10 de julho de 2011

A importância da educação musical


Quem conhece a vida e a obra do Pe. Seraphim Rose sabe que ele recomendava a seus filhos espirituais que se familiarizassem com a música clássica, em especial Mozart, Tchaikovsky, Bach, Händel e Verdi. O propósito não é espiritual, evidentemente, já que há músicas clássicas tão ou mais mundanas do que músicas populares, mas psíquico. Em outras palavras, a música clássica ao menos serve para que a alma do cristão ortodoxo, acostumada aos desequilíbrios e desvarios provocados pelos produtos da cultura moderna, possa se refinar, preparando-se assim para mais tarde absorver com a devida retidão e proveito a literatura espiritual ortodoxa. Alguns anciãos de Optina também recomendavam música clássica para este propósito.

O Dr. Julian Johnson, musicólogo do Departamento de Música da Royal Holloway, University of London, apresenta insights interessantes que podem ajudar a entender essa superioridade intrínseca da música clássica em relação à música popular em seu Who Needs Classical Music? Cultural Choice and Musical Value.  Segundo o Dr. Johnson, música não é uma questão de gosto. Há na música como que um aspecto lingüístico objetivo. Se dissermos que “a Terra é plana”, as pessoas poderão objetivamente, com base nos conceitos, definições e fatos verificáveis, discordar dessa afirmação sem que digam que se trata de questão de gosto. Ora, a música também “fala” de maneira coletiva, ou seja, ela também pode ser avaliada e julgada de maneira objetiva. Eis aí a raiz da questão: a música possui um aspecto objetivo que transcende o gosto individual. Ocorre, porém, que, ao contrário da linguagem, a música é uma arte que tende a ser apreciada de maneira mais subjetiva, enaltecendo assim esse mal-entendido.

A música clássica apresenta um aspecto discursivo que está praticamente ausente na música popular. A música clássica exige atenção concentrada para captar esse aspecto discursivo, enquanto a música popular dispensa totalmente esse tipo de acompanhamento. Isso significa que a música clássica possui uma seqüência que, para sua plena compreensão, exige audição completa. Ninguém pensaria em ler um romance aos pedaços, de maneira entrecortada, assim como ninguém deve ouvir uma música clássica assim. Apenas este aspecto já explica porque 99% da música clássica é inacessível ao ouvinte de música popular. Segundo o Dr. Johnson, este aspecto consciencioso da música clássica advém da música litúrgica.

Por causa da incapacidade para detectar os elementos musicais subjacentes à música clássica, os ouvintes de música popular julgam-na “rígida” e “conservadora”. Esse tipo de análise, tipicamente popularesca, ignora que a música clássica concentra-se na estrutura, na forma, e é ali que se dá seu desenvolvimento. Schoenberg, Stravinsky e Beethoven são essencialmente mais “transgressores” do que Metallica ou Sepultura, cujas “transgressões” residem em seus aspectos meramente exteriores e superficiais.

O Dr. Johnson não deixa de observar que a música popular carrega uma qualidade de “objeto”, de “coisa”, que a música clássica por definição evita. A imediação da composição da música popular, seu formato simplório, repetitivo, descosturado, sua estrutura ritmicamente miserável (como a música rock), sua composição harmônica praticamente nula – tudo isso minimiza a possibilidade de que eventos extra-musicais causem danos à audição da música popular. Decorre daí que a música popular seja facilmente compactada nos formatos típicos da tecnologia moderna, como CDs, MP3, e que seja facilmente reproduzível em quaisquer ambientes, desde carros e aviões até supermercados e elevadores. Não por coincidência, a música popular é capaz de apresentar o curioso fenômeno do fade-out, isto é, o desaparecimento gradual do som ao fim das músicas, o que prova que falta nela uma tensão interna a ser resolvida ou concluída. A música clássica, por outro lado, não pode ser captada em poucos momentos, tornando sua coisificação praticamente impossível.

A música clássica assemelha-se ao pensamento: as idéias e motivos musicais são elaborados, desenvolvidos, transformados, interagidos, recordados, enredados. Todas estas atividades envolvem interação e resolução discursiva. A idéia de que basta ser capaz de ouvir para apreciar a música clássica é tão tola quanto a idéia de que basta saber ler para apreciar um poema em alemão. Assim como é necessário aprender e entender alemão para apreciar o problema, é necessário aprender e entender música para apreciar a música clássica. Alfabetizar-se musicalmente não é, claro, garantia de que o ouvinte será capaz de responder adequadamente à passagem do scherzo ao finale da Quinta Sinfonia de Beethoven, mas é fundamental para que o ouvinte vá além dos sinais superficiais e imediatos da música. Afinal, a premissa de que um dado elemento pertence à alta cultura é precisamente o fato de que a reação do indivíduo vá além da reação imediata a este elemento.

Assim, não me parece exagerado generalizar as seguintes relações entre os tipos de música e as sete potências da alma que almejam afetar:

  • música popular: sentido comum (percepção sensorial, memória, fantasia) + estimativa + concupiscibilidade + irascibilidade
  • música clássica: música popular + intelecto agente + intelecto paciente
  • música litúrgica/espiritual: música clássica + vontade

Conforme disse acima, o Pe. Seraphim Rose enaltecia a importância da música clássica. No entanto, até onde sabemos, ele não entrou em detalhes a respeito do que o ortodoxo acostumado à música popular moderna deve fazer para apreciar a música clássica. Acredito que a solução passe pela educação musical. Assim como devemos aprender a ler livros, devemos aprender a ouvir música.