Talvez esta rotina faça sentido para você. Talvez em meio às atvidades do dia-a-dia você encontre momentos de alegria e esperança que, em si, são suficientes para fazê-lo seguir em frente. Talvez você tenha alguma religião, fé, espiritualidade, filosofia, meditação, ou seja lá o que for, que lhe conforte e lhe dê "forças".
Mas talvez você tenha uma consciência mais desenvolvida, uma inteligênia mais aguçada, uma percepção mais profunda da vida -- digamos logo, um QI acima da média --, e nada do que descrevi acima o satisfaça. A vida como um todo não faz sentido para você. Angústias, sofrimentos, dores: a vida enquanto tal, a vida em sua totalidade, não tem unidade, não fornece nenhum motivo em si que a torne digna de ser vivida, digna de ser suportada. Os momentos alegres e singulares da vida se diluem no oceano do absurdo.
O que fazer? Em seu Mito de Sísifo, Albert Camus invoca o que, em sua opinião, é o problema filosófico mais importante de toda a história da humanidade: o suicídio. Sim, a ideia parece irreverente, inóspita, mas diante do absurdo da vida, diante da ausência de toda razão profunda, do caráter insensato da agitação cotidiana, é perfeitamente legítimo que perguntemos: por que não?
A ciência e a psicologia classificam o mundo, ensinam coisas notáveis a seu respeito, mas ao fim e ao cabo tudo não passa de imagens, de metáforas. Como diz Camus com eloquência, "as suaves linhas destas colinas e a mão da tarde sobre este coração agitado me ensinam muito mais". As categorias da ciência e do conhecimento não têm nada a ver com o espírito. Aqui é notável a semelhança de raciocínio com Schumacher.
Qaunto à filosofia, Camus tampouco encontra consolo. A postura existencial ele entende ser uma espécie de "suicídio filosófico", ou seja, uma forma cômoda de superar o dilema negando-o. A negação é o Deus dos existencialistas na medida em que nega a razão humana. Husserl, por sua vez, apenas reúne o universo que outrora encontrava-se disperso, desconexo, mas não resolve o dlema de que a mera reunião não implica em unidade. Ao fim e ao cabo, a fenomenologia também nega versar sobre o absurdo da vida.
Ocore que Camus, mediante uma série de insights, chega a uma brilhante conclusão: quanto menos sentido ten a vida, melhor. Viver uma experiência, um destino, é aceitá-lo plenamente. Mas para viver esse destino é necessário ter em mente sua absurdidade. A palavra-chave é rebelião, ou seja, rebelar-se conscientemente. Viver é fazer viver o absurdo. O homem tem de enfrentar a obscuridade da vida. Enfrentar tal obscuridade significa resignar-se a nosso destino devastador. Suicidar-se é render-se ao absurdo. Rebelar-se é aceitar a realidade do absurdo. A única verdade é o próprio desafio de viver em rebelião.
O homem inconsciente do absurdo vive escravo do sentido que artificialmente atribui à vida. A ideia de que somos eternos, fingir que há um "amanhã", é apegar-se à bola de ferro acorrentada a seu tornozelo. Somente na rebeldia, na revolução, é possível exercitar a liberdade. Dar sentido à vida é criar barreiras dentro das quais encerro minha vida. Portanto, a ideia não é viver "melhor" (segundo a moral comum), mas viver "mais", viver com verdadeira paixão (acumular experiências, estar diante do mundo com a maior freqência possível, da maneira mais presente pssível).
Portanto, eis as três consequências que Camus deriva do absurdo: a rebelião, a liberdade e a paixão (pela diversidade).
O homem absurdo
Camus delinea três exemplos de homem absurdo: o amante, o comediante e o aventureiro. Nenhum deles, e nenhum homem absurdo, nega o eterno; ocorre apenas que eles não têm o que fazer com ele.
Em termos éticos e morais, o homem absurdo reconhece apenas a existência de responsáveis, mas não de culpados. Em outras palavras, a carga condenatória, o castigo psicológico, é inexistente para o homem absurdo. Ele é responsável por tudo o que faz, mas não aceita ser culpado por nada: a vida humana é um sopro, e seu objetivo não pode ser cumprir regras morais.
Don Juan, por exemplo, o amante por excelência, não tem objetivos morais. ele não quer ser santo. O que ele quer é quantidade, ao contrário do santo, que quer qualidade. Qualidade para quê? Por acaso as coisas têm alguma sentido profundo? Por acaso a vida tem sentido? Claro que não. A vida do santo é movida pelo mito do sentido, da eternidade, do além. O santo finge não existir o absurdo. O homem absurdo, pelo contrário, não só não finge como vive de acordo com ele. O homem absurdo não se separa do tempo, afinal. O amor convencional, aquele através do qual nos doamos a uma mulher, pode ser "enriquecedor" para ambos, mas em termos pessoais será empobrecedor a ambos, pois estarão literalmente apartados da vida, das experiências que ela pode proporcional para além da mera doação mútua. O amor convencional não é libertador, é uma prisão. O homem absurdo não quer "ser" algo na eternidade: o homem absurdo escolhe não ser nada, mas escolhe ser algo nesta vida. Eis a única grandeza a que pode aspirar.
O pensamento absurdo não quer explicar, não quer se aprofundar. Quer apenas descrever. Eis sua ambição. O autêntico artista absurdo é aquele que retrata o contreto, e que tal retratação não signfique nada além do concreto. A obra absurda ilustra < renúncia do pensamento a seus prestígios e sua resignação a ser apenas uma inteligência que põe em marcha as aparências e cobre com imagens o que carece de razão. A arte absurda deve refletir aquilo que deve manifestar o pensamento absurdo: rebelião, liberdade e diversidade. E, claro, uma profunda inutilidade.
Fonte: Albert Camus, El Mito de Sísifo, Literatura Random House, Barcelona, Espanha, 2021.