18 de novembro de 2022

Trágica vs. moral: as visões sobre a natureza humana


O economista alemão Ernst Schumacher dizia em seu Guide for the Perplexed que há no mundo dois tipos de problemas: os convergentes e os divergentes. Os convergentes são aqueles que se resolvem mediante o emprego de inteligência e tempo. Problemas desse tipo encontramos nas engenharias, por exemplo, nas quais um dispositivo, máquina ou equipamento é construído com inversão de horas, mão-de-obra e capital.

Os problemas divergentes não são assim. Eles tocam temas complexos que não se referem ao mundo material, mas ao mundo imaterial, interior, espiritual. Exigem experiência, profundidade, ponderação, maturidade, tato, compromissos. Lidam com o imponderável, com o arbítrio, com sonhos, com visões de mundo, com relacionamentos. Aqui a mentalidade lógica, simplória e concreta da ciência e da tecnologia não os alcançam, e não é incomum que ofereçam soluções simples e erradas para problemas complexos. As abordagens dos problemas divergentes normalmente se cristalizam em polos, que podem ser dois ou mais, e a solução do problema, se é que há uma, frequentemente passa por ponderar qual polo, ou quais aspectos de cada polo, podem ser aplicados em dado momento. Schumacher cita como exemplo a questão da educação infantil. Qual o melhor método para educar uma criança? Devemos ser liberais ou rígidos? A pedagogia nos oferece alguns caminhos, mas a resposta será sempre "depende". O mesmo vale para hipertrofia muscular, alimentação, ensino de idiomas, gestão de pessoas, entre outros. A vida é maior do que a lógica.

O cientista político americano Thomas Sowell também notou esse fenômeno e em sua obra-prima A Conflict of Visions tratou precisamente de apresentar quais são esses polos, ou "visões", que dominam o âmbito da política. Vejamos como ele se sai.

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Sowell fala de "visões", não de ideologias. As ideologias, diz ele, se derivarão logicamente das visões, mas as visões em si são produto de uma maneira de enxergar o mundo, a história, a sociedade e, acima de tudo, a natureza do homem. Em outras palavras, não há uma maneira precisa ou "científica" que garanta que as duas visões apresentadas por Sowell sejam de fato aquelas que predominam na ciência política. É uma questão de experiência, bom senso e, claro, conhecimento histórico.

As visões são como premissas de um conjunto de pensamentos. São elas que os moldam, digamos. Por trás dos conflitos de interesses, das conspirações, das alianças, dos subornos, das chantagens, dos discursos -- por trás de tudo isso estão as duas visões, ou duas categorias de visões, que de maneira invisível, sutil, mas decisiva, conduzem os rumos politicos do concerto das nações.

As duas visões são a visão restrita e a visão irrestrita. Nenhuma é melhor que a outra. Nenhuma é mais precisa que a outra. Ambas coexistem, ambas se comunicam, ambas se misturam em determinados autores, mas ambas podem ser claramente identificadas.

Os adeptos da visão restrita em geral enxergam a natureza humana como egcêntrica, moralmente limitada, essencialmente corrupta e imperfectível. O desafio não está tanto em aperfeiçoar o comportamento dos homens, pois este tende a mover-se dentro das limitações de sua natureza, mas em procurar extrair o melhor dentro de suas possibilidades. O progresso social se dá mediante permutas e o incentivo de valores que promovam a coesão social como honra e nobreza. O prorgesso está no processo. Exemplos de pensadores desta visão: Adam Smith, Thomas Hobbes, Edmund Burke, Oliver Wendell Holmes, Milton Friedman, Friedrich Hayek.

Os adeptos da visão irrestrita em geral enxergam a natureza humana como altruista, moralmente aperfeiçoável, essencialmente benevolente e perfectível. O desafio não está tanto em aperfeiçoar as sociedades, pois estas tendem a impedir o desenvolvimento dos homens, mas em procurar libertá-las o mais que possível. O progresso social se dá mediante a aplicação de soluções que promovam a liberdade de ação e pensamento dos homens. O progresso está no resultado. Exemplos de pensadores desta visão: Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Condorcet, Thomas Paine, Holbach, Saint-Simon, Robert Owen, George Bernard Shaw, Harold Laski, Thorstein Veblen, John Kenneth Galbraith, Ronald Dworkin, Earl Warren.

Há dois grandes pensadores que não se encaixam claramente em nenhuma das duas visões: John Stuart Mill e Karl Marx.

Na visão restrita, o conhecimento de um indivíduo, ou de um conjunto de indivíduos, jamais suplantará a experiência transmitida pelas instituições sociais, seja mediante um sistema de preços, seja pelas diversas tradições incorporadas na sociedade. Há muito mais inteligência presente no sistema de regras de conduta do que na inteligência de um homem, ou mesmo de alguns homens. A experiência dos povos está condensada nos sentimentos, formalidades e até mesmo preconceitos de sua cultura e comportamentos.

Na visão irrestrita, a razão é o elemento primordial. É o poder racional de uma mente culta que tem, ou deveria ter, predominância na sociedade. Somente pelo poder da ponderação e da meditação racional que podemos alcançar verdades gerais de benefício social. A validação deve ser algo direto, individual, intencional. As pessoas de mente estreita, aquelas cujo horizonte de consciência é limitado, não podem ser comparadas às pessoas cultas, sábias e inteligentes. A missão social dessas pessoas é infundir visões sociais justas nos membros bem educados e formados da sociedade, que, por sua vez, servirão como guias e instrutores do povo em geral.

Os membros da visão restrita tendem a criar condições que impeçam o surgimento de desigualdades de poder que uma elite governante possa acumular.

Os membros da visão irrestrita tendem a criar condições sociais e econômicas equalizantes, mesmo que isso implique em desigualdades no direito individual de decidir sobre essas questões. 

Na visão restrita, o elemento moral central é a fidelidade ao seu dever na sociedade. O empresário deve ser fiel aos acionistas, o juiz deve ser fiel à lei, o inteletual deve ser fiel à promoção intelectual de seus alunos e leitores. Na visão irrestrita, o elemento moral central é a sinceridade e dedicação ao bem comum, em especial nos indivíduos sábios e conscientes.

Na visão restrita, os velhos são incomparavelmente superiores aos jovens em sabedoria e experiência, daí serem eles os elementos mais valorizados na sociedade. Na visão irrestrita, os jovens apresentam inegáveis vantagens sobre os velhos, pois as enfermidades do mundo são produto das crenças e instituições existentes, e o fato de eles terem sido pouco expostos a elas os tornam elementos importantes no melhoramento social. Preconceito e avareza, eis as características típicas dos velhos.

Em termos comportamentais, os defensores da visão irrestrita da natureza humana afirmam que os comprometimentos intertemporais não são imparciais, ou seja, a lealdade, as promessas, o patriotismo, a gratidão, os precedentes, os juramentos de fidelidade, as constituições, os casamentos, as tradições sociais, os tratados internacionais, tudo isso são restrições impostas no passado, quando o conhecimento era inferior, sobre o conhecimento contemporâneo, que é necessariamente superior.

Os membros da visão restrita da natureza humana veem com enorme desconfiança as "ciências sociais", que seriam um delírio pretencioso de fazer ciência onde os pressupostos para uma ciência não existe. Similarmente, um juiz de direito jamais deveria tentar fazer "justiça social" na aplicação das leis.

A abordagem que dão à liberdade é marcadamente distinta em ambas visões. Na visão restrita, a liberdade é um processo caracteristico: é a ausência de impedimentos externamente impostos. Na visão irrestrita, a liberdade é abordada assim, mas com um acréscimo: também é a ausência de limitações circunstanciais que reduzem o leque de escolhas.

Quanto à igualdade, para os adeptos da visão restrita basta que o processo garanta tratamento igual a todos os membros. Mas os adeptos da visão irrestrita não encaram assim: os resultados também devem ser equalizados. Veja que "igualdade de oportunidade" ou "igualdade perante a lei" também são conceitos diferentes entre as visões: para a visão restrita significa que os membros da sociedade são tratados igualmente; para a visão irrestrita, é igualar as probabilidades de alcançar resultados desejados, seja na educação, no emprego ou na justiça.

A guerra, na visão irrestrita, é uma catástrofe resultado de desentendimentos ou emoções paranóicas, cuja resolução deve provir da influência de membros intelectual e moralmente capacitados. É causada pelas instituições. Na visão restrita, a guerra é resultado da natureza humana e deve ser evitada mediante o preparo militar generalizado e o consequente aumento de custos nela envolvido. É mitigada pelas instituições.

Similarmente, os membros da visão restrita veem o crime como algo natural, ou seja, como algo parte da natureza humana, que tendem a elevar os ditames do ego acima dos interesses e sentimentos alheios. O castigo é um fator necessário, digamos, e ademais não tem o objetivo de recuperr o preso. Mas para os defensores da visão irrestrira, o crime tem necessariamente uma causa social, seja na forma de injustiças, insensibilidades ou brutalidades sociais. O castigo é uma vingança desnecessária, digamos, e ademais pode ter o objetivo de recuperar o preso.

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A título de conclusão, ou comentário geral, embora Sowell não o diga, fica claro que a visão restrita é típica dos conservadores e a visão irrestrita é típica dos progressistas. No entanto, e como já havia dito, ambas visões estão corretas e incorretas a depender do contexto em que se encontram. Não há uma "visão melhor" que a outra, mas parece que há algo na visão restrita que escapa aos conservadores.

Se o conhecimento disperso na sociedade na forma de tradição, instituições, preços, direito etc. é superior ao conhecimento individual, atomizado, das "mentes cultas" -- como pregram os ideólogos conservadores -- e se foi no seio dessa mesma sociedade tradicional que se formaram os processos revolucionários que deram origem aos regimes democráticos liberais, socialistas e demais modelos modernos e pós-modernos, então que sentido tem uma volta ao passado, um reacionarismo monárquico, um conservadorismo retrógrado? O conservadorismo só tem sentido como diferença de grau em relação ao progressismo, e não de tipo. É um "progressismo light", na melhor das hpóteses.

O consrvadorismo perdeu no seu próprio terreno e com suas próprias regras.

Fonte: Thomas Sowell, A Conflict of Visions, Basic Books, Nova York, EUA, 2007.