Falo aqui apenas das perseguições coletivas ou com
ressonâncias coletivas. Por perseguições coletivas entendo as violências
cometidas diretamente por multidões assassinas, como o massacre dos judeus
durante a peste negra. Por perseguições com ressonâncias coletivas entendo as
violências tipo caça às bruxas, legais em suas formas, mas geralmente
encorajadas por uma opinião pública superexcitada.
(1) O primeiro estereótipo da perseguição é o cultural, que de algum modo se eclipsa,
tornando-se indiferenciado.
Compreendendo isso, apreendemos melhor a coerência do processo persecutório e a
espécie de lógica que liga entre si todos os estereótipos de que ele se compõe.
Não temos de nos preocupar com as causas últimas dessa
crença, como, por exemplo, os desejos inconscientes de que nos falam os
psicanalistas, ou a vontade secreta de oprimir de que nos falam os marxistas.
Situamo-nos aquém disso. Nossa preocupação é mais elementar: interessa-nos
apenas a mecânica da acusação e o entrelaçamento das representações e das ações
persecutórias. Temos aí um sistema e, caso sejam absolutamente necessárias
causas para compreendê-lo, bastar-nos-á a mais imediata e a mais evidente. O
terror inspirado aos homens pelo eclipse cultural, a confusão universal que se
traduz pelo surgimento da multidão; esta, no limite, torna-se uma com a
comunidade literalmente não diferenciada, privada de tudo aquilo que difere os homens uns dos outros no tempo
e no espaço: eis, com efeito, que eles se reúnem de modo desordenado em um só e
mesmo lugar e momento.
A multidão tende sempre à perseguição, pois as causas
naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, não podem interessá-la. A
multidão, por definição, procura a ação, mas não consegue agir sobre as causas
naturais. Procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de
violência.
(2) Todas as acusações
estereotipadas circulavam a respeito dos judeus e de outros bodes
expiatórios coletivos durante a peste negra. Guillaume de Machaut, todavia, não
os menciona. Como vimos, ele acusa os judeus de envenenar os rios. Deixa de
lado as acusações mais incríveis, e sua relativa moderação se deve talvez à sua
qualidade de “intelectual”. Quiçá ela também tenha uma significação mais geral,
ligada à evolução das mentalidades no fim da Idade Média.
A finalidade da operação permanece a mesma. A acusação de
envenenamento permite lançar a responsabilidade de desastres perfeitamente
reais sobre pessoas das quais de fato não foram encontradas as atividades
criminais.
Nada acrescento quanto às acusações estereotipadas. Vemos
sem dificuldade que há sempre o mesmo estereótipo e sobretudo aquilo que o une
ao primeiro, ou seja, o da crise indiferenciada.
(3) Passo agora ao terceiro estereótipo. As minorias étnicas
tendem a polarizar com as maiorias. Temos aí um critério de seleção vitimaria, relativo a cada
sociedade, sem dúvida, mas que é transcultural em seu princípio.
Ao lado dos critérios culturais e religiosos, há os
puramente físicos. Há, por exemplo,
uma anormalidade social; aqui é a média que define a norma. Quanto mais a
pessoa se distancia do status social
mais comum, em um ou outro meio, mais crescem os riscos de perseguição. Vemos
isso sem dificuldade para aqueles que se situam na parte baixa da escala.
Vemos menos bem, ao contrário, que à marginalidade dos
miseráveis, ou marginalidade de fora, é preciso acrescentar uma segunda, a
marginalidade de dentro, a dos ricos e dos poderosos. O monarca e sua corte
frequentemente fazem pensar no olho
de um ciclone. Esta dupla marginalidade sugere uma organização social em
redemoinho. Em tempo normal, sem dúvida, os ricos e os poderosos gozam de todos
os tipos de proteções e de privilégios que faltam aos deserdados. Todavia, não
são as circunstâncias normais que aqui nos interessam, e sim os períodos de
crise. O mais breve olhar sobre a história universal revela que os riscos de
morte violenta nas mãos de uma multidão descontrolada são estatisticamente mais
elevados para os privilegiados do que para qualquer outra categoria.
Não há cultura no interior da qual cada um não se sinta “diferente”
dos outros e não pense as “diferenças” como legítimas e necessárias.
Não é a diferença no seio do sistema que significam as
marcas da seleção vitimaria, mas a diferença fora do sistema, é a possibilidade
para o sistema de diferir de sua própria diferença, ou, em outras palavras, de
não diferir do todo, de cessar de existir como sistema.
Os estrangeiros são incapazes de respeitar as “verdadeiras”
diferenças; eles não têm costumes ou não têm gosto conforme os casos; apreendem
mal o diferencial enquanto tal. O barbaros
não é aquele que fala outra língua, mas aquele que mistura as únicas distinções
verdadeiramente significativas, as da língua grega.
Contrariamente ao que se repete a nosso redor, não é nunca a
diferença que aborrece os perseguidores, e sim seu contrário indizível, a
indiferenciação. [Ou seja, a minoria é perseguida porque desperta na maioria a consciência
da indiferenciação. A maioria se atina para o fato de que sua cultura não é
realmente diferente].
(4) Há um quarto estereótipo, que é a própria violência;
dela trataremos mais adiante.
Fonte: René
Girard, O Bode Expiatório, Paulus,
São Paulo, 2004.
Imagem: William Hollman Hunt, The Scapegoat, 1856.