O “enigma quântico” que Wolfgang Smith
afirma desvendar é o colapso do vetor de estado. Para tanto, Smith parte da
ideia de que a manifestação de um objeto é apenas uma parte do que ele
plenamente é. A percepção, portanto, é incapaz de “esgotar” o objeto. Se o
objeto fosse capaz de manifestar-se plenamente, então não seria um objeto
corpóreo, da mesma forma que um círculo sem o traço que o delimita deixaria de
ser um círculo. A redução do intelecto e sua intuição (ou “abstração”, como
provavelmente diriam os escolásticos) ao raciocínio é um dos vilões da falta de
cosmovisão da física matemática moderna. O raciocínio analisa, i.e., dissocia,
enquanto o intelecto capta de um só golpe aquilo que o próprio Deus dispôs como
já unido. Afinal, não foi o próprio Tomás de Aquino quem disse que o raciocínio
é algo defeituoso em nós?
Não é a primeira vez que Smith diferencia o
que é corpóreo do que é físico. Já o vimos fazer isso com a proverbial maçã: a maçã corpórea e a maçã molecular. A maçã é o objeto
corpóreo X, enquanto a maçã molecular é o objeto físico associado SX. Ambas não
são a mesma coisa. Aliás, os dois são tão diferentes a ponto de, a rigor,
ninguém nunca jamais ter visto uma maçã molecular pela frente. A maçã molecular
depende do ato de presentificação, ou seja, X é a presentificação de SX.
Ambos, X e SX, ocupam a mesma região do espaço, isto é, têm como que uma
“continuidade geométrica” entre si. Isso é importante salientar porque o que o
físico quer, afinal, não é tanto a maçã molecular, mas a apreensão intelectual
da maçã. Ele quer, antes de mais nada, por meio de uma série de medidas e
leituras contingentes da maçã molecular (SX), entender o que é necessário da maçã
corpórea (X). O físico aplica um modelo ao objeto físico para, a partir daí,
extrair/medir/ler o que quer que o modelo lhe diga. O modelo mecanicista, que
triunfou a partir sobretudo de Newton, foi usado para desvelar praticamente
todos os fenômenos físicos: acústica, termodinâmica, óptica, química etc. Mas o
surgimento do eletromagnetismo representou uma novidade: por mais que o próprio
Maxwell tenha feito uso do velho conceito de “éter”, o modelo então vigente mostrou-se
incapaz de explicar os fenômenos eletromagnéticos, e uma estrutura puramente
matemática suplantou o mecanicismo newtoniano. No entanto, o emprego de
representações ingênuas permanece de certa forma no eletromagnetismo: os
vetores são indício disso. No caso da física quântica, o emprego de
“partículas”. Tudo isso, defende Smith, deveria ser definitivamente abandonado
em favor de uma postura rigorosamente simbolista. As “partículas” são a
tentativa pictórica de tampar o fosso ontológico entre os domínios físico e
corpóreo.
No caso específico da física quântica,
Smith se pergunta se haveria um subconjunto especificável de observáveis, ou
seja, se haveria alguns observáveis que poderiam ser medidos e, a partir daí, determinar
os valores de todos os demais observáveis. Não é por acaso: os sistemas
“macroscópicos” funcionam assim. Por exemplo, se medimos alguns observáveis,
digamos, de um carro ou de um edifício, pode-se determinar com segurança o
comportamento dos demais observáveis, dentro de um sistema física específico.
No entanto, no que tange à teoria quântica, a redução do sistema a seus
observáveis é algo que sabemos não ser possível. O caso do elétron é típico:
dizemos que o elétron tem tal posição e tal momento, quando na verdade estes
atributos clássicos nem mesmo existem. É por isso que dizemos que o elétron ora
parece uma partícula, ora uma onda, ora “salta”, quando na verdade seus
atributos são logicamente incompatíveis. Mas será que as leis da lógica não
valem para o “mundo microscópico”? Sem querer fazer trocadilho, é lógico que
valem. O que não vale são as premissas metafísicas adotadas pela física moderna
que, além de não se aplicarem à física quântica, tampouco se aplicam à física
“mecânica”.
O elétron não tem posição nem momento. O
que ele “tem”, tecnicamente falando, é um vetor de estado, ou seja, um
valor médio e o desvio padrão em relação ao valor esperado do observável. O
vetor de estado não determina medições individuais, mas é uma mera distribuição
estatística dos resultados possíveis. Mas o que há de “incerto” nisso? Por
acaso é “incerto” o valor esperado ao lançarmos uma moeda, que pode dar cara ou
coroa? Ocorre que o estado inicial de um sistema isolado determina os estados
futuros desse sistema, mas não seus observáveis. Por um lado, as equações de
Schrödinger garantem o determinismo, enquanto o princípio de Heisenberg garante
a indeterminação. Sim, é verdade que uma medição num sistema físico causará uma
destruição do determinismo e, portanto, o colapso do vetor de estado (quando o
vetor se reduz a um único autovetor do observável i.e. uma probabilidade que
saltou agora para o valor 1, o que indica certeza, muito embora os demais
observáveis permaneçam uma síntese de possibilidades). Mas, enquanto perdura, é
um sistema que se comporta de modo determinista. Novamente, sim, o determinismo
quântico está longe de ser um determinismo clássico. Mas e daí? O que se perdeu
no mundo quântico não foi o determinismo, mas o reducionismo, ou seja, a ideia
tola de que o mundo corpóreo (a maçã) é apenas um mundo físico (a maçã
molecular). Em outras palavras, os sistemas físicos microscópicos constituem um
tipo de potência aristotélica com relação ao mundo real.
Em suma, o vetor de estado é um espectro de
possibilidades (potência), que por sua vez colapsa em função da medição (ato).
A passagem da potência ao ato é a passagem da potência para o mundo real
corpóreo. Portanto – e isto é importantíssimo – para Smith não existe isso de
“mundo físico microscópico” e “mundo corpóreo macroscópico”, mas “mundo
potencial microscópico” e “mundo atual macroscópico”. Em outras palavras, SX
existe como potência e X existe como ato (ou como diria Heisenberg, “coisa ou
fato”).
As investigações no campo quântico levantam
a suspeita de que há uma espécie de “terceiro substrato ontológico” para além
do mundo corpóreo e o mundo físico microscópico. Um nível ontológico que
contenha a “totalidade indivisa”, nas palavras de Smith. Veja-se, por exemplo,
o teorema do entrelaçamento de Bell, no qual uma observação efetuada no fóton A
afeta o fóton B instantaneamente (ora, cadê a “velocidade da luz” de
Einstein?). Tais partículas não parecem ser partes que existam separadamente.
Smith entende que um objeto físico nada mais é que uma manifestação particular
de uma realidade total. Claro, o objeto existe no espaço e no tempo e
exibe certa identidade fenomênica. No entanto, em si mesmo ele excede os
limites dessa aparente identidade, mergulhado numa potência ainda
indiferenciada sobre a qual nada de específico pode ser dito. A predileção de
Smith pelo modelo hilemórfico é óbvia.
Há, no entanto, uma adaptação da teoria
clássica que procura englobar, ou seja, tornar determinística, a mecânica
quântica. Trata-se da teoria de variáveis ocultas, exposta por De Broglie e
David Bohm. Será então que a questão do universo ser determinístico ou
indeterminístico é meramente de gosto? Smith entende que a questão não deve ser
resolvida no âmbito técnico-científico, mas metafísico: não é necessário que
ambas as posições sejam mutuamente excludente; a indeterminação é como que
“inserida” dentro da determinação, convivendo com ela (lado Yin da
moeda).
No entanto, o hilomorfismo em si, ou seja,
apenas a forma e a matéria, não podem explicar tudo. Há ainda duas outras
causas, a final e a eficiente, que devem ser levadas em conta. Não sem surpresa,
Smith repete o velho artifício de aglutinar as quatro causas em causa material
e formal (vimos tal expediente em Émile Boutroux, por exemplo), mas neste caso ele mantém a causa eficiente (como também
o fazem os tomistas, que ensinam repetidas vezes que é necessário um agente em
ato para provocar em um ente a passagem da potência ao ato), aludindo ao nome
de natura naturans (o “naturante”, digamos) em contraste ao natura
naturata (o “naturado”, digamos). O naturado, portanto, pressupõe o
naturante; em outras palavras, o natural pressupõe o sobrenatural (o “doador de
formas”). Nota-se aqui uma clara diferença entre a descontinuidade mecânica clássica
e a descontinuidade quântica: na mecânica clássica, a descontinuidade (por
exemplo, a consumação de um resultado no lançamento de um dado com probabilidades
anteriormente calculadas) dá-se no tempo e, em verdade, não é propriamente uma
descontinuidade; na mecânica quântica, a descontinuidade (por exemplo, no
colapso do vetor de estado uma vez que se faça a medição de um observável) dá-se
instantaneamente, e eis que aqui há uma descontinuidade real autêntica.
É no nível quântico que observamos uma
ordem de causalidade diferente da causalidade temporal que verificamos em
objetos compostos de grande quantidade de partículas. É uma causalidade que não
é deste mundo. Trata-se de uma causalidade primária que atua em cada aqui e
agora, sem exceção. Daí se depreende que os objetos corpóreos não são realmente
compostos de “partículas subatômicas”, mas, pelo contrário, o fato mesmo de
serem corpóreos implica que já não há nada “subatômico” ali. As “partículas
subatômicas” são partes genuínas de um todo ontológico. Segundo Smith, “pode-se
dizer que toda medição de um sistema quântico constitui um ato cosmogênico que ‘participa’ do Ato único da criação”. Trata-se da causalidade
vertical.
Fonte: Wolfgang Smith, O enigma quântico, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2019.