Como será viver em outro mundo? Não me refiro a outro planeta, mas a outro mundo. Se por “mundo” entendemos não apenas a totalidade do universo físico, mas também todas as criaturas imateriais que existem, então concluiríamos que é impossível viver em outro mundo. Não há outro mundo além deste e, se há, então também faz parte do mundo. Porém, viver em outro mundo pode significar viver em uma época na qual a maneira como o mundo é organizado – sua estrutura e a hierarquia entre os seres – seja vista de maneira radicalmente diferente.
Em The Discarded Image, C. S. Lewis explica como era a visão-de-mundo dos homens medievais, sobretudo dos grandes expoentes da literatura medieval. Eles acreditavam na terra plana? Em faunos e ogros? Na astrologia? Sem este conhecimento prévio, sem este “mapa” em mãos, a leitura dos autores medievais e dos primeiros renascentistas torna-se uma tarefa quase misteriosa, para não dizer inútil.
Neste artigo, omiti quase que por completo as inúmeras referências e citações usadas por Lewis, já que meu objetivo é apenas apresentar a estrutura da cosmovisão. Fica claro, portanto, que o leitor desejoso de estudar algum aspecto específico desta cosmovisão deve ter em mãos a obra original de Lewis.
A maneira como as crenças dos homens medievais se formaram não é igual à maneira como as crenças dos homens selvagens (ou “bárbaros” ou “incivilizados”) se formaram. Em linhas gerais, as crenças selvagens são fruto de respostas ao ambiente imediato; são, portanto, produto da imaginação. As crenças medievais, por outro lado, são fruto de longos períodos de estabilidade, nos quais o “ambiente” é feito de livros. Sim, isso mesmo: o medieval era um homem livresco, cujas crenças engendraram-se a partir de raciocínios éticos, filosóficos e científicos sobre livros antigos que se encontravam à sua disposição. Ao contrário do que a cultura popular ensina, os medievais não eram pessoas sonhadoras, que gostavam de pensar em assuntos bizarros e inúteis, mas um verdadeiro organizador, um construtor de sistemas. Tudo era codificado e organizado, desde o sexo até a guerra, a teologia, a ciência e a história. Todas estas questões, juntas, formam o que Lewis passa a chamar de Modelo do Universo, ou simplesmente Modelo. É este Modelo que o estudioso medievalista deve aprender para começar a compreender a mentalidade medieval.
Antes de apreciarmos os detalhes desse Modelo, cabe uma observação importante. Em primeiro lugar, modelos, sejam os modelos científicos modernos, seja o Modelo medieval, não são afirmações absolutamente factuais sobre a realidade. São esquemas provisórios que ajudam a explicar a realidade, ou seja, são esquemas que não devem ser defendidos como sendo os únicos universos de discurso (ver Dialectic) possíveis. Os Modelos, em si, não são a realidade bruta e factual. Daí decorre um fenômeno interessante: quanto mais ignorante for uma pessoa, tanto mais ela se apegará ao Modelo vigente. É por isso que as pessoas ignorantes levam tão a sério o homem das cavernas ou a teoria dos átomos, mas, ao mesmo tempo, não pensam duas vezes em duvidar da vida de Júlio César ou Shakespeare. O Modelo moderno lhes diz que o homem evoluiu desde um passado remoto, há milhões de anos, que os produtos químicos são organizados da maneira que a teoria atômica lhes diz, que os antigos cronistas inventavam estórias emplumadas para enganar o povo idiota. Não é ruim que seja assim, pois é natural que as pessoas simples e fáceis se apeguem a esquemas que por princípio são simples e fáceis. No entanto, quanto mais subirmos na escala do conhecimento e da inteligência, tanto mais o Modelo será questionado. Os homens de ponta, os homens verdadeiramente inteligentes, sabem que os Modelos são frágeis e, ademais, são estes os homens que constroem e aperfeiçoam os Modelos. É natural que não os levem a sério, ou pelo menos não o levem tão a sério. A propósito, isso ajuda a explicar por que os cientificistas não são realmente cientistas (ver Wolfgang Smith).
Mutatis mutandis, o raciocínio acima também vale para o Modelo medieval. As pessoas simples daquela época também levavam o Modelo a sério; no entanto, não devemos nos esquecer que poetas e literatos também são, neste sentido, pessoas simples. É por isso que, na medida que tomamos contato com as obras de filosofia e teologia medievais, o Modelo será cada vez menos usado e cada vez mais questionado. Os poetas, mais ligados aos sentimentos e às emoções, naturalmente se inclinam ao Modelo e buscam nele sua força e satisfação. Os teólogos e místicos praticamente o ignoravam – naturalmente não cooptavam com os elementos pagãos que contribuíam para sua composição –, mas compreendiam que as pessoas o adotassem.
Em segundo lugar, o Modelo medieval é um conjunto de concórdias ou linhas de intersecção entre filósofos, poetas e cientistas, em um longo espaço de tempo. Conforme dissemos acima, os medievais eram pessoas livrescas, ou seja, levavam muito a sério as doutrinas de filósofos e poetas pagãos. Assim, torna-se imprescindível que vislumbremos quais autores influenciaram os poetas medievais.
Lewis divide essa tarefa em dois períodos: o período clássico, anterior à Idade Média, e o período seminal, na aurora da Idade Média. Vejamos muito brevemente os exemplos que o autor utilizou.
Influências do período clássico
A República, de Cícero, foi escrita em 50 a.C., e contém alguns elementos que foram mais tarde aproveitados pelos autores medievais. (1) A tentativa de conferir verossimilhança a um sonho fictício atribuindo-lhe causas psicológicas é um aspecto aproveitado por Chaucer [Sir Geoffrey Chaucer (1340-1400), poeta inglês medieval]; (2) a esfera celeste mais alta, chamada de stellatum, foi mais tarde citada por Dante [Dante Alighieri (1265-1321), poeta italiano medieval] e Chaucer; (3) a previsão da futura carreira política do neto é um elemento aproveitado por Dante; (4) a idéia de que os homens são propriedade dos deuses e que, enquanto propriedade, não devem dispor de si próprios foi utilizada posteriormente por Spenser [Edmund Spenser (1552-1599), poeta inglês]; (5) a insignificância da Terra em relação ao restante do cosmos é uma perspectiva também comum aos medievais e, claro, ao pensamento moderno; (6) Cícero, bem como seus sucessores, faz da Lua o limite entre as coisas eternas e as coisas perecíveis, além de ensinar, um tanto vagamente, é verdade, que os planetas influenciam a sorte dos homens na Terra.
Marco Aneu Lucano foi um poeta romano que viveu de 34 d.C. a 65 d.C. Seus livros também contêm elementos que influenciaram os poetas medievais. (1) Dante aproveita uma prosaica história contada por Lucano em seu segundo livro: Márcia casou-se primeiramente com Cato e, sob suas ordens, posteriormente com Hortênsio; após a morte de Hortênsio, Márcia retorna a Cato, exigindo, com sucesso, seu re-casamento. Dante a transforma em uma alegoria: Márcia é la nobile anima; enquanto virgem, é l´adolescenza; enquanto esposa de Cato, é la gioventude; os filhos de Márcia com Cato são as virtudes próprias dessa idade; o casamento com Hortênsio é a senettude; os filhos de Márcia com Hortênsio são as virtudes próprias da idade; a morte de Hortênsio e a viuvez de Márcia são a transição para um período de idade muito avançada (senio); o retorno de Márcia a Cato é a alma nobre que retorna a Deus; Cato é o próprio Deus; (2) Lucano, em seu nono livro, conta a história da ascese da alma de Pompeu, desde a pira funerária até os céus; Pompeu passa pelo ar, pela fronteira entre o ar e o éter, ou seja, entre a ‘Natureza’ e o ‘Céu’ de Aristóteles, que é a órbita da Lua, e, de lá do alto, observa as zombarias feitas em seu próprio cadáver, em um funeral deveras bagunçado. Pompeu acha graça e ri. Boccaccio [Giovanni Boccaccio (1313-1375), escritor e poeta italiano medieval] aproveita esta história em seu Teseide, usando-a no espírito de Arcita. Chaucer faz algo semelhante em Knight´s Tale, usando-a no espírito de Troilus.
Públio Papínio Estácio (Statius) foi um poeta romano e viveu de 45 d.C. a 96 d.C. Um dos aspectos mais notáveis de sua obra é a citação breve mais interessante da Natura. Para ele, a Natura é a princeps (primeira) e creatrix (criadora) de todas as coisas, inclusive da própria paixão (Pietas) que se revolta contra ela; a Natura também é a dux (guia) daqueles que fazem guerra santa contra as coisas monstruosas e ‘inaturais’. Claudiano (Claudius Claudianus) (370-404) vai além, e ensina que a Natura é o demiurgo que reduz o caos primordial ao cosmos; ela também nomeia os deuses que servirão a Júpiter. No entanto, cabe lembrar que, para os medievais, a Natura não era tudo: seu lugar é abaixo da Lua e cumpre ordens de Deus enquanto vice-gerente desta região. É por isso que os medievais, tornando-a limitada e subordinada, puderam fazer uso mais livre e intenso da Natura em suas poesias.
Apuleio (Lucius Apuleius) (125-180), poeta romano, escreveu De Deo Socratis (Do deus de Sócrates), no qual cita implicitamente dois trechos de Platão: Apologia (31c-d) e Simpósio (202e-203e). Nestes trechos, conta-se que os demônios são criaturas intermediárias entre deuses e homens, e somente com eles os homens são capazes de se comunicar com os deuses. Apuleio ensina, por sua vez, que os demônios ou “espíritos intermediários” habitam uma região entre a Terra e o éter, ou seja, o ar, que se estende até a Lua. Afinal, a ratio determina que deve haver uma espécie genuinamente aérea, assim como os deuses são etéreos e os homens terrestres. Os demônios têm corpos de consistência mais delicada do que as nuvens, os quais não são visíveis aos homens. Apuleio afirma que os demônios são animais, mas não bestas: assim como há animais racionais terrestres (os homens), os demônios são animais racionais aéreos.
Apuleio introduz dois princípios que Lewis considera como capitais para a compreensão da cosmovisão medieval. (1) O Princípio da Tríade, que afirma que duas coisas não podem se unir sem o auxílio de uma terceira coisa. Este princípio encontra-se também em Platão (Timeu 31b-d). Entre Deus e os homens deve haver uma ponte, uma “terceira coisa”. Similarmente, entre a razão e os apetites, entre a alma e o corpo, entre os reis e os súditos etc. (2) O Princípio da Plenitude, que afirma que o universo deve ser plenamente explorado e habitado. Se há uma região entre o éter e a Terra – o ar –, então essa região deve necessariamente ser habitada. Nada existe superfluamente.
Influências do período seminal
O período seminal é situado por Lewis entre 205, ano em que nasceu Plotino, e 533, ano em que o autor acredita ser a primeira vez em que surge São Dionísio. Seus autores são pagãos, influenciados pelo neoplatonismo, mas influenciaram em muitos aspectos a mentalidade medieval.
A obra de Calcídio (Chalcidius), filósofo neoplatônico do século IV, resume-se a uma tradução incompleta do Timeu, de Platão, acompanhada de comentários. Sua obra é importante porque foi ela a principal responsável por traçar o perfil de Platão a ser conhecido pelos medievais. (1) Em Timeu 42b, Platão ensina que a alma dos homens perversos seria reencarnada como mulheres e, caso não se curasse, em bestas. Mas Calcídio acredita que, com isso, Platão quis dizer que quanto mais os homens se entregarem às paixões, tanto mais se parecerão com animais. (2) Em Timeu 40d-41a, Platão explica a criação dos deuses – não os deuses mitológicos, mas os deuses em que ele realmente acreditava, as estrelas animadas. No que tange o panteão de deuses, Platão os rebaixa ao grau de demônios para, em seguida, se recusar a versar sobre eles, dizendo ironicamente que seus antepassados, por serem seus descendentes, deveriam saber melhor do que ele sobre esses deuses. Calcídio leva a explicação platônica ao pé da letra, dizendo que, na verdade, Platão não quis explicar a origem desses deuses por ser um filósofo. (3) Calcídio escreve sete capítulos sobre os sonhos, inspirando-se em Timeu 45e. (4) Calcídio introduz algumas noções astrológicas: a Terra é infinitesimalmente pequena em relação ao universo como um todo; o movimento dos planetas é a fonte dos efeitos que se verificam na Terra, embora ele deixe claro que se trata de um epifenômeno, pois o verdadeiro motivo é os astros seguirem o curso apropriado à sua beatitude (o universo, portanto, é geocêntrico, mas não antropocêntrico); a Terra está no centro apenas para fornecer um centro em torno do qual os astros revolvem, ou seja, por conveniência estética, mas não antropocêntrica. (5) Inspirando-se em Timeu 47b, Calcídio afirma que o propósito da visão não é auxiliar a sobrevivência humana, mas motivar o homem a buscar a Deus ao contemplar o céu e as estrelas; similarmente, o propósito da audição é ouvir música – não a música vulgar, mas a música divina, que nunca abandona o entendimento e a razão –, pois a alma diz respeito a ritmos e melodias e, estando ligada ao corpo, tal relação acaba por se desvanecer. (6) Calcídio reforça os Princípios da Tríade e da Plenitude, a exemplo de Apuleio (por exemplo, a voz de Deus não pode ter vindo diretamente de Deus; a política é uma tríade de soberanos, executivos e súditos; os poderes estrelares comandam, os seres angélicos executam, os seres terrestres obedecem; a parte racional do homem situa-se no capitolium (a casta dos filósofos), a parte ‘vigorosa’ situa-se no peito (a casta dos guerreiros), a parte apetitiva situa-se no abdômen (a casta das pessoas comuns).
Macróbio (Ambrosius Theodosius Macrobius), filósofo neoplatônico do século V, escreveu, entre outras obras, um comentário ao Somnium Scipionis, de Cícero, o qual citamos acima. (1) O historiador Hecateu visita o Egito e descobre que os egípcios possuem muitas gerações mais de antepassados do que os gregos e, mesmo assim, não se encontra entre eles nenhum semideus. Isso leva Macróbio a concluir que o universo sempre existiu. (2) Macróbio afirma que a coisa mais pura e límpida (liquidissimum) eleva-se ao lugar mais alto e é chamada de éter; aquilo que é menos puro e possui algum grau de peso é o ar; o que é mais pesado e representa resistência ao tato (corpulentum), mas ainda conserva alguma fluidez, se junta em forma de água; o restante, o que vem do ‘tumulto da matéria’, o ‘irreclamável’ (vastum), reduz-se a terra. (3) Macróbio identifica cinco tipos de sonhos, sendo que três primeiros são verídicos e dois últimos não têm ‘divinização’ em si: (a) somnium, nos quais as verdades são reveladas de forma alegórica (a psicologia moderna classifica a maioria dos sonhos desta forma); (b) visio, previsão literal e direta do futuro; (c) oraculum, alguma pessoa venerável, talvez até um dos pais, declara o futuro ou dá conselhos; (d) insomnium, mera repetição de preocupações correntes; (e) visum, quando a pessoa não está ainda dormindo e crê que está acordada, ela pode ver formas que se atiram contra a pessoa ou brigam com ela; são os típicos pesadelos. (4) Macróbio descreve a criação da Mens e da Anima (os conceitos neoplatônicos do Noûs e da Alma do Mundo) de maneira repugnante à teologia cristã, pois são descritas como menores e distintas de Deus. (5) Macróbio formulou um sistema ético baseado no quaternion clássico de virtudes: prudência, temperança, fortaleza e justiça. Há quatro níveis em que estas virtudes devem ser avaliadas: político, purgatorial, das almas já purificadas, do Mens (ou Noûs). (6) Macróbio acreditava que a alma poderia retornar ao céu, pois teria vindo de lá; que o corpo é o túmulo da alma; que a alma é o homem; que todas as estrelas são maiores do que a Terra; que as estrelas não produzem eventos terrestres, embora sua posição relativa permita que possamos predizê-los.
Lewis acredita que São Dionísio, o Areopagita, foi o “Pseudo-Dionísio”, o qual escreveu seus famosos livros em algum ano anterior a 533. Sua principal contribuição ao Modelo foi a hierarquia angélica. A primeira hierarquia contém três espécies de anjos: serafins, querubins e tronos. A segunda hierarquia é composta de dominações, potestades e virtudes (não no sentido moral, mas no sentido eficiente, que produz um efeito, como nas ‘virtudes’ de um anel mágico ou planta medicinal). Essas duas hierarquias voltam-se para Deus. A terceira e mais inferior hierarquia ocupa-se dos homens, sendo composta de principados, arcanjos e anjos. Assim como Platão e Apuleio, Pseudo-Dionísio também defende o Princípio da Tríade, ou seja, que entre Deus e os homens há uma hierarquia intermediária, assim como entre as faculdades humanas governante e obediente deve haver uma intermediária.
Boécio (480-524) é o homem mais influente da Idade Média. Até uns duzentos anos atrás, era conhecido e lido por todas as pessoas cultas. Aprender a amá-lo é se naturalizar medieval. A consolação que Boécio busca na filosofia (De Consolatione Philosophiae) é limitada: ao mesmo tempo em que louva a Philosophia por suas provas "inatas e domésticas", a dispensa nas questões cujas "razões vêm de fora" (por exemplo, nas questões que tange o inferno e o purgatório). (1) É da natureza de sua atividade que os filósofos devam antecipar a calúnia; afinal, o propósito maior (maxime propositum) dos filósofos é desagradar a ralé, e não ser admirado. (2) Boécio não compreende por que Deus governa a Natureza com tanta regularidade e os assuntos humanos com tanta irregularidade. Este tema será posteriormente aproveitado por Alanus, Jean de Meung e Milton. (3) O Livro III contém sua famosa apologia à Fortuna. Boécio se recusa a aceitar a idéia de que pessoas más serão necessariamente punidas com castigos e pessoas boas serão necessariamente prósperas e ricas. Esse tipo de perspectiva, comum a pagãos vulgares e cristãos vulgares, é típico de “homens cruéis”. Os bens exteriores nunca são perdidos porque, na verdade, eles nunca foram nossos. A beleza dos campos e das pedras preciosas é delas, não nossa; a beleza das roupas é delas (ou da habilidade do tecelão), mas não nossa. Mesmo a fama não é nossa, porque a fama em um lugar pode ser a infâmia em outro. A nobreza também não é nossa, mas de nossos antepassados. A adversidade tem o mérito de nos mostrar quem são os nossos amigos verdadeiros e quem são os amigos simulados. (4) Todos os homens buscam a Felicidade, mas a maioria o faz por caminhos errados, como o homem bêbado que sabe que tem uma casa, mas não sabe como chegar lá. No entanto, mesmo os caminhos errados, como a riqueza e a glória, mostram que os homens portam alguma semelhança com a verdade, pois o verdadeiro bem é glorioso como a fama e auto-suficiente como a riqueza. (5) O Livro IV contém uma digressão sobre a justiça no contexto da Fortuna. A Philosophia apresenta duas visões: (a) tudo é justiça, pois o homem bom é sempre recompensado e homem iníquo é sempre punido, isto é, o poder maligno e as operações malignas são a própria punição da vontade maligna; (b) a Providência, espelhada na multiplicidade do tempo e do espaço, torna-se Destino. Como em uma roda, quanto mais próximo do centro, menos propensos ao Destino estaremos; toda sorte, vista do centro, é boa e medicinal. Assim, Boécio conclui que acima da ratio existe a intelligentia, e a ratio só é capaz de conceber o futuro como algo determinado. É necessário, portanto, elevar-se ao nível inteligencial para apreendermos o conhecimento que não envolve determinismo. A eternidade não é a mesma coisa que perpetuidade, o que significa que o tempo e apenas uma imagem, quase uma paródia, da plenitude da eternidade. Por isso, Deus sempre vê, jamais prevê.
Os Céus
Every kindly thing that is
Hath a kindly stede ther he
May best in hit conserved be;
Unto which place every thing
Through his kindly enclyning
Moveth for to come to
(Chaucer, Hous of Fame, II, 730 sq.)
a) O mundo
A ciência moderna explica os fenômenos naturais com base em leis e a obediência dos corpos a essas leis. A ciência medieval, por outro lado, faz uso dos conceitos fundamentais de simpatia, antipatia e aspiração. Em outras palavras, todas as coisas possuem seu lugar certo, a região que melhor lhes convém, um instinto residente. No entanto, os medievais não pensavam que as coisas e objetos eram sensíveis e que agiam propositadamente, a não ser no caso das estrelas, já que consideravam-nas seres orgânicos. Neste contexto, é curioso observar que o linguajar moderno é mais ingênuo e antropomórfico do que o linguajar medieval. Afinal, a idéia de que a matéria possui inclinações é mais “animal”, enquanto a idéia de que a matéria obedece a leis e regras é mais “humana”. Ambas as linguagens não devem ser tomadas literalmente, mas o ponto de vista medieval apela muito melhor à imaginação e às emoções, pois projeta sentimentos e desejos à matéria, enquanto o ponto de vista moderno projeta sistemas jurídicos e códigos de trânsito. No caso medieval, sugere-se uma continuidade entre os eventos físicos e nossas aspirações espirituais.
As propriedades simpáticas e antipáticas são os famosos quatro contrários: quente, frio, úmido e seco. Eles se combinam para formarem os quatro elementos: fogo (quente + seco), ar (quente + úmido), água (frio + úmido) e terra (frio + seco). Há ainda o quinto elemento ou quintessência, que é o éter. Porém, o éter só pode ser encontrado acima da Lua e, portanto, nós mortais não temos acesso a ele.
No mundo sublunar – o mundo da Natureza –, os quatro elementos se situam em seus lugares apropriados. A terra é o mais pesado e aglomera-se no centro; sobre ela está a água e, mais acima ainda, o ar. Por fim, o fogo, o mais leve dos elementos, procura sempre subir para o limite da circunferência da Natureza, formando uma esfera imediatamente abaixo da órbita da Lua.
No centro do universo situa-se a Terra, que é esférica. Ela é circundada por um conjunto de globos ocos e transparentes, um acima do outro, um maior do que o outro (do centro para fora). Estes globos são chamados de ‘esferas’, ‘céus’ ou, mais raramente, de ‘elementos’. Em cada uma das sete primeiras esferas há um corpo luminoso. A partir da Terra, a ordem é a seguinte: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Depois da esfera de Saturna há o Stellatum, ao qual pertencem todas as estrelas que ainda hoje chamamos de ‘estrelas fixas’, pois a posição relativa entre elas é invariável. Depois do Stellatum temos uma esfera chamada de Primeiro Móvel ou Primum Mobile. Como esta esfera não porta nenhum corpo luminoso, ela não dá nenhuma evidência aos sentidos humanos.
E depois do Primum Mobile? Para além dos céus há o Céu propriamente (caelum ipsum), que é “cheio de Deus”, como disse Bernardo (Bernardus Silvestris, poeta do século XII) em sua cosmografia. Lá não há espacialidade, nem temporalidade, mas “luz pura, luz intelectual, amor pleno” (Dante, Paradiso, XXX, 38).
As dimensões do universo medieval não são tão bem definidas quanto sua estrutura. Há claros indícios de que seria bem menor do que o universo moderno, mas, em termos imaginativos, a diferença entre mil e dez milhões de quilômetros é desprezível. Ambos podem ser concebidos (ou seja, podemos somar e subtrair seus números), mas ambos não podem ser imaginados. Uma característica importante, no entanto, é que o universo medieval é finito e esférico. Assim, quando o medieval olhava para o céu noturno ele contemplava um grande edifício, uma espécie de catedral; o homem moderno contempla o céu como um mar infinito, que se perde na névoa, ou mesmo como uma floresta desprovida de trilhas, totalmente isolada. O “espaço sideral” do homem moderno inspira terror, perplexidade; o espaço medieval apresenta ao observador algo sobre o qual a mente pode se assentar e se satisfazer em sua harmonia. O universo moderno é romântico, o universo medieval é clássico.
A arte medieval é orientada à ênfase que se quer dar ao objeto, ou seja, à sua importância, e não propriamente às suas dimensões físicas. A arte moderna, por outro lado, é mais uma ‘ilusão’, pois é orientada aos sentidos, isto é, tenta reproduzir como seria a perspectiva visual o mais ‘perfeitamente’ possível.
b) O movimento do mundo
O movimento do mundo vem de Deus. Ele causa o movimento do Primum Mobile no sentido oriente-ocidente, cuja rotação é concluída em 24 horas. A rotação do Primum Mobile causa a rotação do Stellatum, que por sua vez causa a rotação de Saturno, e assim por diante, até a Lua. Essas esferas inferiores rotacionam-se no sentido ocidente-oriente, mas como se contrapõem à ‘corrente’ do Primum Mobile, acabam rotacionando também no sentido oriente-ocidente, mas mais lentamente.
Além do movimento físico, as esferas também transmitem à Terra as chamadas ‘influências’. Muitas pessoas dizem que Igreja desaprovava essa idéia, mas a verdade é que os teólogos aceitavam a teoria de que os planetas influenciam os eventos e a psicologia e, mais ainda, as plantas e minerais. Na verdade, a Igreja não aceitava que (a) a astrologia fizesse uso lucrativo e político das previsões, (b) a astrologia se tornasse alvo de adoração planetária e (c) a astrologia chegasse a ponto de impor uma visão determinista, ou seja, de negar o livre arbítrio. A razão e a vontade se deixam influenciar, mas não de maneira necessária, pela matéria. Os astros influenciam o poder imaginativo do homem, mas tal influência situa-se no campo da propensão, e não da necessidade. A propensão pode ser resistida; daí a idéia de que os homens sábios se sobrepõem aos astros. No entanto, como a maioria dos homens não é sábia, a astrologia é capaz de fazer predições, a exemplo das predições atuariais.
Eis uma breve descrição das características dos sete planetas. Vale lembrar que, devido aos diferentes graus de dificuldade e aplicabilidade, as características planetárias devem ser compreendidas intuitivamente, e não conceitualmente.
· Saturno. Na Terra, sua influência produz o chumbo. No homem, o estado melancólico. Na história, eventos desastrosos. É chamado de Infortuna Major, por ser o mais terrível dos planetas.
· Júpiter. Produz o estanho. Chamado de “o Rei”, produz no homem um estado um tanto difícil de descrever, o qual poderíamos aproximadamente chamar de “jovial”: um temperamento alegre, festivo, mas equilibrado, tranqüilo, magnânimo. Dante situa em Júpiter os príncipes justos. É chamado de Fortuna Major, por ser o melhor dos planetas.
· Marte. Produz o ferro. No homem, produz um temperamento robusto, rígido, resistente, firme. No entanto, por causar a guerra, é chamado de Infortuna Minor. Em Dante, é o céu dos mártires.
· Sol. Produz o ouro, o mais nobre dos metais. O Sol é também o olho e a mente de todo o universo. Ele torna os homens sábios e liberais (no sentido medieval). Causa eventos auspiciosos. Dante faz do Sol o céu dos teólogos e filósofos.
· Vênus. Produz o cobre. No homem, a beleza e amorosidade. Na história, também eventos auspiciosos. Por este motivo, é chamado de Fortuna Minor. Em Dante, é o céu dos penitentes que, em vida, amaram ilegalmente.
· Mercúrio. Produz o mercúrio. No homem, produz um estado difícil de descrever; Lewis tenta algo como “diligência vivaz” ou “avidez versada”. Dante aloca na esfera de Mercúrio os homens beneficentes.
· Lua. Produz a prata. A Lua é a fronteira entre o éter e o ar, entre o "céu" e a "natureza", entre o reino dos deuses (ou anjos) e o reino dos demônios, entre o âmbito da necessidade e o âmbito da contingência, entre o incorruptível e o corruptível. No homem, produz um estado errante, que tanto pode se referir, em termos físicos, a pessoas viajantes, quanto, em termos psíquicos, a pessoas "errantes" de humor. Não à toa, as pessoas que apresentam insanidade periódica são chamadas de "lunáticas". Dante manda para a esfera lunar as pessoas que abandonaram a vida monástica por alguma razão boa ou perdoável.
De acordo com o princípio da transmissão, ou mediação, as influências não nos afetam diretamente, mas através da modificação do ar. É por isso que, quando um médico sentia-se incapaz de diagnosticar com precisão o que estaria causando a condição de um paciente, ele atribuía a causa a “alguma influência que está no ar”.
Para os medievais, os astros não se movem em um oceano negro e vazio, como em geral pensam os modernos. O sistema astrológico medieval é, em certo sentido, mais heliocêntrico do que o moderno. O Sol ilumina o universo inteiro. Nenhuma outra estrela tem luz própria, pois são iluminadas pelo Sol (mais ou menos como a "Lua moderna"). Cada milímetro cúbico do universo é iluminado pelo Sol. O que acontece durante o que chamamos de ‘noite’ nada mais é do que a sombra cônica projetada pela Terra. Segundo Dante (Paradiso, IX, 118), esta sombra se estende até Vênus. De noite, quando olhamos para o céu, não estamos olhando a escuridão, mas estamos olhando através da escuridão.
Por fim, cabe lembrar que, assim como o universo não é escuro, ele também não é silencioso. Cada planeta produz certos sons e harmonias.
c) Os habitantes do mundo
Deus causa o movimento do Primum Mobile, conforme vimos acima. Mas Ele não faz isso como um guerreiro que causa o movimento da espada ou como o vento que causa o movimento de um barco. Se fosse assim, explicaríamos um movimento pelo outro ad infinitum e concluiríamos que o universo é um sistema fechado, cujo movimento causa e é causado por outros movimentos dentro de si mesmo. Na realidade, Deus causa o movimento do Primum Mobile de uma maneira diferente: o Primum Mobile é movido por seu amor a Deus; ao se mover, ele comunica movimento ao restante do universo.
Os medievais explicam, ademais, que o movimento dos planetas é de rotação porque, incapazes de imitar a perfeita imobilidade de Deus, movimentam-se da maneira mais semelhante e perfeita possível, a saber, o movimento perfeitamente regular e ágil das circunferências. Isso significa que as esferas, ou pelo menos algo residente nelas, são seres intelectuais, que são movidos pelo ‘amor intelectual’ de Deus. Estas criaturas são chamadas de Inteligências. Na Antiguidade, dizia-se que as Inteligências estavam ‘nas’ esferas. Mais tarde, os escolásticos introduziram a idéia de que as almas das esferas não estão para as esferas assim como a alma humana está para o corpo humano. Em outras palavras, a alma das esferas e a alma dos homens são de tipo diferente, cuja relação não se dá por enteléquia, como no caso humano. Note, porém, que as Inteligências são uma pequena parte da população angélica que habita a região entre a Lua e o Primum Mobile.
Dissemos acima que há planetas “ruins”. Como isso é possível, se acima da Lua não há corruptibilidade? Isso se explica pelo fato dos temperamentos de cada planeta serem ruins em relação aos homens. Em outras palavras, a pessoa que nasce sob Saturno poderá ser uma pessoa estúpida e descontente ou um grande contemplativo. Sob Marte, um Átila ou um mártir. E assim por diante. A culpa não é da influência, mas da natureza terrestre que a recebe. Em nosso mundo caído e corruptível, os homens, a Terra e o ar podem responder de maneira desastrosa às influências que, em si, são sempre boas. O mau paciente torna “mau” o bom agente.
O ar, que está na região sublunar, é habitado por demônios. Na Antiguidade, os demônios podiam ser bons ou maus. Na Idade Média, porém, todos os demônios são maus. De fato, Tomás de Aquino chama os demônios de “diabos”. Não por acaso, o mau tempo era freqüentemente associado com atividades de bruxaria.
Quando os homens modernos olham para o céu, sobretudo à noite, tem a sensação de que estão olhando para fora. O Modelo medieval dava aos medievais precisamente a sensação oposta, ou seja, de que estavam olhando para dentro. A Terra situa-se "do lado de fora dos muros da cidade" e, portanto, olhar para o céu significa olhar para dentro da cidade. Quando o Sol se levanta de manhã, os homens são ofuscados por sua luz e não conseguem enxergar os seres supralunares. De noite, o véu ofuscante do Sol é retirado, e podemos vislumbrar um pouco das pompas e alegrias que ocorrem na parte de dentro dos muros da cidade. Os seres que habitam aquelas esferas exercem suas faculdades de maneira desimpedida, como alguém que se deleita ao beber, mas sem nunca matar sua sede. A cada momento, as Hierarquias e Inteligências aperfeiçoam-se na medida que suas naturezas lhes permitem, mas jamais atingem a perfeição que pertence somente a Ele.
Os Longevos
Os longaevi são criaturas marginais e fugidias. O habitat deles é ambíguo entre o ar e a Terra. Eles são os pans, faunos, sátiros, silvanos, ninfas, elfos etc. Lewis tomou emprestado o nome longaevi de Martinus Capella, pois vivem muito mais do que os homens, embora não sejam imortais. Eles são inocentes, de "conversação irrepreensível", e seus corpos apresentam pureza elemental.
A partir do século XVI e XVII, os longevos começaram a ganhar ares de seres malignos, que deveriam ser evitados. Acredita-se que esse fenômeno ocorreu porque se inaugurou, por esta época, uma temporada de caça às bruxas, a qual acabou caçando os longevos por extensão. No entanto, mesmo hoje em dia, Lewis acredita que as pessoas não sintam repulsa quando imaginam encontrar um tritão ou uma ninfa, o que ocorre quando imaginam bruxas ou “espíritos”.
Os elfos são menores do que os homens, embora a literatura não especifique exatamente o quão menores seriam. Lembre-se que a imaginação visual dos medievais não se ocupava das dimensões físicas. Na literatura medieval, os homens não fogem dos elfos, mas os elfos fogem dos homens assim que percebem que estão sendo observados. Observar os elfos era um prazer, pois eles são seres alegres e satisfeitos, já que não sofrem os pesares da laboriosa vida humana.
As donzelas ou fadas são encontradas na floresta. No entanto, o encontro nunca é acidental. São elas que procuram os homens, e suas intenções são quase sempre amorosas. Em geral, seu tamanho é semelhante ao dos seres humanos.
Há ainda longevos de grande esplendor, luxo e riqueza material, chamados por Lewis de High Fairies. No entanto, luxo e esplendor material, no mundo moderno, são características associadas ao dinheiro e quase sempre à feiúra. Quando um medieval observava o luxo das cortes reais e feudais e imaginava que deveria ser ainda maior entre os longevos (e maior ainda no Céu), ele não associava esse luxo ao dinheiro (muito menos à feiúra). A arquitetura, as armas, as coroas, as vestimentas, os cavalos e a música eram quase sempre belíssimos e de bom gosto. O luxo e a riqueza eram itens associados à santidade, à autoridade, ao valor, à nobreza, ou, na pior das hipóteses, ao poder. O luxo e a riqueza estão associados à graciosidade e à cortesia, algo totalmente fora de cogitação no contexto da modernidade. O esplendor era algo a ser admirado, sem denegrir o admirador. Os High Fairies são vivazes, energéticos, voluntariosos e passionais: eles não são “espíritos”, pois, como explicou William Blake, “o Espírito e a Visão não são, como supõe a filosofia moderna, uma nuvem de vapor ou um nada; eles são organizados e minuciosamente articulados em um nível superior ao que a natureza mortal e perecível é capaz de produzir”.
Lewis reuniu quatro hipóteses que explicariam o que são os longevos: (a) eles seriam uma terceira espécie racional, distinta de homens e anjos; (b) eles seriam anjos “rebaixados de posto”; (c) eles seriam mortos, ou um tipo especial de mortos; (d) eles seriam anjos caídos, ou seja, diabos.
A Terra e seus habitantes
a) A Terra
Dante ensinava que a Terra, assim como os demais planetas, também tem a sua Inteligência, a qual ele chamava de Fortuna. O papel da Fortuna é servir de guia das maravilhas mundanas, transferindo de tempos em tempos essas benesses ilusórias de uma nação para outra, sem que a sabedoria humana saiba como.
Em termos físicos, todos os autores da Alta Idade Média ensinavam que a Terra é um globo. Todos reconheciam a existência da gravitação. Além disso, os mapas medievais não são bons documentos do conhecimento geográfico da época (por exemplo, o mappemoude de Hereford, século XIII). Isso porque os cartógrafos não eram as pessoas que detinham os melhores conhecimentos geográficos, que era altamente difuso. O homem medieval era um viajante nato: reis, exércitos, prelados, diplomatas, mercadores e filósofos viajavam constantemente, e o conhecimento geográfico raramente era registrado em mapas, pois era cristalizado na forma de conhecimento tácito na memória dos capitães dos navios e caravanas. A cartografia medieval tinha uma função menos geográfica e mais artística, sendo, portanto, de caráter meramente romântico. Não tinha função prática.
Recentemente, surgiu no meio acadêmico a idéia de que os medievais tinham conhecimento da existência de ilhas no Oceano Atlântico e até mesmo do continente americano. Estes registros estariam ligados à lenda de São Brandão. Lewis acredita que, mesmo sendo verdade, tal hipótese não chegou a influenciar marcadamente a mente medieval. A única coisa que atraía os medievais no Ocidente era a perspectiva de encontrar o Catái (norte da China). Se soubessem que havia um enorme continente no meio do caminho, provavelmente desistiriam de navegar nessa direção.
b) As bestas
Assim como os mapas-múndi não são bons documentos da geografia medieval, os bestiários também não são bons documentos da zoologia medieval. A maioria das descrições ali contidas são histórias fantasiosas, escritas por pessoas que nunca viram aqueles animais.
Os medievais não foram os primeiros a acreditar nas fantasias bestiárias. Desde a Antiguidade, histórias imaginosas sobre as animais já circulavam entre os poetas e a população. Cavalos que pressentem a morte de seus mestres, unicórnios domados por virgens, baleias diabólicas, hidras fabulosas etc.; em geral, os autores medievais não faziam distinção de autoridade entre os auctores antigos, tomando tudo o que escreviam com o mesmo grau de veracidade.
No entanto, as pessoas que faziam circular os bestiários não estavam muito preocupadas com a precisão factual das descrições ali contidas. O que importava era a moralitas, isto é, o sentido moral era mais real e vivo do que a o sentido empírico.
c) A alma humana
O homem é um animal racional. Em outras palavras, ele é um ser combinado, sendo racional como os anjos e animal como as bestas.
A alma racional não é o único tipo de alma no homem. Há também a alma sensitiva e a alma vegetativa. As potências da alma vegetativa são a nutrição, o crescimento e a propagação. A alma sensitiva contém estas potências, além da sensação. A alma racional contém todas as potências vegetativas e sensitivas, além da razão. Todas estas almas são imateriais. Isso significa que a alma não é uma parte ou um elemento que possa ser fisicamente dissecado.
A doutrina da pré-existência da alma humana foi explicitamente rejeitada na era escolástica. No entanto, na Baixa Idade Média e no período seminal vigorava a idéia de que a alma humana vivia no ar antes de se encarnar na Terra. Na Renascença, a renovação do corpus platônico e do platonismo em geral restaurou a doutrina da pré-existência da alma.
d) A alma racional
A alma racional possui duas faculdades: o intellectus e a ratio. O intellectus é o que de mais próximo os homens têm em relação à intelligentia angélica. De fato, o intellectus é chamado de obumbrata intelligentia (inteligência obnubilada ou sombra de inteligência). Tomás de Aquino explica que “inteligir (intelligere) é a apreensão simples (indivisível, incombinada) de uma verdade inteligível, enquanto raciocinar (ratiocinari) é a progressão para uma verdade inteligível, a partir de um ponto previamente entendido (intellecto). A diferença entre inteligir e raciocinar é semelhante à diferença entre repouso e movimento ou entre possessão e aquisição” (Iª, LXXIX, art. 8). Em outras palavras, desfrutamos do intellectus quando “simplesmente vemos” uma verdade auto-evidente; exercemos a ratio quando provamos passo-a-passo uma verdade que não é auto-evidente. A vida cognitiva em que todas as verdades sejam “simplesmente vistas” seria a vida cognitiva de um intelligentia, de um anjo. No entanto, a vida cognitiva em que todas as verdades tenham de ser trabalhados pela ratio é uma vida cognitiva impossível, já que nenhuma verdade pode ser alcançada sem que haja uma verdade auto-evidente prévia de onde partir. A vida mental humana é constituída pelo esforço de conectar os flashes freqüentes, mas momentâneos, da intelligentia. Cabe lembrar, contudo, que a distinção entre intellectus e ratio é típica dos filósofos. A linguagem poética não fazia essa distinção. Mais tarde, sobretudo a partir do século XVIII, a palavra razão foi reduzida à mera atividade de deduzir uma proposição de outra.
Ademais, na Idade Média, reconhecer uma obrigação moral significava perceber uma verdade; em outras palavras, o julgamento moral não era algo associado a pessoas sensíveis, mas a seres intelectuais. Platão preservou a idéia socrática de que a moralidade está associada ao conhecimento: os homens maus eram maus porque não conheciam o bem. Aristóteles incrementou esta perspectiva com a noção de criação e habituação, mas também considerava a conduta moral uma questão de “razão reta” (orthos logos). Os estóicos acreditavam em uma Lei Natural, a qual todos os homens racionais, em virtude sua racionalidade, eram movidos a seguir. São Paulo, em Romanos 2:15, fala da “lei escrita em seus corações”. A palavra “corações” jamais tinha a conotação emotiva que hoje se lhe atribuem. Em latim, por exemplo, o homem cordatus não era um homem sensível, mas um homem de bom senso, o que chamaríamos hoje de “pessoa razoável”.
e) A alma sensitiva e a alma vegetativa
A alma sensitiva possui dez sentidos, divididos em cinco sentidos interiores e cinco sentidos exteriores. Os sentidos exteriores são: visão, audição, olfato, paladar e tato. Os sentidos interiores são: memória, estimativa, imaginação, fantasia e sentido comum.
Não é necessário versarmos sobre a memória.
A estimativa é aproximadamente o que chamamos hoje de “instinto”. A estimativa ensina a vaca a identificar seu bezerro em um rebanho, por exemplo. A estimativa detecta as intentiones das coisas.
A fantasia é superior à imaginação. O papel da imaginação é de simplesmente reter o que foi percebido pelos sentidos, enquanto o papel da fantasia é manipular o conteúdo da imaginação mediante diferenciação e integração, separação e união. Aqui cabem duas observações: (a) a imaginação medieval é diferente da imaginação moderna, que é mais parecida com a fantasia medieval; (b) as “pessoas vulgares”, segundo Alberto Magno, confundem fantasia com pensamento, pois, quando dizem que estão pensando, na verdade, estão apenas brincando com imagens mentais.
O sentido comum não deve ser confundido com o “bom-senso” da língua portuguesa (racionalidade elementar) nem com o common sense da língua inglesa (opinião comum). Alberto Magno explica que o sentido comum apresenta duas funções: (a) julgar a operação de um sentido, de maneira que, quando vemos, sabemos que estamos vendo; (b) reunir os dados provenientes dos sentidos exteriores, de maneira que saibamos que a laranja é doce ou que esta laranja é mais doce do que aquela. Em suma, o sentido comum transforma a mera sensação em uma consciência coerente, ou seja, consciência da pessoa enquanto sujeito em um mundo de objetos.
A alma vegetativa não requer maiores explicações. Ela é responsável pelos processos inconscientes do organismo, como crescimento, secreção, nutrição e reprodução. Evidentemente, a alimentação e o ato sexual são ações conscientes, mas os processos involuntários despertados por estes atos pertencem à alma vegetativa.
f) Os espíritos
A atuação da alma no corpo pede, pelo Princípio da Tríade, um intermediário. Este tertium quid eram chamados de espíritos. Os espíritos apresentam uma característica dúbia: não são sutis o bastante para serem alma, nem materiais o bastante para serem matéria.
Os espíritos exalam do sangue, e fervem no fígado, surgindo daí uma "fumaça" pura. Esta fumaça é chamada de espírito natural. Ela é ainda mais purificada, tornando-se o espírito vital, operando os "pulsos da vida" nas artérias. Parte do espírito vital sobe para o cérebro, tornando-se ainda mais sutil e transformando-se no espírito animal. Parte deste espírito animal é distribuído pelos "limbos dos sentimentos" (os órgãos dos sentidos); parte permanece nas "covas" do cérebro, servindo de veículo para os sentidos interiores; ainda outra parte desce da parte traseira do crânio para a medula espinhal, sendo responsável pelos movimentos voluntários. O espírito animal é o órgão imediato da alma racional, e somente através desse órgão que a alma racional age quando se encarna. Os espíritos natural, vital e animal são às vezes chamados, respectivamente, de espíritos vital, animal e intelectual, mas mantêm exatamente as mesmas funções.
Os medievais nem sempre culpavam a alma racional pela insanidade, uma vez que o distúrbio poderia estar nos espíritos, deixando o corpo material fora de controle.
Se os espíritos estão situados em locais específicos do corpo, também é razoável supor que as funções da alma situem-se em locais específicos. A fantasia estaria na parte da frente da cabeça, a razão no meio e a memória na parte de trás.
g) O corpo
O leitor deve se lembrar dos quatro contrários e dos quatro elementos. No corpo humano, no entanto, os contrários produzem quatro humores: sangue (quente + úmido), cólera (quente + seco), fleuma (frio + úmido) e melancolia (frio + seco).
A proporção na qual estes humores encontram-se misturados formam seu complexio ou temperamentum. Embora as misturas nunca sejam iguais nas pessoas, é possível dizer que há sempre um humor que predomina em seu temperamento.
· O sangue é o humor predominante no temperamento sanguíneo. É o melhor dos quatro temperamentos, pois o sangue é "amigo da natureza". O homem sanguíneo é roliço, divertido e esperançoso. Um manuscrito do século XV ilustra o temperamento sanguíneo com um homem e uma mulher esplendidamente vestidos, tocando instrumentos de cordas em um campo florido.
· A cólera é o humor predominante no temperamento colérico. O homem colérico é alto e magro. Como o sanguíneo, o homem colérico fica bravo com facilidade, mas com a diferença que o colérico é vingativo. O manuscrito citado ilustra o temperamento colérico com um homem segurando uma mulher pelos cabelos e batendo-na com uma clava.
· A melancolia é o humor predominante no temperamento melancólico. Magro, dorme mal. Apega-se às suas opiniões e apresenta uma raiva prolongada e corrosiva. É o homem que hoje chamaríamos de neurótico, mas não o "melancólico" contemporâneo, que é triste, reflexivo, introvertido.
· A fleuma é o humor predominante no temperamento fleumático. É o pior dos quatro temperamentos. Gordo, branquelo, dorme excessivamente, sonha com coisas aquáticas ou peixes, lerdo, aprende com muita dificuldade, covarde.
Vale lembrar que determinados períodos do dia são preponderantes para temperamentos específicos: da meia-noite às 6h (sangue), das 6h ao meio-dia (cólera), do meio-dia às 18h (melancolia) e das 18h à meia-noite (fleuma).
h) A história
A historiografia medieval possui três funções primordiais: entreter a imaginação, gratificar a curiosidade e pagar a dívida que temos para com nossos antepassados. Em linhas gerais, a distinção moderna entre história e ficção não pode ser aplicada com precisão aos livros medievais nem ao espírito com que eram lidos. Os contemporâneos de Chaucer não acreditavam nos contos de Tróia ou Tebas da mesma maneira que acreditamos nas Guerras Napoleônicas, mas também não desacreditavam nelas como desacreditamos um romance.
O objetivo precípuo do leitor medieval não era aprender fatos, mas aprender a estória. Assim como em outros aspectos, a história medieval possui um objetivo mais elevado e importante do que contar fatos. A construção do caráter, a ênfase nas virtudes, na dignidade, na honra, tudo isso vale muito mais do que acumular fatos. Raramente o historiador medieval se ocupava de dados econômicos e sociais. As crônicas eram individuais, pessoais, concentravam-se no valor ou na vilania dos personagens, nos dizeres memoráveis, na boa ou má sorte.
Todavia, quem defende a história moderna não deve esquecer que ela também é seletiva, pois depende das inclinações imaginativas do historiador. Quem pensa que a história moderna é isenta, pura e perfeitamente objetiva engana-se terrivelmente.
Por fim, cabe lembrar que a linha de desenvolvimento da historiografia medieval é inversa à historiografia moderna: as eras passadas eram melhores do que a contemporânea, não havia “progresso”, a humanidade caminhava para períodos cada vez piores.
i) As artes liberais
As sete artes liberais atingiram um status de quase imutabilidade.
Eis o famoso mnemônico das artes liberais:
Gram loquitur, Dia verba docet, Rhet verba colorat, Mus canit, Ar numerat, Geo ponderat, Ast colit astra
A gramática é a arte da fala. Em outras palavras, ensinar gramática era ensinar latim.
A dialética "ensina palavras", ou seja, uma vez que a gramática ensinou a falar, a dialética ensinará a argumentar, a provar e a refutar.
A retórica era uma ferramenta indispensável nos tempos medievais, pois a oratória era uma necessidade para qualquer atividade pública ou atividade privada que envolvesse litígios. Geoffrey de Vinsauf escreveu a Nova Poetria (aprox. 1200), na qual ensinava a arte da amplificatio, ou seja, de como "amplificar" sua obra, como dizer muito quando se tem pouco a dizer. Esta arte consistia de três tipos de morae (prolongamentos): (a) Expolitio. Dizer a mesma coisa de maneiras diferentes. (b) Circumlocutio. Esticar uma obra chamando as coisas por outros nomes. (c) Diversia. Digressão. (d) Apostropha. (e) Descriptio. (f) Ornatus. Trocar as palavras de lugar na frase, pois o latim é uma língua que permite este tipo de recurso quase ao infinito.