Pe. Nicolae Steinhardt
A ressurreição não é uma farsa nem engano, só se for
verificado que qualquer milagre é impossível, toda ressurreição é uma lenda. Se
os monofisistas, os nestorianos ou docetistas tivessem razão, não me teria
tornado cristão por nada deste mundo. Significaria que a ressurreição foi, na
melhor das hipóteses, um símbolo ou uma representação. Não seja! Apenas a
desesperança humana na cruz prova a integridade e a seriedade do sacrifício,
impede-o de ser quem sabe que jogo, que truque.
O Senhor tinha vindo decidido a beber até o fundo do cálice
e a batizar-se com o batismo da cruz, mas no Monte das Oliveiras, quando se
aproximava o momento, rogou, porém, que se afastasse dele o cálice. É certo que
acrescenta: faça-se Tua vontade. No entanto, foi real a vacilação. E na cruz,
apesar da comunicação dos idiomas, apesar do fato que tinha a consciência plena
da ressurreição, a natureza humana parece ter prevalecido certo tempo – assim
como, contrapontisticamente, predominou a natureza divina no Monte Tabor,
porque de outro modo não se teria ouvido tão naturalmente estou com sede nem tampouco o allzumenschlich
(tão-humano): Meu Deus, por que me abandonaste?
O ato da crucificação foi tão sério, tão autêntico e total,
que até mesmo os apóstolos e os discípulos estavam convencidos de que o que
estava pregado na cruz do meio não ressuscitaria. Se a sua crença não tivesse
sido tão sacudida, Lucas e Cleofas não teriam andado entristecidos, arrastando
os pés pelo caminho até Emaús, e teria reconhecido na hora o ressuscitado e não
teriam ficado tão admirados quanto entenderam que era ele. (Tinham se sentido
tão sem jeito, tão enganados, que pediram ao primeiro viandante, um
desconhecido, para não os deixar sós, e ficasse com eles.) Nem Tomé teria
apresentado condições tão drásticas (e, falando corretamente, ofensivas) se ele
não estivesse seguro de que a ressurreição, de acordo como se passaram as
coisas, não era possível.
Ninguém acreditou. A crucificação era tão definitiva para
eles como para os escribas. E era necessário, para confirmar o sacrifício, que
a crucificação desse impressão de final, de solucionado, de negócio classificado,
de bom senso vencedor. Não bastavam – para a ressurreição que devia ser – não bastavam
as torturas horríveis, os pregos, a lança, os espinhos – no quadro de Mathias
Grünewald de Unterliden os espinhos trespassam todo o corpo entrado já em putrefação
– ainda havia necessidade – para completar, para o endurecimento – parecer também
uma catástrofe, confusão, fiasco.
Apenas o grito! Eli,
Eli nos prova que o crucificado não brincou conosco, que não se aproximou
para nos acariciar com fingimentos esfumados (Como sempre, tratou os homens
como seres livres e maduros, capazes de receber as verdades desprazerosas.) Ao
contrário de Buda e de Lao-tsé, ele não dá aforismos e exemplos, mas a carne e
o sangue, o sofrimento e desesperança. A dor sem desesperança é como a comida
sem sal, como uma boda sem músicos.
(E se o bom ladrão é o primeiro homem que chega ao paraíso –
antes dos profetas, dos patriarcas e dos justos do Velho Testamento – pode ser
que não tanto pela sua tremenda conversão como pelo fato que foi companheiro de
sofrimento com o Senhor. Porque uma coisa é estar ao pé da cruz e sofrer,
quanto de sincero e de esgarçado, outra coisa é estar na cruz. A dor do outro não é a tua, é dele, penetra em ti apenas
por um processo ideativo, não pelos sentidos. Apenas o bom ladrão sente o mesmo que o Senhor.)
A encarnação foi total, como ensina o sínodo de Calcedônia.
Bem, total, mas Cristo na cruz não deixou de ser também
Deus. Eu: não se contesta a permanência da comunicação de idiomas, mas depois
de algumas horas na cruz o humano devia ser predominante; doutro modo a
tragédia seria contrafeita.
Sou obstinado: que teriam querido os seguidores de Nestório,
os docetistas, os monofisistas – ou os ateus? Fazer Cristo da cruz um sinal com
os olhos para eles, para lhes dar a entender: deixai, que isso só serve para os
olhos do mundo, estai despreocupados, sabemos o que fazemos, ver-nos-emos
domingo de manhã?
Que horrível “espetáculo” pressupõe, sem querer, o
monofisismo!
Os argumentos do texto: nos Romanos (8,32) escreve Paulo: “O
que ainda a seu próprio Filho não perdoou, mas o entregou por todos nós...”. Esse
não O perdoou demonstra-nos também
que na cruz não se desdobraram os símbolos, e que aconteceu um sofrimento real.
Apenas pela junção da dor física com a tortura moral se obtém o decocto final:
a amargura suprema.
O mesmo Paulo em I, Cor 1,23: “Mas nós pregamos a Cristo
crucificado”, em 2,2: “Porque julguei não saber coisa alguma entre vós, senão a
Jesus Cristo, e este crucificado”. Por que o acréscimo “e Este crucificado”
senão para acentuar o lado mais insano e mais escandaloso? A razão sábia se
harmonizaria até o fim com um Deus crucificado simbolicamente e que concede
sofrer aparentemente (doutro modo os homens não entendem), mas o paradoxo e a
confusão (ou seja, o cristianismo) representa a divindade não apenas na cruz – solemniter – como pregado
verdadeiramente; onde sofre manifestamente com os nervos (as lendas e as
epopeias da Idade Média, que sabia o que é a dor, sempre se referem aos
nervos), as fibras e a alma do pobre do homem até as consequências últimas
(também Cristo tem, apesar da heresia de Apolinário, alma humana inteira). Se
ele tivesse mantido – mesmo em parte – a impassibilidade na cruz, se não
tivesse gostado plenamente a desesperança humana, o evento acontecido no
Gólgota não teria sido – para os filósofos, para os sacerdotes e para o vulgo –
uma ocasião de tropeço e de confusão, mas, “cenário” ou “ritual”, portanto,
admissível, comestível.
Em I, Cor, 6,20 e em 7,23, insiste Paulo: “Porque vós fostes
comprados por um grande preço”.
Por um preço honesto. Inteiro. Deus não enganou a ninguém,
nem ao diabo, nem a nós; nem a si mesmo não se enganou. Não pagou com aparência
de sofrimento, com uma cruz mítica, ou com dinheiro falso. O preço não o pagou
um fantasma; foi carne de nossa carne, sangue de nosso sangue.
E na carta aos Hebreus (2,17; 2,18 e 4,15): Por tudo isso
era devedor entre todos (salvo do pecado, para se assemelhar aos irmãos
(nossos); pois Ele em si foi tentado, pode ajudar aos que são tentados, tentado
entre todos, segundo nossa semelhança). Assemelhou-se
a nós em tudo e era tentado por todos como nós: assim também
pela desesperança humana.
Deus, que abandonou Cristo na cruz, não está também ausente
para conosco?
Uma coisa que não consigo entender, que nem os contemporâneos
do Senhor entenderam. Os que esperavam a vinda do Messias em sua glória. Que
não podiam entender, e que não podemos entender: pois o Senhor, como diz
Kierkegaard, não é um imenso papagaio vermelho.
Se aparecesse na praça de repente e sem motivo um pássaro
gigantesco muito colorido, certamente que todas as pessoas se precipitariam
para vê-lo e entenderiam que não é algo muito comum.
Num caso desses, seriam muito fáceis à fé, a penitência.
Mamão com açúcar. Toma lá, dá cá.
Pede-se-nos, porém, que creiamos na liberdade plena e se
diria que – pior que isso – o cenário se desenvolve als ob [como se] estivéssemos não apenas completamente abandonados,
mas também – além disso, um mal nunca vem só –, a providência faz de maneira intencional tudo para não crermos; dir-se-ia que lhe agrada
acumular obstáculos, aumentar-nos os riscos, acrescentar argumentos para
transformar em algo impossível a vontade bem intencionada de devoção.
Os caminhos que levam à fé têm o mesmo nome, todos: aposta,
aventuras, incertezas, pensar de louco.
Dostoiévski: Se Deus não desceu da cruz, é decerto pelo
motivo de querer converter o homem não pelo constrangimento de um milagre
evidente, mas pela liberdade de crer e dando-lhe o ensejo de manifestar seu
arrojo.
Quando se dizia ao Senhor no Gólgota: salva-te a ti mesmo e,
então, cremos, o erro era, de fato, de ordem linguística, julgava-se com
fundamento numa confusão de termos. Se tivesse descido da cruz, já não era
necessário crer, pois teria havido o
reconhecimento de um fato (como no caso do papagaio vermelho: a descida de cruz
ter-se-ia constituído num imenso papagaio vermelho).
Pede-se-nos – um convite à valentia temerária e à aventura
palpitante – algo mais misterioso e mais estranho: que contestemos a evidência
e confiemos num não fato.
Age por vias tortuosas.
Vias impenetráveis, dizem os franceses. Mas os ingleses são mais precisos:
mexe-se de maneira misteriosa.
Leon Bloy: “Ó Cristo, que oras pelos que te crucificam e
crucificas aqueles que te amam!”.
Quando Kierkegaard escreve que Deus não quer mostrar-se à
maneira extravagante, deslumbrante e constrangedora de um imenso papagaio
vermelho, está parafraseando as palavras de Lucas 17,20-21: “O Reino de Deus
não virá com mostras algumas exteriores: nem dirão: Ei-lo aqui, ou ei-lo acolá.
Porque eis que aqui está o Reino de Deus dentro de vós”.
É de admirar que um povo com uma mente tão afiada como o
judeu tenha podido ater-se a um Messias glorificado, descendo do céu com uma
pompa definitiva que não se poderia sofrer a mais mínima dúvida, mas apenas a
prosternação, a verificação. Como não desconfiaram que o plano divino
recorreria a um caminho menos simplista? A solução messiânica imaginada por Judas
é de uma candura semelhante à solução cênica de um deus ex machina.
Fonte: N. Steinhardt, O Diário da Felicidade, É Realizações, São Paulo, 2009, trechos selecionados,
pág. 109-110, 119-120 e 275-276).
Imagem: A Crucificação, de Matthias Grünewald (1470-1528).