O conceito
de noûs é algo que se conhece há pelo menos 2.500 anos. Foi definido pelos
filósofos como sendo a fonte de verdade ontológica e como o receptor da verdade
nas almas individuais.
Na Ilíada,
Homero situa o noûs no coração. Heráclito (séc. V a.C.) se queixava de
que “muito conhecimento não ensina o noûs”. Anaxágoras de Clazômenas foi o primeiro filósofo pré-socrático a definir
o noûs: “O noûs é infinito e autogovernado, não se mescla com nada, mas
permanece sozinho, em si e por si”.
Já em Platão
(428-348 a.C.), o termo noûs é usado tanto no sentido de uma força
organizacional do cosmo quanto de uma parte mais elevada da alma humana. No Fédon,
o “noûs organizou o universo da melhor maneira possível”. No Fedro, Platão
apresenta a metáfora da alma humana: o cocheiro com um cavalo branco à direita
e um cavalo negro à esquerda. É a ilustração das três partes ou funções da
alma conforme entendidas por Platão: a racional, a corajosa e a apetitiva. O
cocheiro representa o noûs, a parte racional, a força dominante.
A realidade
metafísica de Platão concebe a existência de Formas ou Ideias. O noûs é a parte
da alma capaz de perceber esta verdade metafísica superior. No Livro VII de sua
República, Platão apresenta a alegoria da caverna. Um dos seres humanos é
liberto para sair da caverna quando então se depara com a luz brilhante da
verdade. Quando ele retorna à caverna para contar aos demais sobre a plena realidade
das coisas, eles resistem à verdade, riem dela, e dizem que esse homem se
corrompeu e até mesmo o ameaçam de morte. Ele se tornou, a exemplo do conto de Dostoievsky,
um homem ridículo.
A exemplo
de seus predecessores, Aristóteles (384-322 a.C.) define o noûs como uma força
cósmica dominante e como uma parte da alma humana. Com respeito aos seres humanos,
Aristóteles descreve o noûs como “a parte da alma por meio da qual ela conhece
e entende”. Aliado a isso, Aristóteles propõe dois modos de raciocínio humano,
o passivo e o ativo. O intelecto passivo está associado ao pensamento cotidiano
e à percepção sensorial: ele engloba tanto a alma como o corpo. Por outro lado,
o noûs é ativo e criativo, e “pode apreender as formas de maneira imediata, sem
o emprego de imagens”. Os especialistas até hoje debatem se Aristóteles entendia
o intelecto ativo como um aspecto da alma humana ou uma entidade que existe
independentemente do homem.
Aristóteles
atribuía a apreensão das premissas básicas da ciência analítica ao noûs.
Contudo, o uso mais elevado do noûs, para Aristóteles, é a contemplação divina,
a theoria, pois é ela que promove a maior felicidade (eudaimonia).
Aristóteles
rejeita as Formas de Platão, a possibilidade da relação entre uma imagem (no
mundo visível) com seu arquétipo ideal (no mundo celeste). Para Aristóteles, as
formas não existem independentemente das coisas. Uma “forma substancial” é um
tipo atribuído a uma coisa, sem a qual essa coisa seria de tipo diferente ou
cessaria de existir simplesmente. Segundo Philip Sherrard, em contraste com os
Universais do Mundo Inteligível de Platão, a visão aristotélica dos universais
é simplesmente uma categoria, “um nome de uma classe abstrata...não existem
universais à parte dos particulares concretos e nenhum universal é uma substância.
É impossível que um universal seja uma substância porque, segundo Aristóteles,
a substância de uma coisa é peculiar a esta coisa, enquanto o universal de
Platão é, por definição, aquilo que pode estar presente em uma multiplicidade
de coisas”. Sherrard entende que a cosmovisão platônica é instrumental na formulação
da doutrina cristã da Encarnação do Filho de Deus e da deificação do homem.
Sherrard está convicto de que a aplicação dos princípios aristotélicos ao ensinamento
cristão, conforme ocorreu no Ocidente no começo do século XII, alterou drasticamente
o entendimento da fé conforme originalmente exposta nas obras patrísticas.
A ideia do
noûs de Fílon de Alexandria (25 a.C. – 40 d.C.) estava associada com o Logos, o
instrumento de Deus para a formação do mundo. As Ideias platônicas também estão
situadas no noûs, ou Logos.
Para
Plotino, Deus é absolutamente transcendente, é o Uno, está para além de todo
pensamento e todo ser, é inefável e incompreensível. A primeira emanação do Uno
é o Pensamento ou Mente, Noûs, que é intuição ou apreensão imediata.
Plotino
compara a formação de uma bela alma com o esculpir de uma estátua: “O escultor apara
isso e corrige aquilo, pule aqui e limpa ali, até que exiba um belo semblante
na estátua, assim apara também tu todo o supérfluo, alinha todo o tortuoso,
limpa e faz reluzente todo o opaco e não cesses de moldar a estátua de ti mesmo,
até que resplandeça em ti o esplendor deiforme da virtude, até que vejas a
temperança assentada em sacra sede”.
Eis uma
evidente prefiguração do entendimento patrístico cristão da alma (ou do noûs) se
encontrando com Deus. Há, porém, um elemento fundamental que, para um cristão, falta
em Plotino: retirar-se em nós (alcançar a quietude interior, hesychia,
como os Padres da Igreja mais tarde o definiriam) é uma atitude que deve vir
acompanhada pela oração a nosso Salvador; e esculpir-nos em seres humanos virtuosos
é algo que somente pode ser cumprido com a ajuda de nosso Senhor Jesus Cristo,
em quem toda virtude foi manifesta no mais alto grau possível. Sem este foco em
Jesus Cristo, o ser humano inevitavelmente incorrerá no pecado do orgulho,
atribuindo-se a si mesmo a habilidade de um escultor. A Sagrada Escritura
ensina que Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. (Tiago
4:6) Mesmo assim são admiráveis os insights de Plotino, cujas concepções pavimentaram
o caminho da filosofia helênica à filosofia cristã.
Embora os filósofos
gregos reconhecessem a existência do noûs enquanto faculdade da apreensão de
Deus, ele nunca foi consistentemente associado com o coração. Os Santos Padres
enfatizavam o coração no sentido de que ele abrange o ser inteiro do homem – não
somente o intelecto, mas vontade, emoções e até mesmo o corpo. Não é surpreendente,
portanto, que São Macário do Egito (301-391 d.C.) situe o noûs dentro do coração.
São Gregório
Palamás escreveu: “O coração do homem é o órgão dominador, o trono da graça. O
noûs e todos os pensamentos da alma se encontram lá”.
Santo
Agostinho vislumbra no homem uma alma racional superior ao corpo, mas
independente dele. Ele atribui a esta alma a faculdade superior da razão, e a
chama de intellectus. Porém este intellectus não é o noûs conforme
ensinavam os Padres orientais. “O noûs deiforme [divino]”, escreve Philip Sherrard,
“encontra-se centrado no coração e é de uma ordem diferente e superior à ordem
psicofísica humana, enquanto o intelecto agostiniano é somente uma faculdade
mental superior da própria alma”. Na concepção de Santo Agostinho, o intellectus
é capaz de conhecer a Deus analogicamente enquanto causa do mundo natural, sensível.
Em outras palavras, o intellectus é a parte da alma racional do homem
que pode inferir o que Deus é observando Sua criação. Este entendimento está
mais próximo do conceito filosófico aristotélico do noûs. O noûs patrístico grego,
por outro lado, adquire um conhecimento “que compreende as coisas em um sentido
verdadeiramente universal...ao conhecer seus princípios divinos, não de maneira
abstrata e conceitual, mas por participação”.
O entendimento
de Santo Agostinho do intellectus enquanto aspecto superior, intuitivo,
da alma racional foi absorvido pelo filósofo e teólogo católico romano Tomás de
Aquino (+1274). Sob influência de Tomás de Aquino, a ênfase afastou-se do coração
e da intuição e aproximou-se das operações lógicas da razão.
Tomás de Aquino
igualou razão com intelecto, e atribuiu o conhecimento perfeito da verdade
inteligível somente aos anjos: “Pois entender é simplesmente apreender
imediatamente a verdade inteligível; e raciocinar é avançar de uma coisa
entendida a outra...os anjos, que, segundo sua natureza, possuem conhecimento
perfeito da verdade inteligível, não necessitam avançar de uma coisa a outra,
mas apreendem a verdade simplesmente, sem nenhuma argumentação mental...mas o homem
atinge o conhecimento da verdade inteligível ao avançar de uma coisa a outra; e
por isso é chamado de racional”.
Porém, tanto
na definição filosófica quanto na patrística, o noûs humano é capaz de
apreender imediatamente a verdade, semelhantemente à capacidade que Tomás de
Aquino atribui somente aos anjos.
Segundo
Philip Sherrard, a visão tomista das capacidades espirituais do homem
representa uma renúncia radical da tradição patrística. O tomismo alterou a concepção
cristã fundamental do homem de ser tripartite (noûs, alma e corpo, à imagem da
Trindade divina) para um ser bipartite, constituído somente de corpo e alma
racional. Assim, a razão se tornou um instrumento válido não somente para descobrir
a verdade natural e relativa, mas para descobrir a verdade divina e absoluta. O
noûs foi suprimido, senão eliminado totalmente, e assim o eu superficial,
egoístico, potencialmente cruel, ganhou espaço.
Sherrard
explica este estado como uma fragmentação, uma dualidade de consciência que
ocorre no interior da natureza humana decaída: “Há no homem uma diferença entre
seu eu mais íntimo e o eu que ele comumente, e erroneamente, se identifica, seu
eu empírico cotidiano; e talvez seja esta divisão em sua autoconsciência, e o
fato de que em seu eu mais superficial, empírico, exterior, o homem seja capaz
de ignorar e em grande medida tornar-se impermeável a seu eu interior, o
sintoma mais evidente da desarticulação interna do ser do homem, o qual, na tradição
cristã, a indicamos pelo termo Queda.”
As pessoas cujos
noûs se encontram dormentes, escuros, tipicamente se sentem indignadas e
irritadas quando são consideradas ridículas, não importa se chegaram a essa conclusão
por si mesmas ou se alguém lhes disse isso. Uma vez que o noûs esteja desperto
e a lei de Deus tenha precedência no coração, a postura dos outros importa
pouco. Sua ridicularidade não é mais tão importante nem relevante. A autoconsciência
acaba sentando-se no banco de trás.
A mensagem
central do livro Becoming a Healing Presence, de Albert Rossi, gira em
torno do seguinte versículo: Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus.
(Salmo 45:11 LXX / 46:10). Diz o autor: “Se não conhecermos a Deus, não conheceremos
a nós mesmos, pois somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Eis o que somos.
Decorre daí que, hoje, muita gente está em busca de sua identidade, de seu
lugar no mundo, de saber quem são. O único lugar onde encontramos quem somos
está em Deus”.
O capítulo “The
Healing Heart” está repleto de citações dos Santos Padres. Em particular, nos
interessa sua referência ao “cérebro cardíaco”, um novo conceito criado por
cardiologistas na década de 1990. Rossi relata que cientistas, ao longo de
várias décadas, vem demonstrando que “o coração físico é um órgão de grande inteligência,
que possui seu próprio sistema nervoso [e] seu próprio poder de decisão... O coração...emite
um campo de energia 5 mil vezes mais forte que o cérebro, um campo que pode ser
medido a dez pés [aprox. 3 metros] de distância”. A ciência de ponta o denomina
“cérebro cardíaco”, mas os resultados dessas pesquisas em neuro-cardiologia são
demonstrações da existência do noûs, o receptor ontológico conhecido pela
filosofia e pela teologia há séculos.
Fonte: Mary Naumenko, Restoring the Inner
Heart, Holy Trinity Publications, Jordanville, NY, EUA, 2019.