Numa impressionante obra publicada um século atrás, o
filósofo italiano Benedetto Croce se referiu à distinção, para ele radical,
entre a arte propriamente dita e a pseudoarte, cujo objetivo era entreter,
atiçar ou distrair. Essa distinção foi adotada pelo filósofo inglês R. G.
Collingwood, discípulo de Croce, que raciocinou da seguinte forma: quando me
deparo com uma obra de arte verdadeira, não são as minhas reações o que
interessa, e sim o significado e conteúdo daquele objeto. É a experiência o que
a mim se apresenta, a qual se incorpora de modo singular naquela forma
sensorial específica. Quando, porém, o que busco é entretenimento, não estou
interessado na causa, mas no efeito. Tudo aquilo que tenha o efeito certo me
parece bom, não existindo qualquer espaço para o juízo, seja ele estético ou
não.
A questão que Croce e Collingwood levantam é exagerada: por
que não posso me interessar por uma obra de arte e, ao mesmo tempo, sentir-me
entretido por ela? Não nos distraímos por
causa da distração, e sim da graça. A distração não se opõe ao interesse
estético, visto já representar uma forma dele. Assim, não surpreenderá perceber
que, ao desprezarem com tamanho exagero as artes que buscam o entretenimento,
tanto Croce como Collingwood esboçaram mais uma teoria estética implausível na
história da literatura.
Não obstante, ambos estavam corretos ao achar que há uma
grande diferença entre o tratamento artístico
de um tema e a mera promoção do efeito. Em certa medida, a imagem fotográfica
nos insensibilizou para este contraste. Se, a exemplo da moldura de um quadro,
o palco teatral impede a entrada do mundo, a câmera deixa o mundo entrar –
espalhando a mesma ratificação serena sobre o ator que finge morrer sobre a
calçada e o balão que acidentalmente paira por sobre a rua, em segundo plano.
Além disso, vemo-nos tentados a fazer desse defeito um encanto, encorajando uma
espécie de “vício pela realidade” no observador. Trata-se da tentação de
concentrarmo-nos nos aspectos da realidade que nos chamam a atenção ou
instigam, independentemente de seu significado dramático. A arte genuína também
nos entretém; no entanto, ela o faz ao nos afastar das cenas que retrata,
distanciando-nos o bastante para engendrar uma simpatia desinteressada pelos
personagens, e não emoções vicárias de nossa parte.
[...]
Essa distinção [entre o interesse estético e o efeito puro e
simples] pode ser reformulada como a distinção entre imaginação e fantasia. A
verdadeira arte encanta a imaginação, ao passo que os efeitos instigam a fantasia.
As coisas imaginárias são ponderadas; as fantasias, desempenhadas. Tanto a fantasia como a imaginação dizem respeito a
irrealidades; no entanto, enquanto as irrealidades da fantasia penetram e
poluem nosso mundo, as irrealidades da imaginação existem num mundo que lhes é
próprio e no qual vagueamos livremente com um complacente desapego.
A sociedade moderna está repleta de objetos fantasiosos,
visto que as imagens realistas da fotografia, do cinema e da TV oferecem uma
satisfação substituta a nossos desejos proibidos, legitimando-os, portanto,
dessa forma. Um desejo fantasioso não busca nem uma descrição literária, nem a
pintura delicada de um objeto, e sim um simulacro – uma imagem em que todos os
véus da hesitação foram rasgados. Esse desejo se abstém do estilo e da
convenção porque ambos impedem a formação do substituto e o submetem a um julgamento.
A fantasia ideal é perfeitamente realizada e perfeitamente irreal – um objeto
imaginário que nada deixa a cargo da imaginação. As propagandas comercializam
tais objetos, os quais pairam no pano de fundo da vida moderna e a todo momento
nos instigam a realizar nossos sonhos em vez de buscar as realidades.
As cenas imaginadas, por sua vez, não são realizadas, mas representadas; elas se apresentam
imbuídas de pensamento e estão longe de serem substitutos colocados no lugar do
inalcançável. Antes, são deliberadamente postas à distância, num mundo próprio.
A convenção, o enquadramento e a coibição são partes integrantes do processo
imaginativo. Nós só adentramos uma pintura por meio da moldura que afasta dela
o mundo em que vivemos. A convenção e o estilo são mais importantes que a
realização; e, quando os pintores adornam suas imagens com um trompe-l´oeil realista, muitas vezes
questionamos o resultado, declarando-os insípidos ou kitsch.
Fonte: Roger Scruton, Beleza, É Realizações, São Paulo,
2013, p. 111-115.
Imagem: Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus, c. 1485, Galleria degli Uffizi, Florença.