Há tempos tenho desfrutado dos livretos de Leo J. Trese (1902-1970). Este padre americano tem o dom de ensinar eternas verdades em pequenas lições. Em Vaso de Argila (Vessel of Clay), Trese narra um dia típico de um pároco de uma pequena cidade americana. Cada capítulo corresponde a uma hora, meia-hora ou quarto-de-hora, nos quais as angústias, dúvidas e fraquezas do sacerdote são confidenciadas ao leitor. Na verdade, percebe-se que o "típico pároco" é o próprio Leo Trese, transformando a obra numa autobiografia.
Mas um dos capítulos chamou muito minha atenção. Às 10h45min (pág. 65), Trese trava um "diálogo" com sua consciência sobre o vício do fumo, algo que certamente o perturbava. Embora eu mesmo não seja fumante, não foi difícil transpor a lição de Trese aos meus próprios desvios morais (por exemplo, a gula). Em suma, Trese conclui que novos e saudáveis hábitos não devem se seguir a meras resoluções moralistas do tipo "tenho que parar de comer muito" ou "tenho que parar de assistir muita TV". Na verdade, os velhos vícios só serão genuinamente abandonados quando antes ocorrer uma mortificação interior, ou, na linguagem evangélica, um quebrantamento. É no arrependimento e no amor a Deus o início da verdadeira mudança. Caso contrário, o abandono do vício servirá apenas para reforçar o orgulho e a egolatria existentes.
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Terminada a Hora Média [uma das partes de que se compõe a Liturgia das Horas, também chamado de Breviário ou Opus Dei, que todos os padres devem rezar diariamente], puxo de um cigarro com um movimento quase instintivo. Não admira: é um movimento que repito mais ou menos trinta vezes por dia. De cada vez que o faço, a consciência repreende-me com um aviso, já completamente familiar. E aqui estamos outra vez - penso amargamente - com outro cigarro na boca e um fósforo na mão; aqui estamos outra vez, a minha consciência e eu, às voltas com o mesmo assunto.
CONSCIÊNCIA: Por que não deixas de fumar?
Eu: Acho que deveria.
CONSCIÊNCIA: Pois claro! É a única coisa da tua vida que não te deixa livre. Como podes falar de mortificação se fumas maço e meio de cigarros por dia?
Eu: Mas eu gosto de fumar e sabes perfeitamente que o Dr. Fitzgerald disse que não me fazia mal. Além disso, não me esqueço de dar graças a Deus por esta pequena satisfação. Não faço bem?
CONSCIÊNCIA: É claro que não. Fazer as coisas somente por prazer parece-me um pecado. Uma ação que não tenha um fim sobrenatural não tem valor.
Eu: Estás então querendo dizer que faço mal porque gosto de ver o nascer do sol da janela do meu quarto? Ou porque gosto de respirar o perfume dos lilases na primavera, ou das folhas secas no outono? Ou porque..
CONSCIÊNCIA: Alto lá! Estávamos falando de cigarros. És capaz de dizer-me o nome de um santo que tivesse o hábito de fumar?
Eu: Muito bem, se preferes argumentos ad hominem, permite-me uma pergunta: és capaz de dizer o nome de um santo cuja canonização tenha sido recusada por fumar, mascar tabaco ou aspirar rapé? Acho que a nossa questão não é de santidade, mas de pecado; se for de santidade, talvez estejamos de acordo. Mas explica-me em que consiste o pecado de fumar, e eu deixarei de cometê-lo agora mesmo.
CONSCIÊNCIA: Bem, talvez não seja pecado, mas seria melhor deixares de fumar imediatamente.
Eu: Não, imediatamente não. Sabes o que aconteceria se deixasse de fumar imediatamente? Ficaria orgulhoso como o demônio da minha força de vontade; desprezaria os meus amigos que não fossem capazes de fazer como eu; estaria tão ocupado em pavonear o meu auto-domínio que esqueceria as mortificações mais importantes.
CONSCIÊNCIA: Mais importantes? Quais, por exemplo?
Eu: Não me digas que não sabes que a mortificação interior é mais importante que a exterior. Olha por exemplo o que acontece nas sextas-feiras à noite: batem as nove, hora em que terminam oficialmente as confissões; se eu fosse zeloso como devia, não iria correndo fechar a porta da igreja para evitar a entrada de um retardatário, mas daria uma rápida olhada pela rua para o caso de estar chegando algum filho pródigo. Ou, senão, olha para este outro exemplo: é um dia qualquer, e eu me encontro no meu escritório, com o plano de trabalho já estabelecido, quando chega alguém querendo sentar-se e falar-me de alguma bobagem. Se eu me mortificasse interiormente, descobriria nessa pessoa a vontade de Deus e não teria tanta pressa em vê-la pelas costas. Repara, finalmente, no que aconteceu no último domingo: preparava-me tranqüilamante para descansar, quando me vieram dizer que a velha sra. Ebers precisava de que a levassem de carro ao hospital, a uns oitenta quilômetros, para visitar o marido. Se fosse interiormente mortificado, não teria demorado quinze minutos a ir ao telefone e oferecer-me para levá-la. Como vês, são alguns exemplos daquilo que penso serem as mortificações mais importantes. Podia deixar de fumar e continuar a ser um terrível egoísta, negligente e insuportável. Se me abstivesse da nicotina, não conseguiria nem a metade das vantagens que meia -hora de oração me oferece todos os dias. Se amasse mais a Deus...
CONSCIÊNCIA: Sim, já sei aonde queres chegar. Se amasses mais a Deus, seria mais fácil que te mortificasses. Uma renúncia heróica é mais o resultado do que a causa da virtude. Se progredisses no amor a Deus, o teu egoísmo se desfaria como uma cebola, casca por casca, até não restar nada. Pensas que chegará um dia em que te há de parecer natural e até inevitável deixar de fumar, um dia em que encontrarás maior gosto em não fumar do que em agarrar-te a esse costume. Enfim! O melhor seria aceitarmos um empate nesta disputa e eu variar a minha linha de ataque. Quanto tempo achas que precisarias para deixar de fumar segundo o teu método?
Eu: Só Deus sabe. Há momentos em que penso que o próprio Deus desanima tentando ensinar-me a cortar o mal pela raiz. Talvez o meu aço não esteja suficientemente temperado. Mas, consciência, não me abandones; se o conseguir, há de ser com a tua ajuda. A graça faz milagres e é possível que chegue um dia em que eu encontre verdadeira alegria em jogar cinza na comida e dormir sobre uma tábua. Entretanto, continuarei a saborear uma boa refeição, com toda a gratidão que devo a Deus e com o maior respeito pela virtude da temperança. Em nome da fraternidade e com o devido respeito pela virtude da sobriedade, continuarei a tomar um aperitivo com os meus irmãos sacerdotes antes do jantar. Parece-me ser uma sã doutrina pensar que tudo o que Deus fez é bom. Com toda a certeza, a alegria de um prazer inocente é obra das suas mãos e não se pode considerar um erro. Por isso, até que...
CONSCIÊNCIA: Cuidado! Esse fósforo vai-te queimar os dedos! Vamos, acende o cigarro e deixa de filosofar. Espero que não te convertas num racionalista. De qualquer modo, agora tenho mais que fazer. Preciso afiar a ponta da próxima seta.