Parte V: Assuntos Difíceis
Chamamos aqui de “assuntos difíceis” àqueles em que não basta apelarmos ao bom senso e às experiências comuns a todos nós. Elas exigem um tratamento filosófico mais refinado.
I – Infinitude
Leucipo e Demócrito propuseram, na Grécia Antiga, a teoria dos átomos. Segundo eles, tudo o que há é composto de minúsculas partículas de matéria, separadas por espaços totalmente desprovidos de matéria. A essas partículas eles chamavam átomos. Nada menor poderia haver no mundo pois, segundo eles, os átomos eram unidades indivisíveis de matéria e, além disso, infinitas em número.
Aristóteles apresentou duas sérias objeções a essa teoria atomista.
Em primeiro lugar, se um átomo não possui absolutamente nenhum espaço vazio em seu interior, isso significa que esse átomo é contínuo e, portanto, tem de ser divisível. Segundo Aristóteles, aquilo que é contínuo é, por definição, infinitamente divisível.
Em segundo lugar, Aristóteles sustentou que é impossível haver um número infinito de átomos no mundo. De fato, se houvesse um número infinito de átomos no mundo, eles jamais poderiam coexistir num mesmo instante de tempo pois, afinal, seriam infinitos em número.
Aristóteles entendia que há dois infinitos, ambos potenciais (em potência), jamais infinitos atuais (em ato). Um é o infinito em potencial da adição, o outro é o infinito em potencial da divisão.
Por exemplo, é possível somarmos um número atrás do outro, sem fim. Mas isso seria apenas possível, você não pode realmente (actualmente) fazer isso, pois fazê-lo exigiria uma quantidade infinita de tempo. Similarmente, você pode dividir algo contínuo sem parar. Mas, novamente, isso seria apenas possível.
Assim, Aristóteles conclui afirmando que não há coisas que existam em número infinito pois tais coisas não poderiam coexistir, isto é, existir ao mesmo tempo. Ou o número de coisas que coexistam é definido ou indefinido. Se for infinito, então é indefinido. Mas não há nada que seja ao mesmo tempo atual e indefinido. Portanto, não há infinitos em ato, seja um mundo infinito, seja um espaço infinito, seja um número infinito de átomos.
II – Eternidade
Aristóteles observa que o tempo pode ser infinito porque ele é composto de uma série de momentos que não coexistem. E ele também ensina que o tempo é ilimitado, sendo que o mundo não só não teve um começo como não terá um fim. Isto se verifica da seguinte maneira: o tempo nada mais é do que a medida do movimento, ou seja, assim como os corpos existem na dimensão espacial, os movimentos ocorrem na dimensão temporal. Como os movimentos nunca cessam, segue que o tempo também não cessará. O tempo é eterno porque o movimento é eterno.
Mas por que Aristóteles achava que o movimento é eterno? Afinal, poderíamos até concordar com ele em afirmar que o movimento não terá fim, mas por que haveríamos de dizer que o movimento jamais teve um começo?
A explicação encontra-se na noção de causa e efeito. O movimento daquilo que move foi causado por um outro corpo que, por sua vez, teve de se mover também, e assim sucessivamente. Pense numa bola de bilhar que foi atingida por outra bola. Essa outra bola, por sua vez, teve seu movimento causado pelo taco de bilhar que, por sua vez, teve seu movimento causado pelo braço do jogador, e assim sucessivamente. Não há um primeiro motor nas séries de movedores e coisas movidas. Se não há um primeiro motor, então não há um começo para os movimentos dos corpos do mundo e, portanto, o tempo não teve um começo. Aristóteles atribui o movimento constante das coisas terrestres ao movimento dos corpos celestes.
A esta noção de mundo sem começo e fim Aristóteles chamava de eternidade; todavia Aristóteles também usava esse termo para designar intemporalidade, como quando dizemos que Deus é eterno. Mas, para Aristóteles, a eternidade do mundo é uma coisa e a eternidade de Deus é outra.
III – A imaterialidade da mente
Vimos anteriormente que as coisas do mundo natural são compostas de matéria e forma. Lembre-se que forma não é figura ou formato; por exemplo, as cadeiras do mundo apresentam diversos formatos mas são todas elas cadeiras, ou seja, cada cadeira possui seu formato mas é a forma, não o formato, que faz de todas as cadeiras o mesmo tipo de coisa.
Observa-se então que todos as coisas materiais possuem um aspecto que não é material, ou seja, imaterial. Forma não é matéria. Matéria não é forma.
A forma – o aspecto imaterial – que existe na matéria é chamado de forma material. Mas será que a forma pode existir separadamente da matéria?
Aristóteles ensina que sim.
Quando, por exemplo, comemos uma maçã, nós separamos sua matéria de sua forma e substituímos a forma da maçã pela forma de nosso corpo. Neste caso, não há momento em que a maçã fica sem uma forma. Há apenas uma substituição. No entanto, ao entendermos coisas cognoscíveis, nós separamos a forma da matéria e assimilamos apenas a forma, mantendo-a separada da matéria. Apenas dessa maneira, como forma separada da matéria, somos capazes então de construir idéias a respeito das coisas a fim de entendê-las, como por exemplo, a idéia de maçã.
Fazemos isso porque entendemos as maçãs em geral, não em particular. Nossa idéia de maçã vale para todos os tipos de maçã abarcados por essa idéia, e não apenas esta ou aquela maçã.
Até aqui, entendemos que a mente trabalha com o aspecto imaterial, formal, das coisas. Mas podemos concluir que a própria mente é, em si, imaterial? Não somente podemos como devemos!
Se a mente não fosse imaterial então ela não poderia entender as coisas materiais separando suas formas de suas matérias. Para reter o aspecto imaterial das coisas, a própria mente tem de ser imaterial. Se a mente fosse material, as formas permaneceriam na matéria, e não poderíamos formar posteriormente idéias a partir delas.
Observe que quando vemos e percebemos as coisas, conhecemos esta e aquela coisa em particular. Ver e perceber são funções dos órgãos materiais de nossos corpos, ou seja, olhos e cérebro. Mas quando entendemos as coisas, conhecemos o tipo de coisa em geral que esta coisa individual é. Entender não é função de nenhum órgão material de nossos corpos; é função da mente, que é um elemento imaterial de nossa existência.
IV – Deus
Vimos que Aristóteles atribuía o constante movimento aos corpos celestes. Mas quem os mantêm em constante movimento? Qualquer que seja a resposta, não pode ser um outro corpo em movimento pois esse corpo também precisaria ter seu movimento explicado pelo efeito de um outro corpo, e assim sucessivamente.
Assim, deve haver um primeiro motor que não se move mas que mova o mundo de maneira atrativa, e não propulsiva. Diferentemente do taco de bilhar que faz mover a bola por causa eficiente, o primeiro motor deve mover o mundo por causa final.
Se este primeiro motor move o mundo sem se mover, significa que ele tem de ser imutável. E se ele tem de ser imutável, significa que ele tem de ser puramente imaterial, ou seja, pura forma, puro ato. E se ele tem de ser puro ato, significa que ele tem de ser perfeito.
Este ser perfeito Aristóteles chamou de Deus. Deus, ou o Primeiro Motor, serve apenas para explicar a eternidade do universo e seu movimento constante. Para Aristóteles, Deus não é o criador do mundo porque o tempo, sendo eterno, dispensa uma explicação para criação do mundo.