“Imagine um
círculo de cujo centro partem vários raios. Quanto mais esses raios se afastam
do centro tanto mais se afastam uns dos outros; e, ao contrário, quanto mais se
aproximam do centro tanto mais se aproximam uns dos outros. Suponha agora que
este círculo seja o mundo, que o centro do círculo seja Deus e que as linhas
retas (os raios), que vão do centro à circunferência ou da circunferência ao
centro do círculo, são os caminhos das vidas das pessoas. E aqui também os
santos entram no círculo em direção a seu centro desejando aproximar-se de
Deus; quanto mais se aproximam do centro mais se aproximam de Deus e uns dos
outros. . . . O mesmo vale para o movimento de afastar-se do centro. Quanto
mais as pessoas se afastam de Deus, na mesma medida elas se afastam mais umas
das outras e, quanto mais se afastam umas das outras, mais se afastam de Deus.
Eis a qualidade do amor: quando mais nos afastamos e não amamos a Deus, mais as
pessoas se afastam de seu próximo. Mas se amamos a Deus, então nos aproximamos dEle
com amor a Ele, e assim mais nos unimos aos nossos semelhantes; e quanto mais
nos aproximamos e unimos a nossos semelhantes, tanto mais próximos e unidos
estaremos a Deus”. Abba Doroteu (Philokalia
2:617)
Ao
ponderarmos sobre o profundo sentido deste ensinamento, seria impossível não
reconhecer que a revelação evangélica sobre a luz do Logos, sobre a “luz dos
homens”, é aqui expressa em sua plenitude. Segundo o esquema apresentado por
Abba Doroteu, o homem, quando impregnado de amor espiritual, o qual une os
homens a Deus, vive na esfera do Logos, ou seja, na esfera do poder que, de
acordo com o Evangelho, cria a “luz dos homens”. Este círculo místico de Abba
Doroteu é o símbolo desta esfera superior. O homem, abrangendo esta esfera com
todo o seu ser, começa assim a extirpar-se do círculo das ideias no qual antes
era bem sucedido. Ele começa então a viver fora deste círculo, no centro do
qual imaginava estar, contrapondo o mundo inteiro à sua própria consciência.
Esta mesma
consciência, a qual lhe parecia ser a plenitude de tudo, ele agora a reconhece como
algo que se desenvolveu sob as circunstâncias de um ponto vista incompleto. Ele
agora vê que sua razão, que lhe parecia tão poderosa, fora treinada em uma
esfera limitada e encontra-se agora anormalmente desenvolvida. Ocorre portanto
que a pessoa volta agora toda a sua psique para a consciência de uma outra
razão – a razão superior, iluminada
pelo Logos. E esta razão, concebida nos raios da graça divina, irradiando do centro
da vida do mundo – esta razão, que se desenvolve dentro da pessoa, torna-se
como sua própria fonte – o Logos. E eis que o leitor, graças a este brilhante
esquema que nos apresenta Abba Doroteu, é agora capaz de alguma maneira
entender estas palavras do Santo Evangelho: Nele
estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
Ora, mesmo
que a razão inferior tenha sido capaz de formular as leis exatas da
matemática e de sua ciência-irmã, a astronomia; mesmo que às
apalpadelas tenha deduzido, do ponto de vista formal, o conhecimento das leis
físicas; mesmo que tenha aperfeiçoado a tecnologia e começado a dominar a
natureza; ainda assim há uma distância enorme entre isso e o domínio da verdade
em questões existenciais, em questões relativas à alma humana, as quais lhe
serão sempre um mistério insolúvel. Nosso intelecto mostra-se impotente também
para solucionar outras questões aparentadas à alma humana, quais sejam, as
questões morais.
A razão
inferior, em virtude de sua própria
essência, por sua própria natureza, é incapaz por suas próprias forças
de ganhar algum entendimento sobre essas questões. As qualidade que caracterizam a
natureza da razão inferior podem ser estudadas ao analisarmos a própria
essência da razão.
O intelecto
humano, ao distinguir claramente entre o “eu” e o “não-eu”, concebe em
plenitude apenas a si mesmo, e tudo o mais concebe como sendo fora e estranho
a si. Essencialmente, a primeira e fundamental característica do
intelecto é isolar-se do mundo exterior, isolando o sujeito do objeto.
Desta
característica fundamental do intelecto nascem outros traços característicos:
seu egocentrismo e seu egoísmo. O
intelecto humano inclina-se a tomar em conta suas próprias habilidades e
talentos de um ponto de vista unilateral, isto é, a partir do exercício de seu
direito de influenciar o mundo exterior a si.
Em consequência
disso, o homem que em si desenvolveu tal consciência, com suas observações e
ambições egocêntricas, colide com alguém semelhante a si, alguém que bloqueia
seu caminho, e eis que é perfeitamente natural que esteja inclinado a dizer a
este: “Eu existo, não me aborreça. Você e sua existência interferem na minha
vida; desapareça suma da minha frente”.
Na razão
inferior desenvolve-se também a qualidade de não pensar em si de maneira desapaixonada,
mas com certa autossatisfação provocada pelos resultados obtidos por meio do
esforço, na consciência de seu próprio
esforço, de seu próprio poder e
superioridade. O espírito do orgulho
auto-afirmado é um atributo deveras natural da razão inferior humana. A razão
inferior torna-se inclinada a valorizar a verdade não enquanto tal, mas como
sua própria criação, e eis porque na
grande maioria dos casos ela perde o verdadeiro critério que distingue a
verdade da ilusão.
Além disso,
o intelecto humano é educado numa atmosfera muito distante daquela que no homem
conduziria a uma especulação imparcial, inobscura. Esta atmosfera na qual as
pessoas vivem, inclusive os filósofos, é uma atmosfera de presunção, e todos sabemos como é difícil e às vezes mesmo
impossível de dissociar-se das sociedades presunçosas inerentes a esta ratio.
As pessoas
se enganam redondamente ao supor que o intelecto humano tem a qualidade de
sempre ser objetivo, que ele pode facilmente livrar-se das tais sociedades que
mencionamos. Mesmo as mentes mais brilhantes não estão livres de erros pois consideram
como livres decisões de suas consciências as conclusões a que chegam, as quais,
na verdade, enraízam-se na sede do intelecto em glorificar-se a si mesmo e
atribuir importância exagerada a seus próprios poderes.
Consideremos
agora a razão superior. A verdade basilar, a que determina o sentido da vida, a
que ilumina a consciência humana com sua luz, procede não do pensamento
racional, mas do coração do homem (de sua esfera emocional). O coração apreende
a verdade de uma maneira especialmente sua, por meio de um processo
especialmente próprio de penetração, de intuição especial, a qual para nosso
cérebro é algo elusivo e incompreensível. Este processo de penetração intuitiva
– um processo cuja raiz (alimento) reside na esfera das emoções (das emoções
superiores), um processo concebido no coração, impoluto pelas paixões malignas,
mas sim combatendo-as – consiste a obra da razão superior, o germe da qual vive
no coração de todos os homens. O germe da razão superior que vive no interior
do coração pode ser desenvolvido pelo homem a ponto de atingir a consciência,
isto é, a sensação do “eu” superior do homem, complemente independente do
cérebro, na esfera de seu coração.
Durante a
oração mental a pessoa que reza deve extinguir a consciência de sua razão
inferior (consciência cerebral) e acender sua outra consciência – a consciência
da vida do coração. Somente durante a oração, graças à influência da graça
divina, a vida da razão superior pode manifestar-se de alguma forma sua
plenitude e força. A percepção desta vida sob estas condições é tão intensa que
o homem torna-se incônscio de sua consciência cerebral (ratio).
Em cada um
de nós cintila o germe desta razão superior – razão que pode desenvolver-se nos
sentimentos exaltados do coração – sentimentos de amor e unidade. Mas a
consciência disto não é dada a todos, pois nossa vida passa-se inteiramente na
esfera racional (na esfera mental), profundamente envenenada pelo egoísmo de
cada um de nós. E a imensa maioria das pessoas vive semi-anestesiada deste “eu”
superior, semi-anestesiada de sua razão superior. Mas se por algum motivo ou
circunstância na vida do homem sua razão superior deixa sua condição letárgica,
e por isso esta razão começa a crescer nele, então todo seu ser, todas as suas percepções
acerca do mundo e seus arredores, toda sua sabedoria, transformam-se. O homem
como que renasce. Aspirando em seu coração ao Logos, ele começa a entregar-se a
um propósito grandioso, a um serviço grandioso.
Note-se que
tal desenvolvimento da razão superior se dá de maneira totalmente independente
ao desenvolvimento intelectual do homem.
Versemos
sobre as principais qualidades características da razão superior.
Uma das características
basilares é a capacidade de sentir e
conhecer a Deus. Note-se que na grande maioria dos casos, o processo de
perceber a Deus não é alcançado de maneira repentina, mas por meio de um
desenvolvimento consistente e gradual. O germe da razão superior começa a
crescer, aquecido pelos raios do poder super-universal chamado pelos teólogos
cristãos de graça divina. E eis que
se desenvolve a capacidade nesta razão de sentir a Divindade. Esta primeira e
vaga sensação da Divindade transforma-se em uma poderosa emoção em direção a
Deus.
A algumas
pessoas especialmente dotadas que progridem em direção à perfeição por meio de
empenhos sublimes (esforço espiritual) dentro dos quais pode se desenvolver uma
faculdade especial da razão superior – a faculdade da “visão espiritual” penetrar
no mundo espiritual superior, faculdade essa que chamo de super-consciência espiritual.
É precisamente
na ação da graça divina em que consiste a diferença esta super-consciência e a
super-consciência mental (natural), cujo órgão – o intelecto ou razão inferior –
reside no cérebro. (É com esta super-consciência mental que um yogi se empenha
em domar os poderes astrais e mentais, por meio de sua influência pessoal e por
meio dos impulsos que brotam de si mesmo, do yogi, e não da graça divina que
ofuscam o asceta cristão).
A faculdade
da razão superior para a super-consciência espiritual pode engendrar ainda
outras faculdades místicas – a faculdade da clarividência, das profecias, das
visões espirituais, dos chamados milagres, e dos êxtases espirituais
superiores. Estas faculdades muitas vezes são involuntárias e inesperadas. No
entanto, os yogis (e os ocultistas) obtêm estas faculdades, conforme afirmado
pelo asceta hindu Vivekananda, mediante exercícios cerebrais – são obtidos
mediante uma ginástica dos poderes psíquicos, tendo como alvo levar a pessoa a
uma percepção e influência ultrafísica pré-determinada.
Uma das
qualidades mais refinadas e superiores da razão superior, a qual em nossa época
tem sido especialmente sufocada, é a presença da consciência interior. Esta consciência interior é um sentimento
especial de temor à repreensão interior. Em nossa época, esta consciência, este
sentimento sublime do coração, é substituído na grande maioria dos casos por
outra consciência, por outra sensação, característica da razão inferior, que é
um temor não de repreensão interior, mas de repreensão exterior, ou seja, temor
de um julgamento enunciado pelas pessoas ao redor, temor de sentir seu amor
próprio e sua presunção feridos.
Outra qualidade
característica da razão superior é sua inusitada simplicidade. Todos nós sabemos por experiência própria como é
convoluto e excêntrico o raciocínio humano, e como adorna-se de inúmeras e
complexas associações de ideias intrusas. Diametralmente oposta a esta complexidade,
a razão superior possui a qualidade da simplicidade.
Interessante
notar que uma das características da razão superior no que tange a relação com
o mundo exterior, uma característica marcadamente distinta, é a ambição pelo sacrifício, pois esta
razão é alimentada pelo amor divino, é alimentada por emoções sublimes, cuja
natureza consiste em esquecer-se completamente em benefício do próximo.
Enquanto isso, a natureza da razão inferior inclina-se, ao contrário, a
revelar-se não em sacrifícios, mas em compreender, alcançar, dominar, em
esforçar-se para a superioridade egocêntrica, em esforçar-se em conquistar
poder e bens materiais.
Por fim,
cabe lembrar que a razão superior, aliada a seu crescimento e desenvolvimento, também
possui a qualidade de modificar a
própria ratio, de convertê-la a si, de adaptar a razão inferior a seus
propósitos superiores.
Fonte: Mitrofan Lodyzhensky, Light Invisible, Holy Trinity Publications, Jordanville, NY, EUA,
2011. Pág. xiii-xxvii. Trechos selecionados.