18 de dezembro de 2022

A sexualidade atlética e as neuroses na cama


Sexaulidade atlética, segundo a psicóloga espanhola Montserrat Calvo Artés, é a sexualidade preocupada em cumprir metas, em impressionar, em demonstrar performance. É uma sexualidade menos orientada a favorecer prazeres e mais orientada a superar marcas. É uma sexualidade fingida, inautêntica, desprovida de humildade, curiosidade e, acima de tudo, desprovida de autoconhecimento. Daí seu nome, "atlética", porque, como sugere essa palavra de origem grega, é uma sexualidade marcada pela luta entre egos, pela batalha entre personalidades que, ao invés de se conhecerem em meio à sinceridade, ao respeito e à confiança, se escondem sob máscaras e fingimentos. Em contraposição à sexualidade atlética existe o erotismo, o verdadeiro erotismo, aquele no qual se fala do que se faz e se faz aquilo do que se fala. No erotismo a sexualidade está presidida pelas preferências eróticas, nunca pelas exigênias atléticas. A comunicação entre os amantes e as sensações prazerosas cedem espaço ao mero desempenho orientado ao "final", ao orgasmo, ao prazer de pico. O orgasmo deixa de ser uma consequência do erotismo e passa a ser um objetivo, uma exigência, uma meta.

Sim, claro, uma vida sexual saudável não exclui a existência de problemas. Mas a mente humana precisa de problemas para poder desenvolver-se. Muitas pessoas preferem postergar a solução de um problema sexual durante anos, outras preferem dramatizar a respeito. Ambas posturas são profundamente imaturas. Dar as costas a um problema nos tornará pessoas mais rígidas e menos tolerantes às frustrações. A primeira coisa que temos de entender, a despeito de qual problema na cama se esteja enfrentando, é que nenhum dos amantes é um pior ser humano por causa disso. Nossa essência como indivíduos não tem preço nem medida. Nosso valor não depende de tirar boas notas na cama, nem ter a "aprovação" de nossa acompanhante. Temos de nos tratar a nós mesmos como nosso melhor amigo. Temos de lembrar que somos valiosos, não por algum capricho, mas porque estamos vivos, somos irrepetíveis, únicos, diferentes. A atividade sexual parece ser um reflexo das condutas e atitudes de nossa vida diária. A experiência psicológica acumulada indica que o comportamento que adotamos na cama reflete a maneira como nos comportamos fora dela. 

A sexualidade humana tem três funções: (1) reprodução, (2) prazer e (3) autoconhecimento. As relações sexuais -- os acoplamentos entre duas mentes e dois corpos -- são experiências em si mesmas bondosas, saudáveis, limpas. Uma sexualidade que leve em conta outros objetivos é uma sexuualidade adulterada, descafeinada, na qual os fins justificam os meios. Não há "fim" no sexo: o que há é uma atividade cujas cosequências ao longo do tempo poderão ser a reprodução, o prazer e o autoconhecimento. O erotismo autêntico mostra de maneira clara, a homens e mulheres, se sua satisfação é ou não real. Podemos fingir interesse? Sim. Podemos fingir prazer? Sim. Mas não podemos fingir a nós mesmos. É ali, na cama, que se encontra o melhor espelho de nossa personalidade. Pode haver engano, mas nunca autoengano.

Um aspecto que transparece na cama é o diálogo interior, ou monólogo interor, ou solilóquio. A despeito do nome que se queira dar, é na cama que as coisas que dizemos a nós mesmos sobre nós e sobre os outros, em segredo, nos recônditos de nossa imaginação, nos devaneios e delírios de nossas fantasias, transparecem com maior força e impacto. São nessas frases taquigráficas, rápidas como um relâmpago, que verdadeiramente acreditamos, que acreditamos sem questioná-las, sem discutí-las. É na cama que melhor detectamos o que é real, para sentir com a máxima intensidade aquilo que efetivamente nos toca, aquilo que efetivamente nos é importante. Devemos portanto entronar os sentimentos e emoções, dar-lhes papel central em nossas vidas? Claro que não. A ideia é nos autoconhecermos, é nos aceitarmos exatamente como somos, mas isso não quer dizer que não podamos superar as emoções e sentimentos destrutivos e insanos e substituí-los por outros melhores e sanos. Não conseguimos escolher os pensamentos do solilóquio, mas podemos acreditar neles ou não. Os pensamentos destrutivos do solilóquio são fruto do hábito consagrado por anos de "prática", de reforço. Mudá-los exige disciplina, responsabilidade mas, antes de tudo isso, autoconhecimento. O poder do pensamento é muito maior do que imaginamos. É uma faca de dois gumes: podemos usá-lo racionalmente ou neuroticamente.

Sim, podemos enganar nossa parceira, mas podemos sentir por obrigação? Podemos desejar por decreto? Podemos querer nossa parceira por "força de vontade"? É claro que não. E é claro que tais exigências idiotas despertarão resistências cada vez mais fortes que não apenas não aumentarão o desejo, mas terminarão por aniquilá-lo. Como diz Montserrat Calvo:

"O que não nos ensinam é que existe no ser humano uma dimensão natural que é de escutar-se e conduzir-se a si mesmo, para a qual é imprescindível detectar as ideias pré-concebidas e os juízos de valor. Uma vez introduzido o disco com a informação no computador da memória, nunca mais questionamos as coisas aprendidas e nossas reações se manifestam de forma automática, à margem de nossa vontade.

Crescemos sem discutir o que não discute quem nos rodeia. É fato que demonstramos uma grande inércia a pensar o que sempre temos pensado e feito; somos fruto de reações automatizadas pela força do hábito, pela atração ao familiar e pelo temor ao desconhecido. Tendemos a repetir as mesmas reações e a nos convertermos em herdeiros obedientes de nós mesmos.

A verdade é que aprendemos a pensar de uma forma racional e irracional ao mesmo tempo. Em nosso lado biológico insano -- do qual não se livra nenhum ser humano -- as exigências se esgueiram por toda parte, os desejos se confundem com necessidades, existe a tendência a nos julgarmos e destroçarmos, a ter baixa tolerância à frustração, a cobrir com tóxicos a incomodidade, a tratar nosso corpo de maneira ditatorial, em permanente pressão e sobreesforço, a relegar às estrelas e ao destino a responsabilidade e o poder sobre nossa própria felicidade, a pensar com dualidade: luz ou escuridão, fraco ou forte, você ou eu, ao invés de luz e escuridão -- pois não existiria uma sem a outra -- fraco e forte, você e eu".

Não custa relembrar que responsabilidade não tem nada a ver com culpa. A culpa é um sentimento neurótico que nos paraliza e cria sofrimento, enquanto a responsabilidade nos dá autonomia, competência e liberdade.

Muitas pessoas sentem vergonha (outro sentimento neurótico, aliás) ao falar de sexo. A outras é um verdadeiro sacrifício mencionar suas genitálias. Outras ainda falam de sua sexualidade como se fosse um cachecol: é o sexo desprovido de qualquer emoção, algo superficial e sem conteúdo. Outras falam orgulhosas de "estar acima" das "questões sexuais". O orgulho mostra-se especialmente presente na linguagem obscena. Todas essas manifestações verbais formam parte da sexualidade atlética porque revelam exigências subjacentes, mostram um trato sexual despersonalizado, objetificado, que omite toda e qualquer alusão a desejos, emoções e sentimentos, em especial aos homens, os quais a sexualidade atlético os rebaixa de sedutores a meros predadores sexuais.

A cama é o lugar para nos aceitarmos como somos, com nossas misérias e glórias, como seres em contínua adaptação, em contínua aprendizagem de nossos erros, conflitos e temores. Cada encontro erótico serve, ou deveria servir, como polimento, como algo que nos vai tornando mais compassivos e menos egocêntricos, menos competitivos, menos fingidos. A escravidão à imagem sexual é a rejeição dos sentimentos, um autoabandono, uma crescente hostilidade entre sexualidade e afeto, amor, ternura e carinho. Na comunicação sexual não se devem filtrar emoções não assumidas (ciúmes, medo de rejeição, ressentimentos, desconfiança etc) sob pena de que o fluxo de energia entre os amantes acabe sendo bloqueado e a experiência prazerosa acabe sendo neutralizada. Escolher "não sentir" uma coisa desagradável tem um preço: não sentir coisas agradáveis. Sim, a desconexão de uma emoção ou sentimento implica em desconctar-se de outras emoções e sentimentos. A ansiedade cedo ou tarde imperará porque "não sentir" significa não realizar mudanças em sua conduta: a irritação e o ressentimento logo se somarão à ansiedade. 

Os sentimentos são uma espécie de "bússula" que nos ajuda a navegar. Claro, a bússula não é infalível, mas tampouco podemos fingir que ela não existe e que não exerce nenhuma influêcia em nossos pensamentos e condutas. Nos abrir ao que sentimos implica na honestidade de estarmos dispostos a mudar ideias, porque talvez nós tenhamos mudado nossas preferências, e em adotar outras ideias que podem até ser arriscadas. Mas arriscada é a vida.

A autoexigência é uma bobagem que não tem nada a ver com "força de caráter" ou com "ser implacável com os sentimentos". É apenas uma tola prepotência de alguém que se considera superespecial, superperfeito e super-homem. As ideias irracionais, derivadas da autoexigência, captam a atenção e consequentemente as emoções prazerosas desaparecem. A ereção e o orgasmo são uma consequência, não vêm por decreto. Se decretamos que vamos dormir, não dormimos. Se decretamos que não vamos ficar vermelhos de vergonha, ficamos. Se decretamos que vamos ter uma ereção e um orgasmo, não temos. 

Escrever essas e outras exigências em pedra parece uma tolice. Pois bem, essa tolice a praticamos todos os dias. Sim, a praticamos em forma de "busca pela autoestima". Se a autoestima está "alta" a pessoa se sente valiosa, mas dada a falibilidade humana, haverá um momento em que as coisas não sairão como deveriam e sempre haverá alguém que nos desaprove. De modo que, dadas as condições sobrehumanas que exige a autoestima, sempre acaba provocando uma má relação e uma luta do indivíduo contra ele mesmo. Em resumo, a busca pela autoestima sempre termina em baixa autoestima.

Aceitar-se a si mesmo é o caminho. No terreno sexual, a cama é o espelho mais fiel de nosso verdadeiro rosto, muito além das maquiagens e autoenganos que aplicamos. O prazer sexual é resultado, em primeiro lugar, da autoaceitação e do companheirismo que o indivíduo trata a si mesmo.

E aceitar a parceira é igualmente mandatório. O afã de dominar conduz à desconfiança, ao receio e à alienação, já que a parceira deixa de ser uma pessoa, digna de ser aceita como é, e passa a ser um objeto a ser possuído, a ser manipulado, a ser "melhorado". Ela nunca sabe se está na cama por medo ou porque realmente deseja.

É necessário que nos desnudemos não apenas da roupa, o que é muito fácil, mas de nossos egos, nossas autoimagens, nossos delírios e devaneios, nossas exigências e "necessidades". Assim, e somente assim, podemos conhecer a parceira, somente assim imperará um clima de confiança, sinceridade e igualdade, sem domínio nem submissão. O erotismo requer pessoas livres e conscientes já que mostrar nosso lado mais terno e vulnerável requer confiança, respeito, lucidez e sinceridade.

Nossa moral está baseada no trabalho duro e no sobreesforço, e nossa autovalorização sexual acaba dependendo de nosso produtividade em coitos, orgasmos ou ereções. Essa moral de seriedade que, inclusive, nos obriga a nos divertir em dias festivos, pouco a pouco vai carcomendo o espírito lúdico. Levar-se muito a sério é tolice.

Fonte: Montserrat Calvo Artés, Sexualidad atlética o erotismo, Icaria Editorial, Barcelona, Espanha, 2008.