As pessoas que desejam derrubar todos os preconceitos não se
interessam tanto assim pela verdade, mas importam-se muito mais com a sua
liberdade – o que vale dizer, uma liberdade concebida como o mais amplo campo
para a satisfação de seus caprichos. O ceticismo dessas pessoas varia de acordo
com o assunto. Elas acreditam que, ao apertarem o interruptor, a luz se
acenderá, mesmo que lhes falte qualquer conhecimento sobre eletricidade.
Todavia, um feroz e insaciável espírito investigativo as domina por completo no
exato momento em que percebem que os seus interesses estão em jogo – o que
significa, mais precisamente, a liberdade ou licença para que possam agir
segundo os seus caprichos. Então, subitamente, todos os recursos da filosofia
lhes são disponibilizados, e serão imediatamente usados para desqualificar a
autoridade moral dos costumes, da lei e da sabedoria milenar.
Derrubar determinado preconceito não significa destruir o
preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito. O preconceito
que afirma ser errado criar um filho fora do casamento foi substituído por
outro que diz que não há absolutamente nada de errado com isso. A ideia de que
não gostar de alguém não constitui base suficiente para xingar esse alguém, o
fato de relações sociais toleráveis requererem autocontrole, o fato de viver em
sociedade implicar o dever de se submeter a limites – tudo isso são noções que
infelizmente não foram inculcadas em nossa atual sociedade como preconceitos.
Algumas pessoas desejam escapar das convenções tanto quanto
outras desejam escapar da necessidade de ganhar a vida. De fato, não ser
convencional tornou-se para elas uma virtude em si, da mesma forma que a
originalidade se tornou hoje uma muleta para aquelas pessoas cujas aspirações artísticas
excedem em muito o seu talento. Infelizmente, o desejo de se furtar a uma
convenção é, em si mesmo, uma convenção.
A filosofia – ou, talvez, a “atitude” seria um termo melhor
para descrevê-la – do individualismo radical instila um preconceito profundo em
favor do eu e do próprio ego. A vida passa a ser concebida como uma extensão
ilimitada da escolha do consumidor, uma rede em volta do supermercado
existencial, de cujas prateleiras diferentes estilos de vida podem ser
adquiridos, da mesma forma que se faz com os alimentos industrializados, e sem
quaisquer consequências mais profundas ou significativas. Aquela pessoa que se
diz contrária a toda e qualquer autoridade é, na verdade, somente contrária a
algumas autoridades, aquelas de que desgosta. A autoridade que ela realmente
respeita, é claro, é a sua.
Um radicalismo individual como esse tem outro efeito
paradoxal: aquilo que começa como busca por um individualismo ampliado ou mesmo
total termina com o aumento do poder do governo sobre os indivíduos ao destruir
toda a autoridade moral que se coloca entre a vontade individual humana e o
poder governamental. Tudo aquilo que não é proibido pela lei será ipso facto permissível. Isso, é claro,
torna as leis e, portanto, aqueles que as produzem, os árbitros morais da
sociedade. A ausência de qualquer autoridade intermediária entre o indivíduo de
um lado e o poder político soberano do outro permite que o último se insinue
por entre os mais recônditos lugares da vida diária. A falta de autoridades
intermediárias, tais como família, igreja, organizações profissionais etc., nos
acostumou a esperar, e aceitar, o direcionamento centralizado de nossas vidas,
mesmo quando resulta em absurdidades.
Uma coisa é dizer que este ou aquele preconceito é
revoltante ou extremamente danoso, outra coisa é dizer que podemos nos virar
sem absolutamente nenhum preconceito. Havia, no passado, operações cirúrgicas
que causavam mais danos do que benefícios, e sem dúvida isso ainda acontece em
alguns casos, mas certamente não há motivos pelos quais a humanidade devesse
abrir mão das vantagens salvadoras da cirurgia por uma questão de princípio.
Se a maioria de nosso conhecimento factual sobre objetos
particulares se funda na confiança e na autoridade – pois não é dado a nenhum
homem, não importa quão brilhante seja, a condição de viver tempo suficiente
para ser infinitamente investigador – por que seria diferente em relação à dicta dos julgamentos morais e
estéticos? A vasta maioria dos homens simplesmente não consegue levar a vida como
se ela fosse constituída de longas séries de enigmas morais e intelectuais.
Mesmo que não seja possível derivar uma afirmação de valor
de uma de fato, é necessário e inevitável que façamos afirmações de valor. Na
prática, ninguém vive ou poderia viver sem julgamentos estéticos e morais, e
refiro-me àqueles que não podem ser meramente deduzidos dos fatos. Bom e ruim,
bonito e feio, estão construídos na estrutura mesma de nossos pensamentos, e
não podemos eliminá-los, não mais do que podemos eliminar a linguagem ou o
sentido de tempo. Infelizmente, nenhum sistema de proposições éticas, ou mesmo
nenhum outro sistema de proposições, pode existir sem pressuposições, isto é,
sem preconceitos. Existe um ponto para além do qual a racionalidade, ou o
naturalismo, não pode ir, mesmo entre criaturas que foram dotadas de razão pela
natureza.
Mas não é verdade que muitos preconceitos são de fato
danosos, cruéis, estúpidos e malignos? Certamente que sim. Mas, reitero, não é
porque alguns preconceitos sejam danosos que podemos viver sem preconceitos.
Todas as virtudes levadas ao excesso se tornam vícios, e se tornam
manifestações de orgulho espiritual; o mesmo vale para os preconceitos,
inclusive os melhores, e o mesmo valerá para a tolerância. Eu não me dedico a
examinar os nossos preconceitos; isso seria ridículo. Temos que ter, ao mesmo
tempo, confiança e discernimento para pensarmos logicamente a respeito de
nossas crenças herdadas, e a humildade para reconhecermos que o mundo não
começou conosco, e tampouco terminará conosco, e que a sabedoria acumulada da
humanidade é muito maior do que qualquer coisa que podemos alcançar de forma
independente. A expectativa, o desejo e a pretensão de que podemos sair nus no
mundo, libertos de todos os preconceitos e preocupações, de modo que toda
situação se apresente como algo completamente novo para nós, são em igual
medida atitudes tolas, perigosas e nefastas.
Essa pretensão é nociva porque não estaremos apenas
enganando os outros, mas a nós mesmos, e desconsideraremos aquela pequena e
constante voz dentro de nós. Debates estridentes e agressões virão. O quanto
mais insistirmos em público a respeito de coisas que sabemos, ou mesmo
suspeitamos, que não são verdadeiras, mais veementes e intransigentes nos
tornaremos. O quanto mais rejeitarmos o preconceito qua preconceito, mais difícil será para nós recuarmos das posições
que tomamos, e recrudesceremos a fim de provar que estamos livres de
preconceitos. Um dogmatismo ideológico será o resultado, e todos sabemos a
devastação que um dogmatismo como esse pode provocar.
É preciso ter capacidade de discernimento para saber quando
um preconceito deve ser mantido e quanto deve ser abandonado. Os preconceitos
são como as amizades: devem ser mantidos em bom estado. Por vezes, os amigos se
distanciam e por vezes o mesmo deve acontecer aos homens diante de certos
preconceitos; mas a amizade frequentemente se aprofunda com a idade e a
experiência, e o mesmo deve acontecer com alguns preconceitos. Eles são aquilo
que dão caráter às pessoas, mantendo-as juntas. Não podemos viver sem eles.
Fonte: Theodore
Dalrymple, Em Defesa do Preconceito,
É Realizações Editora, São Paulo, 2015, trechos selecionados e adaptados.