Que o leitor nos perdoe: veja, embrulhamo-nos de novo no
oportunismo de direita com o conceito de “culpa”, com a oposição entre
“culpado” e “não culpado”. No entanto, já nos foi explicado que a questão não reside na culpa pessoal mas na
periculosidade social: tanto se pode prender um inocente se ele é
socialmente um estranho, como soltar um culpado se ele é socialmente conhecido.
Mas em nós, que não recebemos uma instrução jurídica, isso é desculpável, pois
o próprio código de 1926, sob o qual vivemos como debaixo da proteção de um
pai, durante vinte e cinco anos, foi criticado também pelo seu “ponto de vista
inadmissivelmente burguês”, pela sua “posição de classe insuficiente”, por uma
certa “ponderação burguesa na dosagem da pena em função da gravidade do ato
cometido”.
Até 1924 a competência das tróikas [*] limitava-se às penas
de três anos; a partir de 1924 foi ampliada para cinco anos; a partir de 1937 a
OSO [*] aplicava dez anos; e, a
partir de 1948, um quarto de século.
Há quem ateste (Tchavdárov) que durante os anos de guerra a OSO aplicava,
igualmente, o fuzilamento. Não seria nada de extraordinário.
Não sendo mencionada em parte alguma, nem na Constituição,
nem no Código, a OSO acabou, entretanto, por ser a máquina almôndegas mais
cômoda: dócil e pouco exigente, não necessitava de lubrificação das leis. O
Código era uma coisa e a OSO outra, rodando facilmente, sem precisar desses
duzentos e cinquenta artigos, sem utilizá-los nem mencioná-los nunca.
Como se dizia por pilhéria no campo: os tribunais não servem
para nada; há a comissão especial.
Compreende-se que, por comodidade, fosse também necessária
uma espécie de código, mas com tal fim a OSO elaborou para si mesma os seus
artigos-siglas, facilmente operacionais (não era preciso quebrar a cabeça e
andar atrás das formulações do Código), as quais pelo seu número limitado
seriam acessíveis à memória de uma criança (parte deles já o mencionamos): ASA –
Agitação Anti-Soviética; KRD – Atividade Contra-Revolucionária; KRTD –
Atividade Contra-Revolucionária Trotskista (a simples letra T agravava muito a
vida do zek [**] no campo); PCh –
Presunção de Espionagem (se a espionagem ultrapassava a mera suspeita era
entregue ao tribunal); SVPCh (Relações Conducentes (!) à Suspeita de
Espionagem; KRM – Opiniões Contra-Revolucionárias; VAS – Incubação de Espírito
Anti-Soviético; SOE – Elemento Socialmente Perigoso; SVE – Elemento Socialmente
Prejudicial; PD – Atividade Criminosa (aplicada particularmente aos ex-reclusos
dos campos, se de nada mais podiam ser acusados).
E, finalmente, com grande amplitude: TChC – Membros da
Família (condenados por um dos itens anteriores).
Outra vantagem importante da OSO era ainda a de que a sua
decisão não tinha recurso: não havia a quem apelar; não existia nenhuma
instância, nem superior nem inferior a ela. Estava subordinada unicamente ao
ministro do Interior, a Stálin e a Satanás. O grande mérito da OSO era a sua
rapidez: esta era limitada apenas pela técnica da datilografia. (p. 277-279).
* * *
Mas eis algo que é essencialmente novo e importante: a
diferenciação entre métodos e meios, que existia no antigo código
czarista, deixa de existir entre nós!
Ela não intervém nem na qualificação do delito, nem na sanção penal! Para nós a
intenção e a ação, tudo é o mesmo!
Tomada que foi uma decisão, é em função dela que julgamos. Que ela “se tenha
levado a cabo ou não, isso não tem qualquer significado essencial”. Quer tenha
sussurrado à sua mulher na cama que seria bom derrubar o poder soviético, feito
propaganda nas eleições, ou lançado bombas – tudo é o mesmo! A pena é igual! (p.352).
Quando, em 1960, Guennádi Smélov, um preso comum, fez uma
greve de fome prolongada na prisão de Leningrado, o promotor foi à sua cela
(talvez estivesse fazendo uma inspeção geral) e perguntou-lhe: “Para que se
tortura?” E Smélov respondeu-lhe:
-- A verdade é para mim mais importante que a vida!
Esta frase surpreendeu tanto o promotor pela sua incoerência
que no dia seguinte Smélov foi levado ao hospital especial (isto é, ao
manicômio) para reclusos. A médica comunicou-lhe:
-- Suspeitamos que você sofre de esquizofrenia. (p. 453).
* * *
A maior parte dos presos pelo artigo 58 [***] são pessoas
pacíficas (e frequentemente velhos e doentes) que por toda a vida se serviram
de palavras, e não dos punhos, e não estão preparadas para enfrentar hoje o que
não enfrentaram antes.
Os gatunos, por sua vez, não passaram por tais
interrogatórios. Foram interrogados quando muito duas vezes, tiveram um
julgamento suave, uma sentença leve e até mesmo essa sentença não a cumprirão,
serão libertados antes: ou os anistiam ou fogem. Ninguém privou os gatunos das
encomendas legais, e durante as instruções recebem abundantes pacotes dos
camaradas de roubo que ficaram em liberdade. Não emagreceram, não se debilitaram
nem um só dia e pelos caminhos alimentaram-se à custa dos fraiers [****]. Os artigos que punem o roubo e o banditismo não só
não deprimem os gatunos, mas enchem-nos de orgulho, e nesse orgulho ele é
apoiado por todos os chefes com galões e com bonés azuis: “Não tem importância,
ainda bem que você é um bandido e um criminoso, que não é um traidor da pátria.
Você é dos nossos, há que se
corrigir”. Nos artigos sobre o roubo não existe o ponto 11 referente à organização. Essa organização não está proibida aos
gatunos. E por que o havia de ser? Não contribui ela para educar o sentido do
coletivismo, tão necessário ao homem da nossa sociedade? E a apreensão de armas
que lhe fazem é um jogo, não sendo punidos por isso. Respeita-se a sua lei (“com ele não pode ser de outra
maneira”). Um novo assassinato na cela, longe de agravar a pena do criminoso,
só o cobre de louros.
Tudo isso data de há muito. Nas obras do século passado
sobre o lumpen-proletariat
condenavam-se apenas os seus excessos, o seu estado de ânimo instável. Quanto a
Stálin, sempre foi inclinado aos gatunos – quem é que roubava os bancos em seu
nome? Já em 1901, na prisão, ele foi acusado por seus companheiros de partido
por utilizar delinquentes comuns contra opositores políticos. A partir dos anos
1920 surgiu o termo complacente de: socialmente
próximos. De um tal ponto de vista se faz arauto igualmente a Makarenko: estes podem ser corrigidos. (Segundo
Makarenko a origem dos delitos é unicamente a “contra-revolução clandestina”.
Incorrigíveis são os outros: os engenheiros, os sacerdotes, os
socialistas-revolucionários, os mencheviques.)
Por que não roubar se não há alguém que reprima? Três ou
quatro gatunos insolentes e unidos podem dominar várias dezenas de assustados e
abatidos pseudopolíticos. (p. 480-481).
* * *
Mas como resistir então, você, que sofre de dor, que é débil, ligado por vivas afeições e não está preparado?
Que fazer para ser mais forte do que o comissário de instrução e de que todas essas ratoeiras?
É preciso entrar na prisão sem temer pela sua confortável vida passada. No limiar da cadeia, você deve dizer a si próprio: “A vida acabou, um pouco cedo, mas nada há a fazer. Não regressarei à liberdade. Estou condenado à morte, agora ou pouco mais tarde, mas quanto mais tarde pior, pois quanto mais cedo for menos duro será. Não tenho mais bens. Os meus entes queridos morreram para mim e eu para eles. O meu corpo a partir de hoje é inútil: um corpo estranho. Só o meu espírito e a minha consciência permanecem para mim queridos e importantes”.
Face a um preso com tal ânimo a instrução judicial treme!
Só triunfa aquele que renunciou a tudo! (p. 136).
Fonte: O Arquipélago Gulag, Alexandr Solzhenitsyn, Círculo do Livro, 1975, São Paulo.
[*] OSO (Ossoboie Sovietchnaie)
ou tróikas eram conferências especiais e permanentes da GPU.
[**] Zek – z/k, zeká:
nome oficial do zakliutchiônni
(detido).
[***] O artigo 58 era o famoso artigo do Código Penal
Soviético em que se enumeravam os crimes políticos e suas correspondentes
penas. Além de ser muito rigoroso nas extensões das penas, sua redação era tão
elástica e imprecisa que praticamente qualquer interpretação era cabível.
[****] Todo aquele que não é um gatuno.