A maioria das
pessoas acha que estar ocupado consiste em fazer algum tipo de trabalho, seja
para ganhar a vida ou para algum outro propósito. O tempo que elas passam quando
não estão trabalhando ou ocupadas acabam dedicando a alguma forma de diversão.
Também usamos palavras como "recreação" e "lazer" para as
atividades que ocupam o tempo que as pessoas não estão ocupadas ou trabalhando.
O que resta
do tempo de nossas vidas (as horas de cada dia ao longo de toda a nossa vida
não ocupada por trabalho, diversão e lazer) é ocupado em parte pelo sono e
outras atividades biologicamente necessárias, como comer, beber, tomar banho, atividades
físicas e ir ao banheiro, ou é preenchido com mera ociosidade.
O que chamo
de "ócio" não é o que geralmente se entende por ociosidade -
tempo vazio ou meros passatempos para matar o tempo. O ócio é uma forma
muito útil de atividade que deve fazer parte da vida de todos. Para torná-lo
parte da vida de alguém, não é necessário tentar estar sempre ocupado enquanto
acordado, ou mesmo se entregar às atividades de diversão e lazer.
Existem, na
minha opinião, seis partes da vida: sono, trabalho, brincadeira, lazer, ócio e
descanso. São atividades que podem ocupar o tempo de nossas vidas. Nenhum é
mera ociosidade - tempo vazio ou passatempos. Para explicar as duas partes da
vida que geralmente não são reconhecidas e adequadamente compreendidas - o ócio
e o descanso - é necessário primeiro distinguir o trabalho de brincadeira e
depois distinguir duas formas de trabalho. Não é preciso explicar as atividades
biologicamente necessárias, para as quais uso a palavra "sono".
Trabalho
e brincadeira
O trabalho
consiste em todas as atividades sérias que realizamos para algum propósito –
para algum fim ao qual o trabalho serve como meio de alcançá-lo. O objetivo pode ser
ganhar a vida. Nesse caso, o trabalho é economicamente necessário, assim como o
sono é biologicamente necessário. O propósito pode ser alguma forma de autoaperfeiçoamento.
Nesse caso, o trabalho é moralmente necessário, pois somos obrigados a fazer o
que pudermos na direção do autodesenvolvimento. Mas em ambos os casos, o
trabalho nunca é feito por si mesmo, mas sempre em prol de algum bem para o
qual o trabalho serve como meio de obtenção.
Em nítido
contraste, a brincadeira é uma atividade na qual nos engajamos por si mesma –
apenas pelo prazer que desfrutamos no próprio ato de brincar. Se, por exemplo,
nadarmos, corrermos ou nos envolvermos em outras formas de exercício para o bem
de nossa saúde, e talvez mesmo sem gostar da atividade em si, então não é
brincadeira. Pertence ao sono e demais atividades biologicamente úteis.
Aqueles que
se dedicam profissionalmente aos diversos esportes, como futebol, basquete,
beisebol e tênis, e ganham dinheiro com isso, podem estar jogando e trabalhando
ao mesmo tempo, mas apenas se extraírem algum prazer em executá-lo. Quando seu
único interesse no esporte que praticam é o dinheiro que ganham, então é
puramente trabalho e não brincadeira.
A pura
brincadeira é algo que fazemos pelo prazer inerente à atividade e por nenhum
outro motivo. Quando a brincadeira é recreativa no sentido literal de servir
para relaxar da fadiga, das tensões e do estresse do trabalho e para recriar a
energia de que precisamos para continuar trabalhando, então é como o esporte que
praticamos por causa de nossa saúde. É uma brincadeira utilitária, não uma
brincadeira pura, porque além do prazer inerente à própria atividade, que a
torna lúdica, há também algum propósito ulterior em ação – algum fim a ser servido
além do prazer desfrutado.
As duas formas
de trabalho
Existem
alguns empregos que as pessoas aceitam apenas com o propósito de ganhar a vida.
Como não possuem meios independentes e precisam de um meio de subsistência,
devem trabalhar para obtê-lo. Mas esse trabalho é realizado apenas por
causa do sustento que tem de ganhar. Se pudessem ganhar a vida de outra
maneira, desistiriam desses empregos. Se, por sorte, elas herdassem riquezas
suficientes para isentá-las da necessidade de ganhar a vida, elas nunca mais
passariam um instante sequer realizando esse trabalho.
Esse tipo
de trabalho deveria ser chamado de "labuta". A labuta é o tipo de
trabalho que ninguém faria, exceto pela compensação extrínseca - o pagamento ou
salário obtidos por fazê-lo. Isento da necessidade de ganhar a vida ou tendo a
oportunidade de ganhar a vida com alguma outra forma de trabalho, ninguém em sã
consciência continuaria labutando.
Como
chamaremos essa outra forma de trabalho, trabalho que não é labuta? A única
palavra que conheço que serve para designá-lo adequadamente é a palavra “lazer”.
Para explicar por que tenho essa estranha visão, devo lidar com o atual uso
indevido da palavra “lazer” e também com sua etimologia e seu histórico na
tradição do pensamento ocidental.
De todas as
palavras do nosso vocabulário diário, a palavra “lazer” está entre as mais mal
utilizadas. Em primeiro lugar, é usada como sinônimo de “tempo livre” -- tempo
que não é ocupado pelo trabalho. Quando, nesse sentido, falamos de nosso tempo
de lazer, estamos usando a palavra como adjetivo. Mas a palavra deve ser usada
como verbo, como as outras palavras que nomeiam atividades. Brincadeira consiste
em brincar, labuta em labutar, sono em dormir. Assim, também, lazer (substantivo)
consiste em lazer (verbo).
Em segundo
lugar, usamos mal a palavra “lazer” quando identificamos o lazer com a
bricadeira. A maioria das pessoas, quando questionada sobre como gasta seu
tempo livre, o tempo não ocupado com trabalho e sono, responde que o gasta em
atividades recreativas ou lúdicas que consideram como atividades de lazer.
Passeios de barco, pesca, caminhadas, montanhismo, todos os tipos de brincadeiras
e jogos, atléticos ou não, são, para eles, atividades de lazer. Dado que cometeram
o primeiro erro de identificar lazer com tempo livre, elas são levadas a
cometer o segundo erro de identificar o lazer com qualquer atividade que ocupe
seu tempo livre. Já que não é trabalho, então deve ser brincadeira.
Os antigos
distinguiam brincadeira de trabalho e lazer de labuta. A palavra grega que
traduzimos pela palavra “lazer” foi a palavra skole, da qual derivamos a
palavra “escola”. Uma nota essencial na conotação de skole era o
aprendizado - tudo o que resultava no desenvolvimento humano, mental, moral ou
espiritual. A palavra inglesa leisure deriva do latim licere e do
francês loisir, significando o que é permitido ou o que não é obrigatório.
No sentido em que o sono é biologicamente necessário e a labuta é
economicamente necessária para aqueles que não podem obter seu sustento de
outra forma, o lazer é opcional ou permissível. No entanto, como veremos,
também é moralmente necessário para aqueles que reconhecem sua obrigação de
fazer o máximo possível de si mesmos – aprimorar a si mesmos, alcançar o
autodesenvolvimento.
Muitas
pessoas ganham a vida ensinando, educando, pesquisando cientificamente,
escrevendo livros, compondo ou tocando música, pintando quadros ou esculpindo,
e assim por diante. Se elas continuassem a se envolver em tais atividades mesmo
que não tivessem necessidade de ganhar a vida, então tais atividades teriam o
aspecto de lazer. Se elas interrompessem tais atividades no momento em que sua
necessidade de ganhar a vida cessasse para elas, então o que estão fazendo é
pura labuta para elas, sem nenhum aspecto de lazer.
O trabalho
é muitas vezes uma mistura de labuta e lazer. O trabalho também pode ser puro
lazer, mesmo quando compensado por alguma forma de pagamento, se for feito em
prol do autoaperfeiçoamento ou em benefício da sociedade. E quando tal trabalho
é feito apenas para autoaperfeiçoamento ou para o benefício da sociedade, é
puro lazer desprovido de qualquer compensação monetária extrínseca. Nós nos
dedicamos a esse lazer quando lemos para aprender, quando cumprimos os deveres
de cidadania, quando nos envolvemos em atos de amizade ou amor, ou quando
empregamos nossas habilidades criativamente em qualquer forma de produção
artística.
Um livro
famoso escrito por um economista americano, Thorstein Veblen, recebeu o título
incorreto de The Theory of the Leisure Class. O que Veblen escreveu foi
sobre os ricos desocupados, aqueles com riqueza suficiente para passar toda o seu
estado de vigília em brincadeiras ou ociosidade, com pouco ou nenhum lazer.
Ócio não
é ociosidade
Eu disse
que há seis partes da vida. Além das quatro partes da vida já discutidas – sono,
brincadeira, trabalho e lazer – há ainda o ócio e o descanso. Descanso ou descansar
não é o mesmo que dormir. A maioria das pessoas que diz “Vá descansar” quer
dizer “Vá deitar e dormir”. Mas isso dificilmente pode ser entendido por
aqueles que entendem o que a Bíblia quer dizer quando diz que, depois de criar
o universo, Deus descansou no sétimo dia; ou por aqueles que falam de descanso
celestial; ou por aqueles que observam o sábado como um dia de descanso, isento
de trabalho, brincadeira e até mesmo de lazer.
A maneira
como os membros das religiões ortodoxas observam o sábado como dia de descanso
indica o significado desse termo. Passam o dia na sinagoga ou na igreja,
rezando e contemplando a Deus. Esse descanso os eleva acima das ocupações
comuns da vida diária. Ele transcende as exigências de todas as outras
atividades mundanas. Para os não-religiosos, uma experiência análoga, que tem
aspecto de descanso, ocorre na contemplação da beleza, seja na natureza ou nas
obras de arte.
Finalmente,
chegamos ao ócio e seus benefícios. Todos nós entendemos o que significa dizer
que um automóvel está em ponto-morto. Seu motor está funcionando, mas não há
nenhuma marcha engatada e, portanto, o carro não irá a parte alguma. Da mesma
forma, estamos ociosos quando, enquanto acordados, paramos de trabalhar, de nos
divertir e de brincar, e deixamos nossa mente funcionar sem usá-la
intencionalmente em uma direção ou outra. O que quase sempre acontece, então, é
que surgem em nossas mentes coisas que valem a pena considerar - coisas que não
teriam ocorrido a nós se persistíssemos em nos manter ocupados com labuta ou
lazer, ou nos divertindo.
Por que
isso costuma acontecer? A resposta é que, durante as horas de trabalho, seja
labuta ou lazer, muitas coisas entram em nossas mentes que deixamos de lado ou as
reprimimos porque não servem diretamente ao propósito em questão. Embora sejam
afastadas ou reprimidas, não são totalmente descartadas ou aniquiladas. Elas
permanecem em nosso subconsciente esperando pelo tempo de ócio, quando podem
aparecer em nossas mentes despertas, mas sem propósito. Falar de mentes que
estão despertas, mas sem propósito, é fazer uma analogia delas com os automóveis
que estão com seus motores funcionando, mas sem nenhuma marcha engatada e,
portanto, indo a lugar nenhum. Se insistirmos em estar ocupados o tempo todo,
seja no trabalho ou nas brincadeiras, perdemos a criatividade espontânea que
vem do ócio.
O ócio mais
proveitoso é aquele que ocorre nas horas de vigília após o término do trabalho,
especialmente se esse trabalho tiver um grande componente de lazer e não for
mera labuta. Podemos ficar parados enquanto voltamos do trabalho para casa,
dirigindo ou usando algum outro meio de transporte. Mas se nesse processo lemos
jornais ou revistas, ouvimos música ou assistimos à televisão, evitaremos o
ócio.
O mesmo
vale para o tempo passado em casa depois do trabalho e antes do jantar. Se, no
momento em que deixamos o trabalho para trás e não temos nada para fazer até
nos sentarmos para jantar, nos mantemos ocupados lendo, assistindo televisão ou
até mesmo batendo papo, então nos privamos das vantagens que derivam do ócio.
A vida será
mais pobre por conta desta privação, assim como será mais pobre se não for
enriquecida pelo prazer da brincadeira, pelo proveito derivado do lazer e pela
alegria do descanso. Uma vida pobre é aquela consumida pela labuta e pelo sono,
com pouca ou nenhuma brincadeira e pouco ou nenhum lazer, sem falar no ócio e
no descanso. Uma vida rica é aquela que tem pouca ou nenhuma labuta, muito
lazer (compensado e não compensado), uma quantidade moderada de brincadeira e
momentos suficientes de ócio e descanso para aproveitar os benefícios que podem
ser extraídos dessas partes muito especiais da vida humana.
Fonte: Mortimer J. Adler, Idling: Why It Is So Important Not to Be Busy All the Time