18 de novembro de 2024

As virtudes intelectuais especulativas


O bem de cada ser é o seu fim. E, portanto, como a verdade é o fim do intelecto, conhecer a verdade é o ato reto do intelecto; por onde, o hábito que aperfeiçoa o intelecto para conhecer a verdade, tanto na ordem especulativa como na prática, chama-se virtude. (Tomás de Aquino, ST I-II, q.56, a.3, resp ad 2)

Ora, as virtudes intelectuais especulativas aperfeiçoam o intelecto, que é conhecer o ente, ou seja, chegar à verdade das coisas, descobrir o essencial. Aperfeiçoar o intelecto significa torná-lo mais maduro, consistente e estável.

Os hábitos especulativos do intelecto têm por objetivo, em conjunto, apreender o ente. Esta é a operação, o ato, por excelência do intelecto. Eis as três virtudes intelectuais especulativas:

(1) Intellectus (ou “virtude dos primeiros princípios”). É o hábito do conhecimento evidente dos primeiros princípios, que são superiores à razão por serem anteriores a ela e lhe darem seu fundamento. É uma “luz intensa”, um instrumento do intelecto agente, ou seja, não é algo adquirido, mas natural, um hábito entitativo. Os primeiros princípios de que falamos são, pois, pelo que deixa implícito o autor, do princípio de não-contradição, do princípio de identidade e do princípio do terceiro excluído. É o fundamento dos primeiros princípios da moral porque não há como a vontade apetecer um bem se o intelecto antes não conhece o ente. “Quando vemos um objeto e sabemos que ele é, quando entendemos que o todo é maior que a parte, que o triângulo tem três lados”.

Mas o hábito do intelecto é aperfeiçoável ("perfectível")? O autor não esclarece, mas o que ensina Angela Knobel, no capítulo 8 de The New Cambridge Companion to Aquinas (Cambridge University Press, 2022), é que, sim, o hábito do intelecto ("understanding", ou "entendimento", como ela chama) é perfectivel, e é por isso que Tomás o chama de "virtude". A minha dúvida surgiu porque fui levado a crer que os "primeiros princípios" captados pelo hábito do inteecto são somente os princípios evidentes a todos, como o princípio da não-contradição, da identidade e do terceiro-excluído. Mas não é bem assim. Há também os princípios que são evidentes, mas não a todos. A essência de uma determinada substância (p.ex. a propriedade curativa de uma erva) só será evidente depois que, precedido pela experiência e pela prática do hábito da ciência neste gênero de coisas, o indivíduo se tornar capaz de imediatamente, por meio do hábito do intelecto, captar tal nota essencial. Assim, a autora conclui que (a) o intellectus em si não é perfectível (ou seja, a habilidade de captar a essência dos entes é algo que depende, por exemplo, da compleição corporal), mas, (b) ele é, sim, perfectível dentro de seus limites naturais mediante a prática das demais duas virtudes intelectuais especulativas.

(2) Scientia (ou “virtude do raciocínio”). É o hábito do conhecimento não-evidente das causas particulares e inferiores, que opera mediante termos a partir dos primeiros princípios, das causas universais, imateriais e necessários de um determinado gênero de ente (ou seja, não as causas primeiras, mas as causas segundas e próximas desse gênero específico de ente). Em outras palavras, a ciência explica o que é e porque algo é assim. “O médico que estuda medicina possui um hábito da ciência médica ou da cura do corpo, entendendo as causas, as conclusões e princípios gerais dessa ciência”.

(3) Sapientia (ou “virtude das causas primeiras”). É o hábito do conhecimento das realidades de último grau, da verdade suprema, do ordenamento de todas as coisas. Não se trata dos primeiros princípios deste ou daquele gênero de coisas, mas do ente enquanto ente, o objeto supremo e próprio da metafísica. A sabedoria é (ou deveria ser) o mais desejado e amado fim do homem porque, enquanto se entrega a seu estudo, “já vai participando de algum modo da verdadeira beatitude”. O sábio ordena a si mesmo, sua vida, suas paixões, sua vontade conforme a causa primeira, que é Deus. Por isso o intelecto às vezes é chamado de capacidade “violenta” da alma, precisamente porque nos torna aptos a dominar nossos movimentos passionais e agir de acordo com a vontade espiritual.  Não basta, portanto, conhecer a causa primeira e julgar as coisas por ela, mas é necessário ordenar todas as coisas também. É no exercício dessa virtude que reside a felicidade humana (ainda que imperfeitamente), pois o intelecto é, afinal, algo de divino em nós. Vale lembrar, embora seja óbvio, que não falamos aqui de , mas do exercício da especulação de Deus por meio da razão.

Estas virtudes, bem como as demais virtudes intelectuais (prudência e arte), estão todas ligadas ao fim último do homem (de todos os homens), que é o ato de conhecer. O conhecimento começa pelo conhecimento dos entes e se desenvolve (ou deveria se desenvolver) naturalmente até atingir a luz de verdades mais altas e supremas. Evidentemente esse apetite por conhecimento só poderá concluir-se na visão beatífica, ou “visão da essência divina”.

Fonte: Willian Kalinowski, O intelecto e as virtudes intelectuais em Santo Tomás de Aquino, Contra Errores Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2022.