Algumas obserevações acerca de Against Religion, de Christos Yannaras.
Religião
A religião
é fruto do instinto humano de preservação de seu eu individual, de seu ego, face
à ameaça do desconhecido. A partir daí se abrem três vertentes para aplacar o
problema: (1) a criação de uma doutrina metafísica, ou seja, de um
conjunto a priori de axiomas que explicam o mundo sobrenatural a partir
de observações do mundo natural e que não podem ser questionados nem pela
razão, nem pela experiência comum; e (2) a criação de um conjunto de sacrifícios,
sejam eles externos (sacrifícios de coisas ou pessoas), internos (abstinência de
comida ou sexo) ou expressões e cerimônias (adoração, hinos, poesia,
arquitetura), cujo objetivo é em última instância subornar a Deus e colocá-Lo contra
a parede; (3) a criação de um código moral, ou seja, de um conjunto de
comportamentos, alguns obrigatórios, outros proibidos, que assegurem ao
individuo que ele é bom aos olhos de Deus.
Todas essas
vertentes refletem ao fim e ao cabo o esforço do ego em ganhar sua salvação por
meio do mérito, seja por fidelidade mental a um conjunto de doutrinas e dogmas,
seja como pagamento pela consecução de sacrifícios, seja como fruto da
chantagem em parecer uma pessoa boazinha.
Quanto à
primeira vertente (apego racional a doutrinas e dogmas), as proposições
metafísicas, não importa quais sejam, estarão sempre e constantemente sob
ataque de novas objeções. Portanto, o intelectualismo metafísico só poderá
sustentar-se lançando mão do recurso da autoridade, ou seja, a doutrina
metafísica precisa provir de uma fonte irracional ou a-racional (líderes
religiosos, revelações, insights, experiencias existenciais etc.). Aqui
observa-se uma vez mais o elemento da escolha individual, da preferência
atomizada, típicos da vida do ego. É por isso que se observa em tais grupos o
comportamento ilógico, mas perfeitamente compreensível, de se construir um cerco
fechado em torno das autoridades que protegem a doutrina metafísica: em face à
ameaça externa o grupo se blinda e se enrijece em torno da fonte que lhes
confere a certeza.
Evento
eclesial
Enquanto a
religião se caracteriza por mover-se dentro das limitações impostas pela
natureza, a ekkesia se caracteriza precisamente por livrar-se dessas
limitações dadas pela natureza. É por isso que se diz que Cristo não veio para
fundar uma nova religião, mas uma nova criatura, um novo modo de existência.
A este novo modo de existência Cristo chamou amor. Amor não é, portanto,
um “gostar muito”, uma afeição carinhosa, um sentimento romântico, uma virtude altruísta.
Amor é livrar-se da existência individualizada e atomizada, é livrar-se da vida
do ego, é livrar-se das limitações impostas pela natureza.
Quando se
diz que “Deus é amor” o que se quer dizer é precisamente que Deus não está
limitado pelas condições e determinações naturais. Em outras palavras, Deus não
“tem” amor, mas “é” amor, ou seja, ele se define precisamente por sua ausência
de individualidade, atomicidade, por Seu modo de existência. Por isso Deus não
é Deus no sentido das doutrinas metafísicas (“Ser”, “Ser Supremo” etc.), que se
caracterizam precisamente por tomar as definições naturais como fundamento de sua
lógica interna, mas é Pai, Filho, Espírito, ou seja, hipóstases (existências
reais) em livre comunhão entre si, isto é, em comunhão não imposta por nenhuma
condição natural ou criada. Observe que Pai, Filho e Espírito vivem um para o
outro em liberdade hipostática, ou seja, em uma liberdade que parte
exclusivamente da vontade de existir em comunhão, e não de existirem de modo
que se autocompletem de maneira independente, nem de existirem por uma espécie
de compulsão ou predeterminação de sua “natureza divina”. Este ponto é
fundamental, vale a pena insistir: Pai, Filho e Espírito não estão predeterminados
por nenhuma natureza ou essência, mas se autodeterminam por sua liberdade de
relação entre si. Por isso Pai, Filho e Espírito são hipóstases, não indivíduos
ou “pessoas” no sentido que naturalmente atribuímos a essa palavra. O efeito de
autocompletar-se, a propósito, é o típico modo de existência autista, atômico,
egocêntrico. É por isso que as doutrinas metafísicas, por mais que se cerquem
de certa linguagem intelectualizada, são ao fim e ao cabo produto do instinto
da religião natural.
É a este
modo de existência, a esta nova criação, que os sinais operados por Jesus
Cristo apontam. Esses sinais não devem ser interpretados como uma demonstração
espetacular do poder de Cristo para que, a partir daí, nos entreguemos de
maneira submissa à autoridade. Tal seria a resposta tipicamente religiosa. O
que Cristo demonstra, não somente em si mesmo, mas em muitos outros à sua
volta, é um novo modo de existência, um modo de existência a qual somos
chamados para superar as limitações naturais, a uma verdadeira liberdade
existencial, a uma liberdade de relação. Este é o sentido do evangelho,
da boa nova. É a pregação do amor, desta nova vida, dessa nova, real e
verdadeira existência.
Quando a
vontade gnômica se liberta dos imperativos do ego, eis quando o pecado cessa.
Pecar é errar o alvo, e o alvo é o modo de existência livre das limitações da
natureza. Portanto, pecar é viver de acordo com as imposições do ego, de acordo
com aquilo que interessa à sobrevivência e perpetuação do ego, à autoimagem, à
vida natural, não uma infração a alguma regra moral. Há de ser muito claro
Ora, mas desapegar-se do ego não é algo que possa ser levado a cabo pelo próprio ego, pelo indivíduo, de maneira autista. Por isso falamos de “evento eclesial”, ou seja, de um esforço conjunto de pessoas em direção a uma vida em comunhão de amor, ou seja, que vivam conjuntamente o esforço de livrarem-se da vida egocêntrica. Haverá altos e baixos, e assim o esforço por eliminar os impulsos de autopreservação -- da preservação do ego -- será constante. Tal impulso, se porventura prevalecer, anulará o modo de existência relacional, e regressaremos ao estágio da vida natural.
O que
acontece quando o evento eclesial se transforma em uma religião
Eis aqui alguns
exemplos do que a religionização do evento eclesial causa:
(1) A fé
se transforma em ideologia. A fé originalmente é a confiança que as
pessoas que amam sinceramente experimentam. É uma experiência, e a linguagem
que expressa essa experiência evidentemente pressupõe a existência dessa
experiência e, obviamente, essa linguagem precisa ser controlada, ponderada,
dirigida pela experiência que a originou. Mas a religião, escrava do ego e,
portanto, desprovida da experiência proveniente do evento eclesial, toma o
produto da linguagem que expressa essa experiência e o ideologiza por meio da
introdução de uma falsa experiência a fim de conferir-lhe validação: a
intelecção natural. No entanto, a intelecção é incapaz de garantir a certeza de
seus encadeamentos lógicos porque os axiomas sobre os quais se baseiam são
necessariamente arbitrários. Para esconder a dolorosa realidade dessa falta de
certeza entra em ação um curioso mecanismo de defesa: o desejo de obter a
certeza busca na imaginação, em “memórias vestigiais”, experiências emocionais
passadas de euforia, excitação, alegria, autossuficiência etc., e substitui o
objetivo real e original do desejo, que é a certeza da validade dos axiomas das
doutrinas metafísicas, por essas memórias vestigiais. Por sua vez, a
experiência subjetiva das memórias vestigiais é reaplicada na linguagem das
doutrinas metafísicas, de maneira que o encadeamento lógico, em lugar de buscar
a garantia de sua certeza na artificialidade dos axiomas, sub-repticiamente a
buscará na invocação da certeza subjetiva que lhe conferem as memórias
vestigiais. A fé se transforma em uma ideologia ou, em outras palavras, em uma
construção psicológica. A religião não se interessa realmente por ontologia,
mas por “psicologia”.
(2) A
salvação em uma nova criatura se transforma em salvação do ego. O instinto religioso nega o evento
eclesial, nega o modo de existência da comunhão em amor, nega o caminho para
uma nova criatura. Assim que lhe resta buscar a salvação do que já existe. Em
outras palavras, lhe resta salvar o ego psicológico individual. E essa certeza
de salvação será construída mediante o cumprimento da lei. A lei, da
qual o evento eclesial se opõe, é uma maldição porque é uma manifestação do
poder do pecado, ou seja, do poder da vida natural, psicológica, do poder da
escravização ao ego e seus ditames de autoestima, autossuficiência e
respeitabilidade narcisista. Quando o Apóstolo sugere que vos abstenhais das
coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da
fornicação, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes (Atos 15:29) isso
de forma alguma representa regras que, se cumpridas, farão parte da garantia da
salvação do indivíduo. Tais são apenas sinais exteriores, objetivos, para
distinguir os cristãos dos pagãos. Uma mera necessidade social circunscrita
àquele ambiente em especial. No entanto, o instinto religioso, que sempre se
espreitou e se manifestou aqui e ali na vida da ekklesia, ganhou enorme
impulso a partir da proclamação da Ortodoxia em religio imperii e, em
especial, ganhou forma nos cânones do Concílio Quinissexto de Constantinopla de
692, que publicou uma série de regras socias e morais, com especial ênfase à
regulação da vida sexual dos fiéis. A elaboração desse e muitos outros códigos
morais, e a respectiva exigência de seu cumprimento para a salvação do ego,
impactou várias gerações, milhares ou milhões de seres humanos, que viveram sua
única vida em um inferno de culpa imaginária, de desejos reprimidos, de ansiedade
implacável, de autotortura narcisista. Gerações inteiras foram presas
involuntariamente no tormento do legalismo, na existência deficiente de uma
vida sem amor. Milhões de pessoas foram levadas a identificar no amor erótico o
medo do pecado, na virtude a repugnância pelo próprio corpo e na expressão
perceptível de afeto na repulsa. Tudo em nome da concessão humilhante à
brutalidade da natureza humana.
(3) A
assembleia eucarística se reduz a um ritual mágico. Jesus Cristo, na Última
Ceia, apresentou uma realidade ontológica imageada no pão e no vinho. Os
participantes ali presentes, assim como os participantes presentes nas
subsequentes assembleias eucarísticas, devem evidentemente apresentar os mesmos
pressupostos eucarísticos: a abnegação de seus egos individuais em prol da vida
em comunhão amorosa. A realidade ontológica originalmente apresentada por
Cristo só poderá ser “reproduzida” cumpridas tais condições. No entanto, de
maneira lenta e imperceptível, o instinto religioso perverteu essa realidade em
uma possessão individual do pão e do vinho que, milagrosamente, como num passe
de mágica, se “transubstancia” (há outras expressões igualmente absurdas) em
Corpo e Sangue de Cristo. Os participantes, agora transformados em “paroquianos”,
se aproximam do pão e do vinho magicamente, como se fosse possível apossar-se
do Corpo e Sangue objetivamente. O fetiche egocêntrico manifestado por esse
entendimento é escandaloso: a ideia de purificar-se da culpa a fim angariar mérito
para a salvação individual não tem absolutamente nenhuma relação com o modo de
existência do evento eclesial. Todo o espaço eucarístico se preenche de expressões
artísticas (orações, hinos, iconografia, arquitetura, idiomas eclesiásticos, indumentária)
para impressionar o indivíduo, para conduzi-lo, como em uma sessão de hipnose, a
sentimentos, emoções, euforias, imagens, cujo objetivo final será, evidentemente,
satisfazer o ego.
(4) O
sexo como fonte de alegria se transforma em sexo como fonte de neuroses. A perspectiva
eclesial sobre as relações entre homens e mulheres atinge seu clímax em Paulo
com a famosa passagem de sua Epístola aos Efésios onde ele vê na união amorosa
de um homem e uma mulher e na “partilha de toda a vida” a imagem da relação de
Cristo com a Igreja, uma imagem que não é metafórica ou intelectualmente
alegorizada, mas é uma imagem/manifestação do poder dos seres humanos para
realizar a relação vital do Filho Encarnado com a humanidade (vital porque é o
provedor de vida ilimitada) como um evento existencial por meio de sua natureza
psicossomática criada. É um poder que define aquilo que a Igreja chama de mistério,
aquilo que distingue nitidamente o casamento eclesial da instituição natural/social
/legal do casamento (cf. Ef 5, 21-33). Dentro do contexto do relacionamento
mutuamente autotranscendente de marido e mulher, Paulo exige da esposa que ela
cultive ativamente o respeito por seu marido, esteja sujeita a seu marido “em
tudo”, como a Igreja o é para Cristo. Ele pede correspondentemente aos maridos
que eles devem amar suas esposas “como eles amam seus próprios corpos” e muito
mais, “assim como Cristo amou a igreja e se entregou por ela”. Essas demandas
não constituem princípios reguladores do comportamento social; são os termos da
transformação da instituição natural em mistério eclesial, em luta pela
renúncia à vontade egoísta, luta de autotranscendência e oferta de si
realistas. É apenas em termos de mistério (o modo de existência eclesial) que
essas demandas podem ser julgadas, não de acordo com os padrões dos “direitos
do indivíduo”, os padrões do moderno individualismo democrático de massa.
Há também a
preferência claramente expressa de Paulo pela vida celibatária, que pode ser
interpretada de várias maneiras: como um senso de reserva, depreciação e
desprezo em relação à sexualidade, ou como uma busca pela liberação mais plena
possível das leis naturais que regem natureza humana. O próprio Paulo não
esclarece sua preferência analiticamente, mas também não pode ser discernido no
que ele diz qualquer disposição ou sugestão de uma depreciação do sexo feminino
- não há nada neles que nos permitiria atribuir a Paulo uma demonização das
mulheres e de sexualidade.
Paralelamente
a isso, podem-se discernir duas sugestões indiretas de que o instinto sexual
natural pode cooperar com a meta da salvação humana (a meta de que o ser humano
pode ser salvo, tornar-se sadio ou íntegro, com seus poderes existenciais
totalmente integrados). A primeira sugestão diz respeito ao homem que é ajudado
pela instituição natural do casamento a "deixar seu pai e sua mãe"
(Ef 5:31), a romper com a garantia que reforça o ego de sua proteção, a fim de
ousar aceitar o risco de atingir a vida adulta. A segunda dica diz respeito à
mulher que “será salva por ter filhos” (1 Tm 2:15). A função natural da
maternidade ajuda também a mulher a compartilhar seu ser, seu próprio corpo, a
comunicar sua individualidade corporal, por meio da renúncia e da oferta de si
que a maternidade acarreta. Ambas as dicas que encontramos em Paulo referem-se
a potencialidades que são características da função generativa, não a preceitos
reguladores que a "ética" de Paulo quer impor à natureza. É
precisamente esse mal-entendido que causou (e ainda causa) muita desumanidade -
atormentou (e ainda atormenta) gerações de seres humanos ao longo de muitos
séculos.
Quando o
evento eclesial é religioso, são esses textos do apóstolo Paulo que são
idolatrados e proclamados (não apenas pelos protestantes) como sendo divinamente
inspirados ao pé da letra. Mesmo seus elementos circunstanciais e
historicamente condicionados são tratados como princípios reguladores
obrigatórios para os cristãos de todas as épocas.
Leia: Christos Yannaras, Against Religion, Holy Cross Orthodox Press, Brookline, MA, EUA, 2013.