O corpo de uma pessoa -- não somente suas formas mas também seu gesto e porte -- oferece uma informação extensa e intensa acerca da vida dessa pessoa; frases como "ter o coração na mão", "ficar de cabelo em pé", "fazer das tripas coração", "ficar sem ar",...escondem uma riqueza intuitiva nada desdenhável e mesmo assim continuamos a estabelecer grandes distâncias entre nosso corpo e nossa mente, nosso corpo e nossa vida e consequentemente continuamos a nos guiar exclusivamente por nossas crenças e desprezando as mensagens corporais.
Esse dualismo de longínqua origem antropológica -- amplamente reforçado pelo dualismo religioso amor/sexualidade -- é uma das fisuras de nosso mundo ocidental e seu preço é caro: a substituição do conhecimento pelo controle.
Os efeitos dessa substituição têm sido traduzidos por um conflito interno contínuo, por uma luta pelo controle, mas não um controle saudável de nossas emoções, mas um domínio permanente e intolerante de quase todas as manifestações de nosso corpo, e como consequência dessa luta, nosso domínio egoísta do entorno, do que como organismos vivos formamos parte inseparável e sem a qual não poderíamos sobreviver. Costumamos entender por personalidade o caráter e o temperamento de um indivíduo, assim como suas convicções e a escala de valores que vai formando ao longo de sua vida. Ou seja, é a expressão particular de cada ser humano: tal como aparece diante de nós e tal como se vê a si mesmo. Etimologimente o conceito deriva da "máscara" que utilizavam os atores para que os escutassem melhor. Se aproveitamos o símbolo que isso representa podemos afirmar que a "autoconsciência" se reduz habitualmente à "ideia que temos de nós mesmos" e mais concrectamente à soma de nosso status e papéis sociais. Mas talvez isso tenha pouco a ver com o que somos em realidade, já que em nossa consciência habitual não costumamos incluir, por exemplo, a percepção de nossas funções vitais, essenciais para a sobrevivência, nem uma ideia coerente da mencionada relação simbiótica com o entorno.
Nos guiar unicamente por nossas suposições e crenças, sem nos darmos a possibilidade de escutar nossas intuições e percepções sensoriais, implica em nos guiar por uma informação muito parcial de toda a informação que temos a nosso alcance; parcial e deformada. Perigosamente confundidos pelo mais simples e evidente, acreditamos ter uma pele, quando somos uma pele, acreditamos ter um órgão genital, quando somos um órgão genital, acreditamos ter um corpo, quando somos um corpo. Costumamos perseguir objetivos que são "símbolos" culturais como o poder, o controle, a fama, a honra, a glória...e desprezamos os prazeres cotidianos acessíveis e reais, os quais não precisamos procurar, mas simplesmente nos colocar em atitude de encontrá-los, como passear, mastigar, acariciar, contemplar, respirar... Vemos, pois, como a maior confusão entre símbolo e realidade se encarniça com a autoconsciência, e consequentemente com essa parcela das relações humanas que é a sexualidade.
Em consequência podemos nos perguntar se nossa "ideia de satisfação sexual" corresponde com a satisfação que realmente se pode obter da sexualidade. A ideia de satisfação sexual baseada na alimentação da personalidade (máscara) e da autoimagem, assim como em todas as crenças irracionais que estamos comentando, sempre dará menos jogo que quando nos baseamos no conhecimento -- racional e emocional --, e não no domínio, do corpo e suas sensações.
Podemos decidir, portanto, que da mesma forma que não existe "plena" autoconsciência a partir do domínio e do controle, mas somente a partir do conhecimento, a ideia de satisfação sexual baseada em nossos símbolos de sucesso e de domínio não apenas não corresponderá à satisfação "real", mas a dificultará consideravelmente: a anestesia gerada na qual, escravos da ideia de satisfação e de "satisfação cumprida", deixamos de escutar o próprio corpo, pode ser e constuma ser um germe de insatisfação sexual e vital. De fato, é o germe e a essência da ansiedade desnecessária, a qua já definimos como "esperar o que não chega, desprezando ou ignorando o mais estrito presente".
Felizmente, ha antídotos contra tal anestesia, entre eles o conhecer, tal como propomos, a ansiedade; o descobrir o prazer do cotidiano, que por ser cotidiano está constantemente presente, e a humildade suficiente para deixar de contemplar o corpo como se fosse uma casca que devemos suportar ou como se fosse um automóvel do qual acreditamos não ser o motorista, e começar a contemplá-lo como nosso mais leal e seguro mestre; alimentando seu conhecimento em substituição do domínio e do controle.
* * *
1. O amor
Não pretendemos definir uma vivência que, talvez, não tenha tradução verbal; apenas tentaremos expor uma concepção pessoal do amor.
Diz-se, com razão, que a base do amor é a entrega, mas essa entrega se confunde com a concessão e o sacrifício, quando se necessita pouca lógica para observar que nunca podemos entregar e oferecer aquilo que não possuímos previamente. É por esse pequeno e grande matiz que descreveríamos o amor como a autoaceitação incondicional e consequentemente de seu entorno: é difícil copreender, aceitar e conhecer os outros mais do que a medida em que nos compreendemos, aceitamos e conhecemos a nós mesmos. Se tivéssemos que dar um exemplo a respeito, diríamos que apenas os mafiosos conhecem a linguagem verbal e gestual de outro mafioso, assim como a generosidade ou a honestidade são reconhecidas por aqueles que são honestos e generosos. Da mesma forma, somente na medida em que fujamos do autoengano deixaremos de enganar mais ou menos conscientemente os outros.
Essa aceitação de si mesmo e do entorno, do que gostamos e não gostamos, não apenas não implica mas se opõe à resignação e ao conformismo.
Por um lado, somente o que aceitamos permite ser conhecido sem preconceitos e juízos de valor (por exemplo, no terreno sexual, somente as fantasias aceitadas permitem o jogo erótico de sua verbalização); por outro lado, somente o deixar de projetar a autoaceitação no futuro, ou seja, na forma como gostaríamos de ser, ao invés de nos conhecermos tal como somos em realidade no momento presente, possibilita fugir do autoengano. Finalmente, quanto mais informação tenhamos de nós mesmos mais informação podemos captar dos outros.
O conhecimento de nossa "totalidade", longe de conduzir à resignação (submissão voluntária), facilita aprender a pilotar nossas frustraões, carências e limitações. Somente a ignorância facilita e permite o conformismo ou a subsmissão.
Somente o desamor é cego, louco e gera sofrimento, porque somente o desamor permite o autoengano, o desconhecimento e a manipulação de nossos semelhantes.
Talvez somente deixaremos de tentar mudar os outros a fim de que sejam como gostaríamos que fossem, e manter assim o autoengano e o desconhecimento, quando começarmos a relacionar o amor com conceitos como verdade, clareza, saúde,conhecimento, criatividade e corpo.
2. O namoro
Dado que "namoro" signfica "em amor", os mesmos flagelos que pesam sobre o amor pesam consequentemente sobre o namoro.
Quando descobrimos alguém que sentimos atração nosso primeiro desejo é de "conhecer" a pessoa descoberta; uns vão querer conhecer preferencialmente seus ideais, outros sua conta bancária, mas o sentimento que sempre acompanha a flechada é o desejo de conhecimento.
Para nós, a paixão é acompanhada de um desejo de conhecer o outro e mostrar-lhe o que sabemos de nós mesmos. Mas apesar do desejo fundamental de ser querido "em nossa totalidade", a "personalidade" que autofabricamos nos força imediatamente a ocultar o que não gostamos de nós mesmos.
Isso costuma ser um autoengano e consequentemente um engano para o outro. Se além disso acresentamos a interpretação que fazemos do Cupido, isto é, concebemos o namoro como algo que não requer maiores cuidados mais do que o mero desenrolar do que o destino proporciona, e acresentamos ainda a supervalorização da pessoa amada, da qual irracionalmente se espera a solução definitiva de nossos problemas, entenderemos a facilidade com que responsabiizamos o namoro de suas típicas consequências trágicas.
Vivido dessa forma, o namoro não deixa de ser um episódio temporário de alienação no qual o ser amado é amo e senhor de nossos pensamentos, para deixar de ser quando na convivência, geralmente incultivada, vai surgindo tudo aquilo que havíamos escondido de nós mesmos e a evidência de que "o outro" não é a solução definitiva de nossos problemas.
Mas se esse primeiro "desejo de conhecer" a pessoa que nos atrai por qualquer motivo, longe de bloqueá-lo com o resto de nossos desejos, soubéssemos mantê-lo -- com os altos e baixos que todo intercâmbo de informações supõe -- o namoro poderia ser renovado constantemente, sem acabar no frequente triste amor-resignação.
3. Da sexualidade ao amor e do amor à sexualidade
Aliado ao amor "sem paixão" que costuma suceder o processo de namoro, costuma aparecer também a monotonia e o aborrecimento sexual.
Consequentemente existe a ideia popular, rígida e idealizada de que somente a "novidade sexual" é excitante ou sistematicamente exitante, ou garantia de excitação, esquecendo a possibilidade de permanente descobrimento quando existe um cultivo da relação.
O prazer sexual mais global e/ou intenso costuma ser encontrado quando existe o afeto e o desejo de conhecimento entre os membros da relação. Dito de outro modo, o amor costuma ser o melhor afrodisíaco.
A diferença fundamental que introduz a presença do componente amoroso é a confiança para nos desnudarmos completamente não apenas da roupa mas também da "personalidade".
Quando mantemos relações sexuais com "personalidade", o seja, com nosso orgulho, nossos títulos, nossas diversas máscaras...estamos nos relacionando com a ideia que temos de nós mesmos; consequentemente, nossas atitudes sexuais vão tender a ser um meio para alimentar essa ideia, que pouco tem a ver com nossa autêntica realidade de seres humanos limitados a um ínfimo espaço e tempo. As possibilidades de nos aceitarmos com nossas fraquezas e limitações ficam minguadas e o oferecimento que, em consequência, costumamos fazer de nós mesmos será parcial.
Dado que ninguém pode se sentir realmente querido por sua personalidade e suas diversas máscaras e dado que o intercâmbio de informação nunca é unilateral, nos sentimos queridos e desejados na mesma medida proporcional que nos mostramos sem autoengano e, em conquência, somos aceitos em nossa autenticidade.
Numa primeira relação é importante guardar o desejo e a atitude aberta às possibilidades de confiança e conhecimento.
Essa atitude requer contemplar os obstáculos a tal confiança como parte do jogo saudável; requer também certa disposição à desilusão, mas não só: requer uma disposição à ruptura ou separação de acordo com o tipo de desilusão; requer finalmente honestidade consigo mesmo e com os outros, descartando por completo a manipulação.
Podemos dizer que a manipulação consiste em possuir e usar o outro para nosso prazer, isto é, conduzi-lo a um objetivo pré-fixado que o outro não conhece e que, consequentemente, não consentiu.
Alimentar, portanto, o desconhecimento não poderá resultar em outra coisa que não dificultar o mútuo intercâmbio de informações.
Sem dúvida nem todas as relações sexuais se realizam entre as pessoas que se amam com esse amor entendido como aceitação de si mesmo e em consequencia dos outros. Inclusive podem funcionar satisfatoriamente sem que seus membros tenham proposto nunca tais níveis de relação, mas "todas" as relações francas nas quais estejamos atentos aos próprios desejos e preferências e fujamos da posse e da manipulação, não somente oferecem a posibilidade de uma confiança "plena" mas que constituem em si mesmas um exemplo de ternura e amor.
Embora nos pareça útil mostrar as vantagens das relações duradouras (à margem do modelo de relação de que se trate), em nenhum momento tentamos erigir a confiança e a aceitação plenas como requisito imprescindível do prazer sexual, já que essa confiança e aceitação também provêm da atvidade e do prazer sexual.
Com respeito a isso, se o amor implica em conhecimento e se somente amamos, gostamos ou desejamos aquilo que conhecemos, então qual conhecimento da outra pessoa poderia ser mais completo do que não somente através de nossos ideias mas também através de todo nosso corpo e nossa percepção sesorial?
No entanto, existe ou uma idealização ou uma infravalorização da ternura e do próprio amor, aos quais se costuma conceber como algo pouco carnal ou excessivamente transcendente, quando não há nada mais real, constante e cotidiano que aquilo com que convivemos permanentemente: nosso corpo com seus pensamentos e sua percepção sensorial.
O erotismo seria talvez o mais completo e intenso intercâmbio de informação com nós mesmos e com nossos semelhantes se entendêssemos que não existe desejo nem atração sexual sem um mínimo de informação e conhecimento, e se entendêssemos que o amor se transmite e recebe com o próprio corpo.
Mostrar portanto a semelhança entre o amor e a sexualidade é a única e autêntica intenção, a fim de que posasmos nos aproximar em "toda" relação sexual (estável ou promíscua) a essa elegância, criatividade e savoir faire autênticos, baseados no respeito a si mesmo e no respeito aos outros. A fim de que entendamos que esse "respeito" não somente atenta diretamente contra a monotonia nas relações mais estabilizadas, mas que é imprescindível para uma certa qualidede no prazer sexual.
Fonte: Montserrat Calvo Artés, Trampas y Claves Sexuales, Icaria Editorial, Barcelona, Espanha, 1987.