensamente, são os lugares-comuns do treino filosófico que todos eles receberam. Portanto, se eles rejeitam – e eles rejeitam – tanto as proposições quanto as conclusões, eles sabem perfeitamente bem o que estão fazendo. Ora, então por que eles as rejeitam? Será que é pelo simples fato de que o datum de sua revelação, aceito de maneira inconteste, não se molde a elas? Não restam dúvidas de que, considerando-se o datum primordial de sua revelação como ponto de partida, eles aplicam a faculdade de discriminação e demonstração lógicas tão plenamente quanto Guénon a aplica. Mas eles o fazem apenas de maneira dedutiva. Eles não a aplicam, digamos, para cima, ou seja, não a aplicam para tipificar o Absoluto, pois consideram que tal operação excederia os limites aos quais as leis da lógica se aplicam.

Para os mestres da tradição cristã ortodoxa, o Absoluto não é um princípio lógico ou um princípio suscetível às leis da lógica. Não é da competência da dialética defini-Lo. Sua essência não deve ser interpretada por meio de silogismos ou demonstrada ou provada de acordo com critérios para além de Si mesma. O Absoluto é Sua própria demonstração, Sua própria prova, e a evidência que fornece de Si somente pode ser conhecida através de revelação direta ou inspiração profética. Consequentemente, eles jamais concordariam que aquilo que é logicamente necessário é, por isso mesmo, ontologicamente real, ou que aquilo que é possível deve, por definição, ser livre de contradições internas conforme estipuladas pelas normas da lógica.

Além disso, porém, e de maneira mais positiva, esses mestres consideram a lógica como uma função da ratio; e dado que a ratio é uma faculdade relativa e finita, cuja operação se dá somente com referência a algum ponto de partida, eles não consideram que o critério da lógica seja capaz de estabelecer qual deve ou não deve ser o ponto de partida, pois o que está em questão é o princípio máximo da ordem absoluta e infinita. Pensar de outra forma seria colocar-se na posição absurda de dizer que a ratio, que por definição opera somente de um determinado ponto de partida, é capaz de estabelecer o próprio ponto de partida do qual opera. Seria o mesmo que dizer que a ratio consegue operar sem ponto de partida, mas isso é precisamente aquilo que ela não consegue fazer. Se ela fosse capaz de fazer isso, a ratio, relativa e finita, seria senhora não apenas de suas próprias conclusões, mas também, no presente contexto, do próprio Absoluto. Assim, conforme dissemos, os mestres cristãos ortodoxos entendem que eles não têm o direito de aplicar os critérios da lógica para demonstrar, mesmo que seja em termos estritamente negativos, como o Absoluto deve ou não deve ser.

Se é assim, então por que, ou com base em quê, essa mesma proposição, que é tão consagrada e respeitável para Guénon a ponto de ele aplicar os critérios da lógica para demonstrar, mesmo que em termos negativos, o que o Absoluto deve ou não deve ser, assim como demonstrar o que tudo que se segue ao Absoluto deve ou não deve ser, não apenas é legítima mas obrigatória? Nem em Les États multiples de l´Être, nem, até onde pude apurar, em suas demais obras, Guénon fornece alguma explicação que estabeleça sua validade de lei incondicional da exegese metafísica. Em Les États multiples de l´Être, ele meramente a anuncia  como uma espécie de ipse dixit ao descrever como se distingue uma possibilidade de uma impossibilidade. Tudo o que podemos dizer é que, a menos que seja totalmente arbitrário, essa proposição pressupõe, conforme notamos, que a estrutura da ordem metafísica, supra-lógica em si, esteja refletida na ordem lógica, de forma que é na aplicação das leis da demonstração lógica que os princípios da ordem metafísica são mais bem tipificados. Em outras palavras, seria perfeitamente legítimo aplicar os critérios da lógica à ordem metafísica, e consequentemente tipificar essa ordem – dizer o que deve ou não deve ser –, pois ao fazer isso estaríamos apenas e tão-somente operando de uma forma que se justifica na própria ordem metafísica. Ora, trata-se de uma forma argumentativa puramente circular, e que ainda deixa sem resposta a questão de quem ou o quê valida a proposição da qual depende, a saber, que há uma correlação ou adequação inerente e necessária entre a ordem metafísica e a ordem lógica.

Portanto, a não ser que aceitar a proposição em questão seja um ato de fé arbitrário ou inespecífico, ainda resta a tarefa de identificar bases objetivas para aceitá-la. Pois ela de forma alguma se configura em uma proposição auto-evidente, nem é uma proposição a qual a lógica em si possa demonstrar sua natureza abalizada. Em verdade, não há maneira possível de que isso seja demonstrado sem se apelar a princípios ou critérios de demonstração que em si foram estabelecidos com base precisamente na mesma proposição, o que, obviamente, significa nada demonstrar: trata-se de mera repetição do mesmo argumento circular. Consequentemente, tudo o que nos restaria a fazer é assumir que ela é válida e seguir aplicando as leis da lógica à formulação da doutrina metafísica como se ela de fato fosse válida. Mas a autoridade da proposição em si está para além da prova ou da refutação.

Ademais, a aplicação dessa proposição na apresentação da doutrina metafísica parece revelar a incapacidade de validar o que ela afirma. Se começamos, como Guénon faz, com a ideia de um Absoluto, lograda mediante a aplicação dos critérios da lógica, que seja totalmente indeterminado, imutável, impessoal etc., chegamos à questão de fornecer alguma explicação adequada a como ou por que o Absoluto, no qual está incorporada a soma total da realidade, “passa” para a manifestação, ou para a aparência de manifestação; ou como ou por que o determinado surge do Indeterminado; o mutável do Imutável; o pessoal do Impessoal. Na explicação de Guénon desse processo, o princípio da manifestação é chamado de puro Ser. Enquanto princípio da manifestação, o Ser em si transcende a ordem manifestada e pertence à ordem não-manifestada. Ao mesmo tempo, ele diz que o Ser é a primeira determinação dessa ordem, e isso seria precisamente o que torna possível o Ser determinar a hierarquia dos estados múltiplos do ser que dele procede.

Ora, isso deixa sem resposta a questão sobre como o próprio Ser é determinado. A ordem não-manifestada, escreve Guénon, é feita de Ser e Não-Ser. O Ser engloba todas as possibilidades de manifestação, formal e informal, na medida em que estas serão manifestadas; o Não-Ser engloba todas as possibilidade de não-manifestação, incluindo o próprio Ser e a manifestação, na medida em que permanecem puras possibilidades. [15] Mas será que isso significa que o Não-Ser é o princípio do Ser no mesmo sentido que o Não-Ser determina o Ser? Não podemos afirmar isso, pois aquilo que é completo e infinito em sua não-determinação não pode determinar-se sem tornar-se menos e outro do que si próprio, contradizendo assim sua própria natureza, o que seria uma impossibilidade. Portanto, o Não-Ser não pode abarcar o princípio ou a possibilidade de autodeterminação: ele não é determinado por nada (pois o Não-Ser é “não-dual” e onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada) e ao mesmo tempo é impotente para determinar o que quer que seja (pois no âmbito do Não-Ser Absoluto não há nada a determinar e nada que possa ser determinado).

Isso significa que somos confrontados com um dilema. Tem de haver uma primeira determinação, pois caso não haja uma primeira determinação não é possível que haja determinações subsequentes e, assim, toda a teoria dos estados múltiplos do ser perderia sua fundamentação ontológica. Por outro lado, no Absoluto não há, de acordo com Guénon, um princípio que possa determinar a primeira determinação. É da necessidade de resolver esse dilema que Guénon anuncia o que poderíamos chamar de salto quântico metafísico. Diz ele: “O Ser não é determinado, mas determina-se a si mesmo”. [16]

Vale a pena nos determos um pouco mais nessa afirmação. A primeira parte da frase, em si, equivale a dizer que uma determinação não é determinada, o que sem dúvida é uma contradição em termos; enquanto que a segunda parte da frase assume novamente ares daquilo que Guénon chamava de absurdidade, pois viola a lei da não-contradição, cuja conformidade caracteriza para Guénon aquilo que é possível. Ora, em que sentido uma determinação pode determinar-se a si mesma ou ser seu próprio princípio? Nenhuma determinação pode possuir o princípio de seu próprio ser – ou seja, de sua própria determinação – em si mesma, pois isso seria o mesmo que dizer que há um princípio que existe à parte ou oposto ao Infinito, e isso acarretaria em contradizer toda a ideia de Absoluto conforme ensinada por Guénon. Todavia, conforme vimos acima, o Absoluto não pode, em Si, ser o princípio da determinação sem ao mesmo tempo contradizer Sua própria natureza. Ora, se o Ser realmente determina-se a si mesmo por meio de uma espécie de combustão espontânea, então há aí uma possibilidade de uma impossibilidade: uma possibilidade de que uma determinação que não possui o princípio de sua própria determinação em si mesma e é, portanto, com respeito ao Absoluto, rigorosamente nada e desprovida de qualquer ser ou existência [17], mas que mesmo assim é o princípio de sua própria determinação e de fato determina-se a si mesma.

Percebemos desde logo por que é necessário postular esta determinação inerentemente contraditória do Ser, pois do contrário seria impossível explicar a passagem do Absoluto indeterminado para a primeira determinação, o puro Ser, e assim construir toda a teoria subsequente da estrutura do universo. Mas isso não deixa de ser um tipo de deus ex machina sem o qual o dilema apresentado permaneceria insolúvel; nem deixa de ser uma violação da lei da não-contradição, ou seja, uma absurdidade, conforme Guénon define esse termo. Assim, a tentativa de apresentar um princípio metafísico supremo em termos que sejam logicamente consistentes introduz necessariamente uma inconsistência lógica na descrição de quaisquer determinações que sejam subsequentes a este princípio, e na descrição de quaisquer manifestações (ou aparências de manifestações) de quaisquer tipos.

Algo muito parecido acontece quando Guénon tenta “provar metafisicamente a existência da liberdade”. [18] Pois, conforme observamos no começo deste capítulo, a ideia de Absoluto, para Guénon, só pode ser expressa em termos negativos, e portanto a liberdade em seu sentido mais elevado tem de ser definida como a ausência de restrições, e não como um poder de autodeterminação. De fato, é impossível, dadas as premissas de Guénon, que a liberdade seja descrita em termos que não sejam negativos. Conforme também notamos acima, para Guénon o Absoluto não apenas é totalmente indeterminado, mas também não pode determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja; pois se pudesse determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja, Ele obrigatoriamente teria de determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja, pois do contrário violaria seu axioma de que uma possibilidade tem de manifestar-se simplesmente porque é uma possibilidade; o que significaria que não apenas o Absoluto estaria sob restrições e, portanto, desprovido de liberdade, mas também que Ele teria de se tornar menos do que o Absoluto, o que é uma impossibilidade. Daí que o Absoluto quâ Absoluto não possui princípio ou possibilidade de autodeterminação ou determinação; consequentemente, a liberdade, em seu sentido supremo, pode ser descrita não como um poder de autodeterminação, mas somente como ausência de restrições.

O argumento subsequente para “provar a existência da liberdade” no âmbito do ser ou manifestação recai nas mesmas dificuldades da argumentação acerca da determinação do Ser. O Ser, como a primeira determinação, é uma unidade metafísica. Aquilo que é uno está isento de quaisquer restrições. Portanto, o Ser possui liberdade, novamente no sentido negativo, enquanto ausência de restrições. Assim, enquanto o Não-Ser está isento de restrições e, portanto, livre porque é “não-dual” (conforme notamos, onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada), o Ser está isento de restrições e, portanto, está livre porque é uno.

Este argumento, que ignora certas questões que lhe são inerentes, novamente incorre em contradição. Pois o Ser é uma determinação – por definição, ele é a primeira determinação. Uma determinação, conforme explica o axioma de Guénon, é uma limitação; e, Guénon afirma também, [19] uma restrição é uma limitação. Como pode então o Ser, por definição uma limitação e portanto sob restrições, estar isento de restrições? Novamente, a tentativa de obter a consistência lógica a todo custo resulta na introdução, mesmo que sutil, de uma evidente contradição.

De fato, conforme poderíamos esperar das dificuldades encontradas ao explicar a determinação do Ser, existe o que podemos chamar de hiato no coração da metafísica de Guénon; e em parte alguma isso é mais evidente do que na maneira pela qual, em função de sua tipificação inicial do Absoluto (que lhe é imposta pelo sua doutrina acerca da relação necessária entre lógica e Absoluto), Guénon está compelido a contemplar o mundo da manifestação, o mundo dos fenômenos. Na realidade, dada a tipificação inicial do Absoluto, podemos dizer que a coisa realmente inexplicável é a existência deste mundo, ou a aparência de sua existência. Seria simples – dada a tipificação em questão – explicar a não-existência deste mundo; mas – novamente, dada a premissa – é virtualmente impossível explicar sua existência, ou a aparência de sua existência. Consequentemente, a existência (ou aparência de existência) só pode ser explicada invocando-se a ideia de que falta a ela a realidade genuína, o que equivale a dizer que a existência é, na verdade, não-existente.

A forma como esta conclusão se nos é imposta passa a ser óbvia quando levamos em conta o ponto de partida do argumento de Guénon. Se, como ele afirma, as possibilidades universais em seu estado não-manifestado são completa e totalmente reais em si mesmas, em sua  enclausurada exclusividade, de tal forma que elas absorvem ou incorporam a soma total da realidade em si mesmas, então qualquer desvio do estado de não-manifestação é também um desvio do Real, um desvanecimento na não-realidade. Do contrário, não poderíamos dizer que uma possibilidade possui a totalidade do Real em seu estado não-manifestado: se seu estado não-manifestado quâ estado de manifestação possuísse qualquer realidade, a conclusão teria necessariamente de ser que uma possibilidade não possui em si, em seu estado não-manifestado (no qual não podemos diferenciá-lo do Absoluto), a totalidade do Real, e tal conclusão contradiz a alegação inicial de que uma possibilidade não-manifestada seja total e exclusivamente real em si mesma.

De fato, conforme notamos, com respeito a seu estado não-manifestado e indeterminado, o estado manifestado e determinado de uma possibilidade universal é “rigorosamente nada”. Daí que somos forçados a aceitar que a existência, ou aparência de existência, é basicamente não-existente. Eis porque a tentativa de explicar o mundo da manifestação sai, digamos, derrotada já desde o início, pois não há, nem poderia haver, qualquer explicação plausível ou mesmo possível para o que não existe: a manifestação quâ manifestação é um tipo de ilusão ou sonho. Qualquer doutrina que estabeleça que a soma total da realidade esteja fora e acima não apenas da existência fenomênica mas do próprio Ser está fadada a reduzir o Ser e a fortiori a existência fenomênica a uma espécie de sombra insignificante. Ademais, tal doutrina leva a uma forma extrema de panteísmo: não um panteísmo que divinize a existência, mas um panteísmo que afirme a nulidade ou irrealidade da existência. A criação – ou mesmo a simples ideia de criação – não teria nenhum valor positivo ou significativo; enquanto que a criatura quâ criatura não teria nenhum destino eterno concreto.

Essa é a conclusão a que forçosamente chegamos se adotarmos a concepção inicial de Guénon acerca da natureza das possibilidades não-manifestadas e universais. Com efeito, tais possibilidades constituem uma espécie de Divindade sem Deus, no sentido de que não têm autor. Eis outra maneira de expressar esse raciocínio: se pudéssemos falar de Deus no contexto dessa doutrina, então não seria o Deus que determina tais possibilidades não-manifestadas e universais (pois, por definição, elas são essencialmente indeterminadas e indetermináveis). É precisamente o contrário: são elas que “determinam” o conteúdo ideal da natureza pré-ontológica de Deus. Em verdade, elas constituem essa natureza, no sentido de que não há distinções entre os dois: Deus enquanto Absoluto é a Possibilidade universal, o Onipossível. Isso significa dizer que não pode haver uma ideia de Deus, enquanto Absoluto, enquanto princípio livre determinante de suas próprias possibilidades, e portanto não pode haver uma doutrina da criação no sentido cristão do termo, pois tal doutrina pressupõe que Deus, enquanto Absoluto, não é idêntico somente à sua natureza pré-ontológica. Substituir a ideia de um Deus que determina suas próprias possibilidades por uma Divindade, ou Urgrund, de possibilidades universais que não apenas não têm autor mas que constituem em si o Absoluto significa tipificar o Absoluto como sendo um círculo essencialmente autocontido, autossuficiente e totalmente perfeito, um círculo impessoal, indeterminado e pré-ontológico, um círculo incapaz de relações vivas e reais ad extra. É por isso que podemos dizer que o que caracteriza doutrinas metafísicas tais como a de Guénon é a desvalorização radical da criação – ou da manifestação – a tal ponto que a reduz a pouco mais do que uma dimensão puramente negativa. De um ponto de vista especificamente cristão, podemos dizer sucintamente que o que caracteriza tais doutrinas é sua natureza anti-encarnacional e anti-sacramental.

No entanto, isso não significa que esse tipo de doutrina metafísica não seja fundamentalmente verdadeiro: essa é uma questão completamente diferente e não vou lidar com ela aqui. O que tentei ilustrar é apenas e tão-somente como a formulação da doutrina metafísica de Guénon deixa-se afetar por uma proposição particular acerca da relação entre a ordem da lógica e a ordem metafísica, como isso levou Guénon a tipificar até mesmo o princípio supremo da ordem metafísica em termos que se conformam à ordem da lógica e como, por sua vez, tal postura afetou sua apresentação dos demais aspectos da doutrina metafísica. Para Guénon, conforme dissemos diversas vezes, essa relação é uma relação necessária e inerente à natureza das coisas, e eis porque ele considera tal proposição como sendo axiomática. Mas na ausência de bases objetivas sobre as quais seu status de princípio hermenêutico de validade absoluta e universal possa se estabelecer, tal proposição parece ser nada mais do que uma suposição cuja verdade elude tanto provas quanto refutações. Mais importante, porém, é que sua aplicação prática parece destruir seu próprio propósito e resultar precisamente no erro que Guénon acusa os filósofos, qual seja, impor limitações à própria Possibilidade universal.

Vimos como a obediência da proposição em questão parece ser infringida em casos como a determinação do Ser e a “prova da existência metafísica da liberdade”. Mas para mostrar como tal proposição também resulta em impor limitações à Possibilidade universal precisaremos remontar à tipificação inicial de Guénon acerca do princípio metafísico supremo, ou seja, do Absoluto que constitui o datum primordial de sua exegese. Com base na verdade da ordem lógica segundo a qual toda determinação é necessariamente uma limitação, Guénon chega à sua ideia de Absoluto – de Infinito, ou Possibilidade universal – que pode ser expressa somente em termos negativos – termos tais como “indeterminado”, “impessoal”, “inqualificado” entre outros. No entanto, por uma espécie de duplicidade inerente à própria lógica, até mesmo a aplicação de termos negativos ao Absoluto como uma tentativa de preservá-Lo da determinação e, portanto, da limitação, acaba por produzir precisamente o efeito contrário ao desejado. Pois afirmar que o Absoluto é indeterminado, impessoal etc. é afirmar algo sobre Ele e, portanto, limitá-Lo – sim, limitá-Lo, já que exclui dEle tudo o que seja de natureza determinada, pessoal ou qualificada. Com efeito, até mesmo afirmar que o Absoluto possa ser tipificado em termos exclusivamente negativos significa, no fim das contas, afirmar algo sobre Ele e, portanto, limitá-Lo – sim, limitá-Lo, já que exclui dEle a possibilidade de ser tipificado em termos positivos. Parece-nos, portanto, um tanto paradoxal e irônico, que a aderência de Guénon à premissa de que o princípio metafísico supremo deva ser tipificado em termos consistentes com a lei da lógica – premissa essa que pressupõe a proposição de que há uma correlação rígida entre a ordem da lógica e a ordem metafísica – resulta em impor à Possibilidade universal precisamente o tipo de limitação a qual originalmente se tentava não impor.

Não haveria, então, uma maneira de evitar esse tipo de desagravo, ou desagravos similares? Talvez não, a não ser que adotemos uma postura apofática, ou negativa, ao Absoluta que seja mais radical do que aquela adotada por Guénon.  Pois a via negativa de Guénon não confere ao Absoluto a indeterminação que originalmente deseja, mas lhe impõe uma limitação que afeta essencialmente toda a doutrina metafísica. Afinal, a ideia de Absoluto que Guénon propõe nas páginas 17 e 18 de seu livro leva a essa conclusão, já que ele propõe uma demonstração puramente lógica, ou seja, um tipo de apofaticismo apodíctico. Um apofaticismo mais radical – um que não seja autodestrutivo – deveria começar com uma espécie de santa agnosia que se recuse a aplicar qualquer conceito que seja, não importa se formulado em termos positivos ou negativos, à natureza suprema ou Essência do Absoluto.

Assim sendo, segundo essa forma mais radical de apofaticismo, a Essência do Absoluto não pode ser tipificada como determinada ou livre de determinações, como Ser ou Não-Ser, como pessoal ou impessoal: o Absoluto está para além de qualquer afirmação assim como Ele está para além de toda negação. Isso não significa, porém, que nada deve ser afirmado ou negado acerca do Absoluto e que, portanto, não haveria a menor possibilidade de formular uma doutrina. Esse seria o caso se igualássemos o Absoluto – a soma total da Realidade – exclusivamente com sua Essência.  Com efeito, é exatamente isso que faz Guénon: ele iguala o Absoluto com a Essência. Para ele, Absoluto e Essência são termos intercambiáveis, e ambos constituem o princípio supremo, o datum primordial de sua exegese – ideia essa lograda mediante a aplicação do que poderíamos chamar de negatividade simples, cuja conclusão, segundo Guénon, é de que o princípio supremo só pode ser descrito em termos negativos. Mas o apofaticismo que se recusa a aplicar quaisquer conceitos que sejam à Essência, não importa se positivos ou negativos, não iguala o Absoluto com a Essência nem considera a Essência como sendo uma espécie de aspecto supremo do Absoluto. Esse apofaticismo, portanto, representa não uma negatividade simples, mas dupla: se o Absoluto é livre de determinações, Ele também não é livre de determinações; se Ele é Não-Ser, Ele também não é Não-Ser; se Ele é impessoal, Ele também não é impessoal; se Ele é não-manifestado, ele também não é não-manifestado; se Ele não está no tempo, ele também não deixa de não estar no tempo; e assim por diante. Toda negativa é verdadeira sob condição de que seja ao mesmo tempo negada, ou seja, contanto que a verdade resida na simultaneidade desta dupla negação. Em outras palavras, isso significa dizer que o Absoluto é livre de determinações e determinado, que é pessoal e impessoal, que é Ser e Não-Ser etc., sem que qualquer superioridade ontológica ou de qualquer outro tipo seja atribuída a nenhum dos dois termos de cada uma das tipificações. E este é o caso mesmo que nenhum dos termos dessas tipificações seja aplicado à própria Essência do Absoluto, pois o Absoluto não deve ser igualado com a Essência. Em termos mais sucintos, podemos dizer que o Absoluto transcende sua própria Essência.

Em outras palavras, a recusa em igualar o Absoluto somente com a Essência exige que reconheçamos que o Absoluto, em Sua realidade autocontida, Sua incognoscibilidade e cognoscibilidade, Seu Não-Ser e Ser, Sua indeterminação e determinação, seja tal que a ideia mais adequada para a inteligência humana concebê-Lo seja expressa em termos exclusivamente antinômicos e paradoxais. Consequentemente, trata-se de uma ideia que não se molda às demandas exigidas pela proposição a qual o próprio Guénon aderiu com tão incontestável entusiasmo.

Por fim, somos levados de volta à questão que esteve implícita ao longo de todo este capítulo. Por definição, a apresentação de uma doutrina metafísica deve ter um ponto de partida. Esse ponto de partida será identificado como sendo o princípio metafísico que se aceita como Absoluto, e será este o Absoluto que constituirá nosso datum primordial, ou ponto de partida, da exegese.

Porém, este Absoluto que constitui o datum primordial da exegese não será o Absoluto enquanto tal, ou seja, o que podemos chamar de Sua quididade intipificada. Ele será um Absoluto tipificado de uma maneira específica.  Isso significa dizer que Ele terá de ser tipificado como isto ou aquilo, ou como não-isso ou não-aquilo: determinado ou indeterminado, pessoal ou impessoal, Ser ou Não-Ser, Um ou Três, ou ambos os termos de cada uma dessas tipificações simultaneamente. Em outras palavras, não será o Absoluto enquanto tal, mas a ideia que se tem do Absoluto que constitui o datum primordial da exegese.

Essa ideia do Absoluto que constitui o datum primordial de uma exegese pode ser estabelecida, por exemplo, por revelação divina. Na falta dela, porém, a única alternativa é aceitar como datum primordial uma ideia de Absoluto estabelecida de acordo com algum outro critério. Neste caso, não seria a revelação divina, mas este outro critério que estabeleceria o datum primordial da exegese; com efeito, isso faria deste outro critério o princípio determinante supremo da própria exegese. Portanto, é de crucial importância saber que critério é esse, e por que nós daríamos nosso assentimento a ele, pois, em última análise, é este critério, e não a ideia de Absoluto, menos ainda o Absoluto enquanto tal, que determina a forma que a apresentação da doutrina metafísica irá tomar.

* * *

O próprio Guénon pleiteava que seu entendimento acerca da doutrina metafísica deriva do Vedanta, mais especificamente da perspectiva extrema não-dual que lhe confere Shankaracharya; e algumas das dificuldades que, do ponto de vista cristão, são suscitadas por essa doutrina metafísica são refletidas também nessa perspectiva metafísica do Vedanta. Pois segundo essa perspectiva, a doutrina metafísica tem como ponto de partida uma ideia de Aboluto, ou Infinito, que é totalmente inqualificada e totalmente livre de qualquer determinação ou particularização. Afirmar o que quer que seja acerca do Absoluto é, de certa forma, limitar e determinar, e portanto torná-Lo menos do que Absoluto; qualquer distinção ou qualificação que seja feita é transcendida pela não-determinação absoluta do “único verdadeiro não-dual” (o ekam ena advaitam) dos Upanishads. Indo ao extremo de sua discriminação entre permanente e impermanente, imutável e mutável, Ser e devir, e com a via negativa, ou apofaticismo, que em última instância recusa toda e qualquer ideia de determinação ou diferenciação no Absoluto por considerá-la como intrinsecamente limitante e imperfeita, o pensamento vedântico tende a se tornar “fixado” na ideia de puro isolamento (kaivalya) do Absoluto não-comunicável, não-participável (nirgunabrahma).

É aqui que a questão da manifestação, ou da aparência das coisas, é colocada nesta perspectiva extrema não-dual. O que é, afinal, que vem a ser, ou parece que vem a ser, na manifestação? Na forma extrema do advaita, a resposta é que, em última instância, nada vem a ser; o mundo não existe, ou é apenas a aparência de maya (nem ser nem não-ser, nem mistura de ser e não-ser nem ausência de mistura). De certa forma, não há questão sobre manifestação, pois maya é a própria categoria da questão, e a questão só pode ser colocada na medida em que o indivíduo que a coloca esteja envolto em maya.  Ora, assim que o indivíduo tenha superado a consciência marcante de seu eu individual (que em si é uma ilusão) e esteja livre da evanescente e deficiente categoria de maya, ambos, questão e questionador, desaparecem e são imersos no Absoluto, no verdadeiro Eu, o nada-além-do-Eu.  O Absoluto nunca, jamais, poderá ser outro senão o que é; Ele não pensa acerca do mundo ou do eu; Ele não pensa acerca de Si mesmo, mas em Si exclui toda “alteridade”, todo “fora de Si”. Ele é não-dual.

A ideia da isolação e pureza do Absoluto guarda ,porém, outro aspecto: Sua onipresença. É somente de um ponto de vista individual e inferior que o Absoluto pode ser oposto a maya, ou ao contingente. Na realidade, essas distinções não existem e são devidamente transcendidas pelo Absoluto. A realidade de tudo é o Absoluto; pois se houvesse uma realidade inferior ou distinta do Absoluto então o Absoluto não seria o Tudo: haveria algo externo a Ele que o limitaria. Por conseguinte, a realidade de tudo é o Absoluto: Ele está perfeitamente e exaustivamente imanente em todas as coisas, pois não apenas não pode existir nada distinto de Si mesmo, mas também Ele não pode conter nada que não seja Ele mesmo, pois Ele se dá a Si mesmo inteiramente e infinitamente em Sua infinita generosidade. Toda a realidade que a manifestação possui reside em seu principio não-manifestado e na medida em que não seja diferente de seu princípio: toda aparência do efeito enquanto tal, ou de sua diferença em relação a sua causa principial, é ilusória. A realidade da manifestação é a mesma realidade de seu princípio e não há outra realidade. Neste sentido a doutrina é panteísta: o Tudo e o Absoluto são um,muito embora na famosa imagem do Upanishad diga-se que há dois pássaros na mesma árvore, quando na realidade haveria apenas um pássaro, pois a distinção entre o um e o muito é ilusória.

Dito isso, ainda temos de enfrentar a questão original, isto é, a questão do jivatman que ainda não percebeu que “o fluxo e o absoluto são a mesma coisa” ou que há uma identidade, essencial e existencial, entre ele e o Eu infinito, o Brahma: de onde vem a ilusão do ser particular e a aparência do mundo? Quais são suas relações mútuas com o Eu, com o Absoluto? Qual seu sentido supremo? É aqui que a metafísica vedântica, partindo da esfera do Não Ser e da Não-Dualidade, decompõe-se em duas noções distintas, as quais, juntas, constituem as partes do que parece ser um dilema irredutível: uma parte é a noção de transformação ilusória (do Absoluto em Suas determinações: vivarta-vada) e a outra parte é a noção da transformação real (parinamavada).

A ideia da transformação ilusória do Absoluto – tudo o que existe é em realidade o Absoluto, e só a ignorância individual faz com que a realidade pareça outra coisa que não o Absoluto – preserva a pureza, simplicidade, imutabilidade e permanência totais do Absoluto, mas deixa inexplicado o fato, fictício ou real, da existência do erro. O Absoluto não pode errar; pois de que causa, então, cósmica ou supracósmica, procede tal ignorância segundo a qual eu erro ao pensar em mim como outro em relação ao Absoluto? Se a ideia de minha identidade distinta ao Absoluto é uma ilusão da qual devo escapar mediante a realização espiritual, como essa ideia pôde existir antes de mais nada? E se essa ideia é tão-somente uma aparência, sem realidade suprema, de maneira que em certo sentido nunca tenha realmente existido, então por que essa aparência surgiu? Responder que errei porque foi algo predestinado por causas passadas e mediatas, a despeito se sou ou não responsável por elas, não faz sentido, pois deixa sem resposta a questão de por que me inclinei, ou fui inclinado, a pensar que sou um ser particular antes de mais nada, e por que a corrente causal da ignorância da qual sou agora uma vítima foi ativada. Quem ou o que determinou em primeiro lugar que devo pensar acerca de mim mesmo? E por que foi determinado dessa forma?

Se para respondermos essa e outras questões similares tivermos de substituir a noção de transformação ilusória do Absoluto pela de Sua transformação real, então é possível darmos algumas explicações sobre como e por que o mundo, o eu, e sua identidade ou alteridade surgiram. Mas neste caso a pureza, a não-particularização e a imutabilidade do Absoluto são sacrificadas, e toda uma nova plêiade de dilemas se apresentam. É difícil evitar a conclusão de que, segundo o Vedanta, a relação entre o Absolto e a manifestação é algo incompreensível sem aventar a ideia de uma redução “acósmica” do mundo e dos seres particulares a uma aparência misteriosa de maya e da ignorância que dela faz parte, ou sem aventar a ideia da ruptura da simplicidade, imutabilidade e transcendência absolutas da Essência divina.

O que chama a atenção nessa doutrina, de um ponto de vista cristão, é sua aparente recusa em atribuir valores ou significados positivos à criação. Sob esse ponto de vista, portanto, essa doutrina pode ser descrita como sendo uma estrutura de pensamento pré- ou anti-encarnacional, no sentido de que não pode abarcar, e de fato não abarca, a realidade que é revelada na Encarnação do Absoluto na pessoa do Theanthropos, Cristo. Parece haver, a despeito de noções tais como a transformação real do Absoluto em contingente, um hiatus total entre o Absoluto e o mundo sensível manifestado até o ponto que podemos dizer que a coisa realmente inexplicável é a existência do mundo, ou a aparência de sua existência. Conforme notamos em relação à metafísica guénoniana, conquanto era simples, dadas as premissas da doutrina, explicar a não-existência do mundo, é virtualmente  impossível, dadas as mesmas premissas, explicar sua existência, ou a aparência de sua existência. Consequentemente, a existência (ou a aparência de existência) do mudo só pode ser explicada se afirmarmos que lhe falta toda e qualquer realidade genuína, o que equivale a dizer que o existente é realmente não-existente, ou que é um tipo de categoria de pensamento “maligno” e negativo.

Pois se o Absoluto em Seu estado não-manifestado é completamente e totalmente real em Si mesmo, em Sua exclusividade auto-enclausurada, de tal forma que Ele absorve ou exaure o pleroma da Realidade em Si mesmo, segue-se que qualquer afastamento desse estado de autossuficiência não-manifestado é também um afastamento da Realidade, um desvanecimento na não-existência. Se a condição de manifestação enquanto manifestação possui alguma realidade, a conclusão é que o Absoluto não possui a totalidade do Real em Si mesmo em Seu estado não-manifestado. Somos forçados, logicamente, a dizer que a existência, ou aparência de existência, é basicamente, enquanto tal, uma ilusão. Eis porque as tentativas de explicar a existência do mundo da manifestação guardam um certo aspecto de deus ex machina, pois na verdade não pode haver nenhuma explicação plausível ou mesmo possível para explicar o que é, antes de mais nada, uma ilusão. Qualquer doutrina que considere o Absoluto como a Realidade total, fora e acima não apenas da “existência” fenomênica mas do próprio Ser, está fadada a reduzir ambos, Ser e a fortiori a existência, a uma espécie de sombra insignificante.

Ademais, conforme também notamos, tal doutrina conduz a uma forma extrema de panteísmo: não que ela divinize a existência, mas afirma sua nulidade e irrealidade supremas. A criatura quâ criatura não pode ter destino concreto e eterno. Na verdade, a criatura quâ criatura representa um estado de cativeiro, mental ou físico, na irrealidade, cuja total libertação só é possível sob a condição de que cesse de existir enquanto criatura, sob qualquer forma e sob qualquer pretexto. Em outras palavras, não há espaço para a criatura no Absoluto. Conforme afirmamos acima, o Absoluto é um círculo essencialmente autocontido, autossuficiente e totalmente perfeito, impessoal e livre de distinções, sem a menor possibilidade de conter relações reais e vivas ad extra, sem nada alia a se, e por causa disso podemos afirmar que o que tipifica essa doutrina, como a de Guénon, é sua recusa em reconhecer significados positivos ou eternos na criação enquanto tal, ou seja, uma postura anti-encarnacional; e é precisamente isso que se reflete na visão desencarnacional da realização espiritual.

Evidentemente, a doutrina cristã de um Absoluto que seja triuno e pessoal, e sua ideia de que o que é criado e relativo tenha um destino eterno dentro do Absoluto, sem por causa disso deixar de ser criado e relativo, conflita com a forma não-dual extrema dessa doutrina. Do ponto de vista desse tipo de doutrina, a doutrina cristã reduz-se a uma espécie de idolatria, ou pelo menos reduz o Absoluto a um plano inferior ao que a doutrina originalmente Lhe confere. Com efeito, do ponto de vista dessa não-dualidade radical, e também, conforme vimos, do ponto de vista da metafísica guénoniana, qualificar o Absoluto do que quer que seja – afirmar que Ele é triuno e pessoal, por exemplo – é de certa forma defini-Lo. Qualquer definição, ou seja, qualquer tentativa de tornar o Absoluto finito, é por sua vez selecionar e enfatizar algum aspecto particular do Absoluto às custas de outro aspecto, e isso seria torná-Lo menos abarcante, menos inclusivo, do que antes dessa definição; é reduzi-Lo a uma espécie de Absoluto relativo. Toda determinação, portanto, é necessariamente uma limitação que envolve certa negação da natureza infinita do Absoluto, e eis porque a qualificação cristã do Absoluto enquanto triuno e pessoal não pode se referir ao Absoluto enquanto tal, mas a alguma determinação do Absoluto, rigorosamente e absolutamente transcendida pelo Absoluto e que com Ele não detém absolutamente nenhuma relação. O Absoluto absoluto é, e deve ser, totalmente indefinível, totalmente inqualificado, totalmente não-determinado, ou seja, Ele não pode admitir quaisquer particularizações ou participações.

O argumento novamente parece ser lógico; e se os cristãos quiserem manter sua visão acerca de um Absoluto triuno e pessoal que não represente um ponto de vista mais limitado do que o ponto de vista radical da não-dualidade, então eles têm de admitir também que não compartilham os mesmos conceitos acerca da relação entre lógica e metafísica que subsistem no argumento. Pois o que essa forma extrema de não-dualidade, como a doutrina neoplatônica ou a metafísica guénoniana, parece pressupor é que se ela pode demonstrar em termos puramente lógicos que certo princípio metafísico é superior – mais inclusivo, menos limitado e menos determinado – do que outro, então este primeiro princípio deve situar-se metafisicamente acima do segundo. Assim sendo, passa a ser possível demonstrar a superioridade da ideia não-dual do Absoluto em relação à ideia cristã, pois em termos lógicos qualquer qualificação do Absoluto implica necessariamente um grau de limitação e, portanto, de imperfeição, de maneira que somente o Absoluto totalmente inqualificado pode ser totalmente infinito e perfeito.

Eis porque os cristãos, caso queiram pleitear que sua ideia de Absoluto represente a Verdade mais plenamente do que a ideia de Absoluto da metafísica não-dual, também têm de pleitear que essa maneira de argumentar com demonstrações lógicas para se atingir conclusões metafísicas  oculta a questão da relação entre lógica e metafísica, questão sobre a qual detêm visões muito diferentes das visões que estão implícitas em tais doutrinas não-duais; e que sua ideia de um Absoluto triuno e pessoal, a despeito de qualificada e, portanto, aparentemente mais limitada de um ponto de vista lógico, não obstante reflete mais adequadamente a natureza do Absoluto do que a ideia não-dual. Na mesma linha, os cristãos também têm de afirmar que suas ideias sobre o significado positivo e eterno da criação, embora impliquem em um entendimento totalmente paradóxico e contraditório das relações entre o Absoluto e o relativo, não obstante refletem a verdade das coisas mais adequadamente do que as doutrinas não-duais da manifestação. Conforme dissemos, o que marca para os cristãos o conceito-limite, o ne plus ultra do pensamento humano, não pode ser a demonstração lógica, mas a contradição lógica.

* * *

A titulo de sumário, podemos dizer, de maneira um tanto elíptica, o seguinte: das duas visões que contrastamos, a primeira vislumbra o que podemos chamar de forma extrema de não-dualidade, enquanto a segunda visão é a da tradição cristã, sobretudo em sua forma ortodoxa.

Do ponto de vista da não-dualidade extrema, o Absoluto é supra-individual, supra-pessoal, supra-formal e divino. Daí que a verdade metafísica, a qual é identificada com o Absoluto, ser também supra-individual, supra-pessoal, supra-formal e divina.

Embora o Absoluto seja a Realidade em Si, ou seja, nada tem realidade a não ser o Absoluto, toda diferenciação e individuação, tudo o que possui forma e seja pessoal e que, portanto, possa ser distinto do Absoluto, representa uma ruptura, uma alienação do Real. Em última instância, representa algo irreal e ilusório.

Toda diferenciação e individuação necessariamente implica em limitação; e já que tudo o que é limitado não pode ser identificado com o Absoluto, o qual por definição é ilimitado, conclui-se que tudo o que é limitado tem de ser outro coisa que não o Absoluto.

Mas o Absoluto possui a totalidade do Real. Portanto, o que quer que seja distinto, ou que se distinga, do Absoluto e que seja, ou que se considere ser, outra coisa que não o Absoluto, deve ser cativo do irreal e do ilusório.

Isso significa que não há, nem pode haver, princípio de diferenciação ou individuação no Absoluto; pois, se houvesse, teria de operar e, portanto, produzir, o que é diferenciado e individuado.

Embora aquilo que é diferenciado e individuado seja, por causa disso, outro que não o Absoluto, e enquanto tal tem de ser irreal e ilusório, afirmar que o Absoluto possui um princípio de diferenciação e individuação o qual está obrigado a operar é o mesmo que afirmar que o Absoluto está obrigado a produzir o que é irreal e ilusório, o que seria um absurdo.

Daí que a unidade do homem com o Absoluto, a identidade do conhecido com o conhecedor, um pré-requisito de qualquer conhecimento metafísico, não possa ser uma bi-unidade, um estado de dois-em-um, unus-ambo, abarcando a pessoa individual e o Absoluto. Não pode ser uma unidade que não demande que todas as distinções entre um e outro sejam transcendidas.

Pelo contrário, a unidade do homem com o Absoluto, a identidade do conhecido com o conhecedor, pode ser alcançada somente mediante a pessoa individual transcendendo sua pessoalidade individuada e mediante a identificação de si com o supra-formal, supra-individual, supra-pessoal do Absoluto.

Essa visão, portanto, traz em si a completa negação do valor e da realidade do pessoal. Ela exige como condição de conhecimento metafísico um total impessoalismo – o anulamento e alienação da pessoa.

Ela também traz em si a negação do princípio apofático, segundo o qual, a despeito do grau de conhecimento metafísico que a pessoa possua, há sempre graus acima desse grau, já que a gnose divina é infinita.

Todavia, como é possível ao pensamento humano expressar-se em relação à verdade supra-formal a não ser em termos apofáticos?

Diz-se que o princípio da não-dualidade pode ser bem expresso pela fórmula tat tvam asi: “isto (o Absoluto) tu (o Eu ou ego) és também”.

Mas como o Eu dessa fórmula ainda pode ser o Eu se é igualado com o Absoluto supra-individual e supra-pessoal?

Ou em que sentido o “eu” que diz “eu sou” pode ser identificado com o Absoluto?

É o homem real ou é o ego ilusório que declara “Eu sou isto”?

Será suficiente que o ego diga “Eu sou isto” para deixar de ser ilusório?

E se há uma identidade essencial entre e Eu individuado e o Absoluto supra-pessoal, como é possível que o Eu caia na ilusão de pensar que não é o Absoluto supra-pessoal mas que possua uma existência individuada?

E se não há princípio de diferenciação ou individuação no Absoluto, como é possível que um Eu que seja igualado ao Absoluto diferencie-se do Absoluto e pense a si mesmo como uma existência pessoal individual?

Um princípio de diferenciação, mesmo que sua ação se limite a produzir a ilusão de ser diferenciado, não pode subsistir em um vácuo. Ou é inerente ao Absoluto, ou é um princípio que existe fora do Absoluto, ou seja, um princípio distinto do Absoluto. Mas neste caso o Absoluto não é o Absoluto, pois há um princípio ativo que opera independentemente dEle, e portanto um dualismo irredutível reside na base das coisas. [20]

Neste ponto podemos nos perguntar: por que esta recusa em reconhecer um princípio de diferenciação e individuação no Absoluto?

Por que esta recusa em reconhecer que o Absoluto existe em uma multiplicidade de existências individuais que Lhe são distintas? Por que se considera como uma forma básica de ignorância afirmar que a realidade é múltipla?

Que metafísica é essa que nega ao Absoluto um princípio de diferenciação e individuação?

E se há um princípio de diferenciação e individuação no Absoluto, como pode ele se expressar, ou seja, como pode o Absoluto agir de acordo com Sua própria natureza, a não ser postulando a realidade dos existentes individuais que não Lhe são iguais?

Em si, a individuação não é uma ilusão: ela advém da existência do próprio Absoluto – um devir em formas individuais que são espirituais e pessoas, imperecíveis e inalienáveis.

Em verdade, deste ponto de vista – o qual é o ponto de vista cristão –, podemos dizer que o segredo do Absoluto reside nas múltiplas formas em que Ele se manifesta, assim como o segredo dessas formas reside no Absoluto.

Não é minha individuação, ou minha existência pessoal, que é uma ilusão. É meu insucesso em afirmar, em termos ativos, minha existência individual, pessoal e espiritual em Deus que produz a ilusão; pois dessa forma eu atribuo a mim mesmo um tipo de existência independente, antinômica, na qual sou meu próprio Deus, e é esta concepção de mim mesmo que é ilusória e, para os cristãos, que expressa o estado decaído do homem.

Assim, na visão cristã, o homem é por definição uma forma na qual o Absoluto manifesta uma virtualidade de Sua própria natureza; e sua faculdade cognitiva suprema – o intelecto – embora deiforme e capaz, quando purificado, de conhecimento metafísico direto e experiencial de Deus, não deve ser identificado com o Absoluto (embora não seja, por isso, não-Absoluto), ou ser considerado como indiferenciado do Absoluto, ou supra-pessoal e supra-formal.

Isso significa que não importa por quais transformações um ser humano possa passar – e elas são ilimitadas – e não importa o grau de profundidade de sua união com Absoluto, ele jamais perderá sua identidade pessoal, espiritual e distinta, pois essa identidade é integral a seu destino eterno.

O ser humano é obrigado, portanto, a aceitar que jamais conseguirá exaurir a plenitude da gnose divina e que sua postura vis-à-vis a esta gnose deve ser sempre uma postura apofática.

Ademais, o ser humano está obrigado a aceitar que, a despeito da profundidade de sua união com o Absoluto, não apenas esta unidade será sempre bi-unitária, uma dupla unicidade, unus-ambo, mas também jamais conseguirá exaurir a capacidade para uma união ainda mais profunda.

Por sua vez, isso significa que o ser humano jamais possuirá in actu mais conhecimento metafísico do que o estado de sua união com o Absoluto lhe permitirá possuir.

Por fim, o ser humano vê-se obrigado a aceitar que o estado de divinização, ou theosis, que ele alcance, qualquer que seja ele, jamais transcenderá a forma espiritual e pessoal por meio da qual o Absoluto manifesta, e que por conseguinte dá existência concreta, a virtualidade inalienável e imperecível de Seu próprio Ser.

Isso equivale a afirmar que o conhecimento e a experiência da verdade metafísica do ser humano jamais excederá o conhecimento e a experiência acerca de seu próprio ser, de seu próprio eu.

Consequentemente, qualquer que seja o estado do ser e, portanto, o grau de conhecimento metafísico que alcance, esse conhecimento será sempre correspondente e matizado por seu estado de ser, pelo estado de sua própria identidade pessoal.

Qualquer tentativa de transcender essa identidade com o objetivo de adquirir absoluto conhecimento metafísico deve, sob a perspectiva cristã, representar nada menos do que uma tentativa de transcender os modos hierárquicos da harmonia universal. “Se o sol não se mantiver na órbita que lhe foi prescrita, os Eríneos, ministros da justiça, saberão recolocá-lo em seu caminho correto”. [21]

O contraste dessas duas visões reflete-se e sustenta-se evidentemente em seus respectivos entendimentos acerca do Absoluto. O princípio da não-dualidade sustenta-se por um entendimento do Absoluto que O iguala a uma Essência não apenas unitária, mas também totalmente indiferenciada: não se aceitam nela quaisquer distinções .

A visão cristã sustenta-se por um entendimento do Absoluto ao mesmo tempo unitário e triádico, ou seja, há distinções nas Pessoas do Absoluto e essas distinções, embora reais e indissolúveis, não por isso dividem Sua unitariedade.

Por conseguinte, o Absoluto cristão, o qual admite diferenciações, não é, do ponto de vista do Absoluto que se sustenta no princípio da não-dualidade, o Absoluto absoluto: as Pessoas da Trindade, neste último caso, só podem ser limitações do Absoluto, e não podem portanto ser identificadas com o Absoluto, que em Si deve transcender toda limitação e, consequentemente, todo personalismo.

Isso está em franca oposição ao entendimento cristão, segundo o qual é incorreto imaginar um Absoluto que seja não-pessoal, ou uma Pessoa que seja não-Absoluto. [22]

Poderíamos afirmar este contraste em termos mais simples e dizer que destas duas visões, a primeira confere alta prioridade à consistência lógica e daí tender a ser catafática, enquanto a segunda é mais antinômica em sua abordagem, e dai tender a ser apofática.

Assim, na primeira visão a consistência lógica é levada a ponto de afirmar que, dado um Absoluto essencialmente não-diferenciado, o que quer que seja diferenciado é menos real do que o Absoluto e, portanto, relativo, ou ao menos apenas relativamente Absoluto; e o que é relativo não pode ser Absoluto de maneira alguma.

Na segunda visão, por outro lado, a antinomia é levada a ponto de afirmar não apenas que o diferenciado não precisa ser menos do que Absoluto, e portanto relativo, mas também que é perfeitamente possível que o relativo seja Absoluto, e o Absoluto seja relativo, sem com isso comprometer a relatividade do relativo ou o absolutismo do Absoluto no mais mínimo que seja.

Pode-se dizer dessas duas visões que a primeira implica uma metafísica cuja primazia de origem no Absoluto é dada à Essência não-diferenciada, enquanto a segunda implica uma metafísica na qual tal primazia é dado ao ato de ser, a qual confere diferenciação: é o ato de ser que em si determina a Essência, enquanto na metafísica da primeira visão o ato de ser é visto como não-essencial, até mesmo irreal e ilusório, um acidente super-adicionado ou super-imposto ao Absoluto.

Devemos dizer ainda que a noção, implícita no conceito de não-dualidade, de que seja possível a nós seres humanos realizar nesta vida presente nossa identidade essencial com o Absoluto supra-pessoal e, por conseguinte, atingir um estado nesta vida presente cujo conhecimento seja não apenas universal e infalível, mas também que sejamos impermeáveis à vicissitude e ao erro, não é válida para o modo cristão de ver as coisas; pois nesta visão todos, a despeito de seu grau de perfeição, estão ainda expostos nesta vida presente a ambas contingências. Pensar de outra forma seria, sob o ponto de vista cristão, ignorar o mistério da liberdade humana, a qual é inalienável, não importa o estado de graça na qual se encontre.

[1] Cf. Marco Pallis, “A Fateful Meeting of Minds”, em Studies in Comparative Religion, Verão-Outono 1978, pág. 178-188.

[2] Cf. Whitall N. Perry, resenha da tradução inglesa de Le Roi du Monde, em Studies in Comparative Religion, Verão-Outono 1983, pág. 244-247. Cf. Marco Pallis, “Ossendowski´s sources”, em Studies in Comparative Religion, Inverno-Primavera 1983, pág. 30-41.

[3] Cf. Marco Pallis, “Le Voile du Temple”, em Études Traditionnelles, Julho-Agosto, Setembro-Outubro 1964, pág. 155-176; Novembro-Dezembro 1964, pág. 263-267; Março-Abril 1965, pág. 55-66.

[4] René Guénon, Le Symbolisme de la Criox (Paris, 1950), pág. 20, nota 2. A tradução deste trecho é de Philip Sherrard.

[5] As citações desta obra, cujas traduções são minhas, foram extraídas da edição de 1947 (Paris), e todas as páginas mencionadas nas notas de rodapé são dessa edição. Há uma edição inglesa, traduzida por Jocelin Godwin, publicada com o título de The Multiple States of Being pela Larson Publications (Nova York, 1984).

[6] René Guénon, Les États, pág. 17.

[7] Ibid. pág. 40.

[8] Ibid. pág. 17 e nota 1, pág. 17.

[9] Ibid. pág. 19 e nota 2.

[10] Ibid. pág. 123.

[11] Ibid. pág. 127.

[12] Ibid. pág. 83, 107, 122.

[13] Ou, como disse Guénon, “a metafísica não pode contradizer a razão, pois ela situa-se acima da razão”. Cf. Introduction to the Study of Hindu Doctrines (Londres, 1945), pág. 116.

[14] Uma descrição mais completa da doutrina da Trindade encontra-se no meu Church, Papacy and Schism (Londres, 1978), pág. 96-110.

[15] René Guénon, Les États, pág. 31-32.

[16] Ibid. pág. 132.

[17] Ibid. pág. 19.

[18] Ibid. pág. 127.

[19] ibid. pág. 127.

[20] O dualismo, que traz em si realidades completamente não-recíprocas e não-mutuamente interpenetrantes, não deve ser confundido com dualidade.

[21] Herakleitos, Diels-kranz 94.

[22] Este entendimento é em certa medida modificado pela tradição teológica que deriva de Santo Agostinho e passa através de Santo Anselmo e São Boaventura até os escolásticos; pois nesta tradição há uma tendência a se afirmar a primazia da essência não-pessoal da Trindade sobre a realidade concreta das Pessoas, obnubilando a integridade e coerência plenas da doutrina trinitária cristã.

Fonte: Philip Sherrard, Christianity: Lineaments of a Sacred Tradition, capítulo 4, pág. 76-114, Holy Cross Orthodox Press, Brookline, MA, EUA, 1998.