20 de julho de 2024

A verdade


Não se faz beber um asno que não tem sede

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O indiferentismo, em face da verdade, é um erro contra a natureza. Negar a necessidade da verdade é negar a própria inteligência, é rebaixar o homem ao plano do animal. Deixaremos, de bom grado, aos defensores dessa tese o cuidado de destruir o homem e povoar os zoológicos.

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Longe de ser uma marca de orgulho, a posse da verdade é a marca de certa humildade. É o sinal de que a inteligência soube deixar-se gravar e ser informada. [...] A inteligência não aborda a verdade como um superior.  Aproxima-se como um mendigo, um inferior. A inteligência está a serviço da verdade, e não o inverso. Serviço afetuoso, por certo, e entusiasmado, porém respeitoso.

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O subjetivismo: "A doutrina realista da verdade é sufocante. O homem nela não tem a parte criativa e extensora que lhe é devida. A verdade é uma construção".

O pai dessa maneira de ver é Kant. Lê-se no prefácio da 2a edição da Crítica da Razão Pura: "Admitiu-se, até aqui, que todos os nossos conhecimentos deveriam regular- se pelos objetos; mas, nessa hipótese, todos os nossos esforços para estabelecer, a respeito desses objetos, qualquer julgamento a priori pelo nosso conhecimento não conduziria a nada. Que se pesquise, então, uma vez, se não seríamos mais felizes, nos problemas metafísicos, supondo-se que os objetos se regulam pelo nosso conhecimento".

[...]

Conhecer uma coisa não é inventá-la, é descobri-la tal qual é.

A diferença profunda entre o subjetivismo e o realismo pode ser assim resumida: o realista é um livro, o livro do real. O subjetivista escreveu-o.

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Para nos estimular no trabalho, leiamos o comentário de Santo Tomás sobre as palavras do Senhor: "Eu sou a Verdade" ( Jo. 14, 16). Introduzindo-nos no próprio coração de Deus, que dita o seu Verbo eternamente, ele nos indica o cume da verdade, para o qual devem tender todos os nossos esforços. Deixa-nos, assim, imaginar como uma sã filosofia pode servir à fé tornando-a mais penetrante. Enfim, mostra-nos a disciplina a que deverá submeter-se aquele que queira atingir a verdade total: Aderir ao Verbo, entrar na escola de Jesus Verdade. Aos homens que têm sede de verdade, diz Jesus: "Eu sou a Verdade". A verdade lhe vem por ele mesmo, pelo fato de que ele próprio é o Verbo. A verdade não é nada mais do que a adequação da coisa com a inteligência, o que se realiza quando a inteligência concebe a coisa tal qual é. A verdade da nossa inteligência nos vem, pois, do nosso "verbo", que é a sua concepção (o "verbo" interior é o conceito que nasce na inteligência quando ela conhece. É a presença imaterial, como a proclamação, em nós, da coisa conhecida que nos torna a inteligência semelhante à coisa). Entretanto, mesmo que o nosso verbo seja verdadeiro, ele não é a própria verdade, dado que não é verdadeiro por si mesmo, mas pelo fato de que é adequado à coisa conhecida. Para a inteligência divina, a verdade volta ao Verbo de Deus. Mas o Verbo de Deus é verdadeiro por si mesmo, dado que não é medido pelas coisas, ao passo que, ao contrário, as coisas não são verdadeiras senão na medida em que alcançam certa similitude com o Verbo. E, pois, o Verbo de Deus é a própria Verdade. E, como ninguém pode conhecer a verdade se não adere à verdade, é necessário que quem deseje conhecer a verdade adira ao Verbo.

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É, pois, no contato inicial da inteligência com o ser que é preciso buscar a evidência, a certeza primeira anterior a todo raciocínio. Ela nasce dessa primeira abertura da inteligência à existência das coisas, na qual esta se entrega àquela, e na qual o sujeito vê, pelo fato mesmo de que conhece, sua aptidão de extrair o verdadeiro.

As evidências primeiras resumem-se nesta simples afirmação: "Eu conheço alguma coisa".

Afirmação que pressupõe uma tríplice evidência:

— a existência das coisas que me envolvem;

— a existência desse "eu" que conhece; e

— a aptidão da inteligência para conhecer, sua ordenação natural ao ser. Noutras palavras: a possibilidade e a existência da verdade.

Nesse contato inicial e imediato, o ser entrega à inteligência suas próprias leis. São os primeiros princípios do ser: o princípio de identidade e de não contradição (o ser é; o não ser não é; todo ser é o que é; não se pode ser e não ser ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto); o princípio de causalidade (tudo aquilo que não é por si é por outro); o princípio de finalidade (todo agente age para um fim)...

São evidências que não se podem negar sem interditar todo conhecimento, e daí toda verdade, toda linguagem, toda vida.

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Poder-se-ia aplicar-lhe o que diz o Salmo 35, a respeito do ímpio: Noluit intelligere ut bene ageret (v. 2): Ele não quer refletir para agir bem. Não quer obedecer a uma regra externa. Aceita desconhecer a verdade. Aceita a eventualidade de estar em erro de preferência a curvar-se.

Essa mentalidade nos convida, ao contrário, a uma grande lealdade em face da verdade. Já que a entrevimos, tomemo-la como ao sol de nossa existência. Em face de tal ou qual vício, de tal ou qual hábito maléfico, de tal ou qual conivência com o mal, não fechemos os olhos, como quem não viu. Ao contrário, declaremos guerra, em nós, à ilusão, a fim de estabelecer, na nossa vida, o reino da verdade.

Fonte: Jean-Dominique, A verdade, Edições Santo Tomás, Formosa, GO, Brasil, 2023. Trechos selecionados.