Quando
somos muito jovens começamos a construir uma narrativa, uma estória. Uma
estória sobre nós mesmos. Ela é composta de memórias e emoções. Com o tempo essa estória vai sendo recheada com comentários críticos de nossa parte, e eis que essa narrativa se torna o que realmente consideramos como
sendo nós mesmos. Essa estória que contamos a nós mesmos sobre quem realmente
somos passa a ser, então, a nossa identidade.
Essa
narrativa é revista todos os dias. A grande tragédia, do ponto de vista cristão,
é que essa narrativa, essa estória, na verdade não é nosso verdadeiro eu. Na
melhor das hipóteses, podemos chamar essa narrativa de ego. Distinguir o eu do
ego é uma das mais importantes tarefas da vida espiritual.
Na
literatura ortodoxa, o verdadeiro eu está centrado no coração: o lugar em nós onde
encontramos Deus e onde encontramos o Paraíso. Esse trono do eu, o coração, não
é uma narrativa construída, nem uma autoimagem, nem a projeção de medos e
desejos, nem está sob ameaça, nem precisa ser defendido.
O homem
moderno se aterroriza ante as doenças mentais, tais como as várias formas de demência,
mal de Alzheimer etc. Mas o que se perde aí é o ego, não o eu. Grande parte
desse terror vem do fato de que não conseguimos imaginar uma existência que não
esteja identificada com essa narrativa artificialmente construída pela mente.
Um dos
aspectos da nossa existência decaída é que a mente, nossos pensamentos e emoções,
acabaram por dominar o coração. Esse domínio chegou a tal ponto que as pessoas
em geral têm pouca ou nenhuma ideia da existência do coração. Pensamentos e emoções
devem servir ao coração, e não servir para criar uma ilusão de falso eu.
Se os
pensamentos e emoções fossem simples “informações”, os problemas que criam
provavelmente não existiriam. Mas o que ocorre é que os pensamentos e emoções frequentemente
provêm de fontes negras, obscuras. As memórias que moldam nossa narrativa também
desempenham seu papel na criação de nossas feridas. Nos lugares profundos e
escuros, mesmo lugares muito secretos, a necessidade do “ego” de proteger-se pode
se tornar algo esmagador, avassalador. Muito do material que compõe nossas ações
que confessamos como “pecado” vem precisamente dessas feridas negras.
Talvez o
lugar de origem mais comum dessa obscuridade seja o que chamamos de “vergonha”.
Enquanto “culpa” é o termo usado para descrever como sentimos quando fazemos algo errado, “vergonha” é o
senso de que somos errados. Em
muitas pessoas, este sentido profundo de auto-aversão atinge níveis extremamente
tóxicos.
Para que
estejamos certos sobre alguma coisa, a mente precisa encontrar algo ou alguém
que esteja errado. Em outras palavras, a mente está sempre procurando um
inimigo (a pessoa que está “errada”), pois sem um inimigo, a mente fica incerta
a respeito de sua própria identidade. Para a mente, a declaração de inimigo não
é uma falha de caráter, mas uma tarefa essencial e necessária. Infelizmente,
estar certo ou ter razão não é realmente o que as pessoas precisam, embora
seja a isso a que se dedicam a maior parte de suas vidas. Defender o ego é
quase sempre uma questão de tentar estar certo ou ter razão.
Os Padres são
muito claros a respeito disso tudo. Eles ensinam que antes de começarmos o
caminho da iluminação pela graça (conhecer a Deus e sermos conformados à Sua
imagem), é necessário o esforço prévio da purificação. Muitas pessoas se
dedicam à purificação como se estivessem em uma bicicleta ergométrica. Nós combatemos
um pensamento desordenado com outro pensamento desordenado, até mesmo lançando mais
repugnância e asco contra nós mesmos. Não somente julgamos a nós e aos outros –
também nos condenamos pelo próprio ato
de julgar.
O caminho
correto a seguir é reconhecer nosso verdadeiro dilema. A mente não será
ensinada a se comportar. São as fontes tóxicas em nosso ser interior que precisam
ser visadas. Recusar-se a aceitar as conclusões da narrativa interior, e do ego
que a gera, é algo fundamental ao arrependimento cristão.
Um dos
métodos que a mente utiliza para manter-se no “poder” é aprender um sistema de
pensamento ou crença e defendê-lo contra as coisas que o ameaçam. E podemos
fazer o mesmo com pessoas – criar um tipo de “lei canônica” na cabeça contra a
qual o comportamento das pessoas possa ser julgado. É esta comparação e este julgamento,
esta sistematização e defesa, que a mente verdadeiramente ama, e ela pode se
tornar muito boa nisso.
Se
ocuparmos a mente com “coisas religiosas”, mesmo “coisas religiosas ortodoxas”,
facilmente começaremos a pensar que estamos sendo fiéis. Julgamos nossas falhas
(raiva, ódio, inveja) como simples deslizes que podem ser ajustados e
corrigidos. Pois, dizemos a nós mesmos, eu sei mais.
As igrejas comumente
não passam de comunidades de mentes neuróticas, psicologicamente apressadas em
tentar fazer o bem, mas que se ferem umas às outras em nome de Deus a medida
que o ego opera desesperadamente para encontrar o que precisa, isto é, alimentar sua
narrativa autocriada. Em outras palavras, a paróquia frequentemente não é um
lugar seguro. Eis aí o “homem moral”, ou seja, o homem que vive para conformar-se a
normas e regras exteriores, a regras de aparência. Jesus não morreu para
transformar homens maus em bons, mas para transformar homens mortos em vivos.
O esforço
do ego em comportar-se bem tem pouco ou nada a ver com uma mudança profunda,
interior. Não há nada particularmente cristão em ser uma pessoa moral. O homem
moral e o homem imoral – ambos têm de ser “mortificados”, como diz o Apóstolo
Paulo.
“Ora, se eu
não sou quem eu penso que sou, então quem sou eu?” A resposta é: “Você está
escondido com Cristo em Deus”. Cristo revelará quem somos conforme aprendamos a
viver no coração e, assim, viver em Cristo. É aí que encontraremos o verdadeiro
eu que está escondido em Cristo.
Todos os meus sucessos, realizações, fracassos e derrotas, meu conhecimento e ignorância, tudo
isso não é o conteúdo da minha vida. Admitir isso é o começo do caminho da
humildade. Humildade não é sentir-se menos especial. É reconhecer que não
conheço meu verdadeiro eu. Meu eu é um livro aberto para que Deus nele escreva.
Meu eu é um recipiente vazio esperando a que Deus lhe dê conteúdo.
Memórias e
feridas, tais como a vergonha tóxica, que podem ter se originado em abusos,
sejam físicos, emocionais ou sexuais, podem estar ancorados no fundo de nosso
ser, e a partir de lá vomitam pensamentos e sentimentos a praticamente toda e
qualquer situação. Perfeccionismo, depressão, ansiedade, pânico, pensamentos críticos,
estes são apenas alguns dos comportamentos interiores que frequentemente estão
associados com a vergonha. Trabalhar junto com um confessor experiente
ou um conselheiro espiritual pode ser um bom começo. Para outros, um terapeuta
experiente e bem formado, ou uma terapia de grupo, pode também ser útil.
De qualquer
forma, o objetivo é trabalhar em favor de nossa salvação. Se há coisas e
feridas lá dentro, então temos de fazer o que for necessário para que sejam
curadas, senão continuaremos enfeitiçados e mancos. Apenas pintar essas feridas
com um verniz religioso não vai adiantar. A doutrina ortodoxa da salvação implica
em cura. Se tais feridas não forem curadas, a pessoa não conseguirá livrar-se
dos ciclos do falso eu. A batalha principal
e diária pelo coração e mente é o que podemos chamar de nepsis (vigilância, sobriedade). Pôr de lado ruído, dedução,
passado, futuro, medo, desejo, defesa, justificação, eis os principais esforços
desta batalha interior.
Não é
possível fazer isso tudo de uma vez. Reservar cinco minutos do dia para nossas orações
diárias é um bom começo. Respirar de maneira relaxada a partir do diafragma,
tal como respiramos quando suspiramos, ajuda o corpo a relaxar. Feche-se aos
pensamentos do passado e do futuro nestes cinco minutos. Pode ser muito difícil
no começo, mas ao longo do tempo você verá que os resultados virão, e manter nossa atenção
no momento se tornará mais fácil. O “momento” é de fato a entrada ao lugar do coração.
Claro, rezar a Oração de Jesus para a consciência do momento é o começo da “oração”
no momento. Nada disso deve ser forçado, e devemos ser pacientes ao longo de todo o processo.
A paciência é uma das virtudes do momento. Há dias que serão proveitosos, há
dias que deixarão a sensação de que você não avançou nada. Novamente, paciência.
Como diz o Apóstolo, Não estejais
inquietos por coisa alguma; antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas
diante de Deus pela oração e súplica, com ação de graças. E a paz de Deus, que
excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos
em Cristo Jesus.
Nossas
conversas, quando ouvimos ou falamos, fariam bem se partissem do coração, não do
ego. Então aqui lhes ofereço algumas sugestões, algumas ferramentas, que podem
ser úteis para que nos mantenhamos no coração; para falar do coração, para ouvir
no coração.
- Use poucas palavras. Fique em silêncio se possível. (Eclesiastes 3:3)
- Fale apenas a verdade, embora não seja necessário ser rude quando o fizer. (Efésios 4:15).
- Resista à tentação de defender-se. (Mateus 10:19) Quando nos defendemos dos outros, é muitíssimo comum que não nos preocupemos com o pensamento em si, mas com nosso falso eu e sua aparência. Então resista ao esforço de defender-se.
- Não é importante estar certo ou ter razão. (Provérbios 26:21)
- Não argumente. Seu efeito no ego alheio será nulo. (Oséias 4:4)
- Diga a sua ansiedade que tudo ficará bem. (Filipenses 4:6) Quando estiver ansioso e sentir a necessidade de falar, apenas diga a sua ansiedade que tudo ficará bem.
- Não tenha pressa em falar. Deixe que o outro termine seu pensamento. (Provérbios 29:20)
- Respire. Não tenho um versículo para esta sugestão, mas o que me vem à mente é Genesis. O primeiro ato de Deus depois de nos formar da argila é que Ele respirou em nós. Respirar pode ser um ato de receber Deus, então respire. O resto virá bem mais facilmente.
Fonte: Pe. Stephen Freeman, The True Self and the Story of Me e podcasts subsequentes, trechos seleccionados,
2012.