O conceito de analogia entis não
sofre ataques somente do Pe. John Romanides e seus seguidores, como o
Metropolita Hieroteo de Nafpaktos, no âmbito cristão ortodoxo, mas também de
autores católicos romanos influenciados pelas críticas de Karl Barth, além de
Hans Küng e outros. Não apenas isso, mas pensadores consagrados da teologia do
processo (ou “teologia neoclássica”) e pensadores ligados à revista Communio,
embora não rejeitem a analogia entis, a “flexibilizam”, digamos.
A tarefa de Steven Long é precisamente
resgatar o conceito de analogia entis e dar-lhe a devida importância e
centralidade metafísica. A nós será útil para que possamos conhecer o
entendimento clássico desse conceito segundo Tomás de Aquino e seus seguidores
mais próximos.
A analogia entis é simplesmente o princípio
doutrinário central da metafísica. Isso é assim por causa da analogicidade
intrínseca do ser dividido em ato e potência. Tal princípio, veremos, é o fundamento
da doutrina da participação e da prova da existência de Deus.
Falar de analogia entis é falar,
ora, de analogia. E Long, assim como muitos tomistas, concluem que Tomás de
Aquino classificava a analogia entis como uma analogia de
proporcionalidade própria. O que é isso? Já o vimos na breve introdução à obrade Tomás de Aquino, de João Ameal,
mas esse classe de analogia é como aquela que diz que a luz está para o olho
assim como a verdade está para a mente. Observe que há aí uma semelhança nas
diversas rationes do ato. Essa semelhança – a qual poderíamos chamar,
por exemplo, de “iluminação” – não é um objeto unívoco (ou seja, não é
igual a ambas as comparações), mas um objeto análogo (proporcional a
ambas as comparações). Esta analogia é precisamente a maneira como apreendemos
a divisão do ser em ato e potência, ou seja, a semelhança das diversas rationes
do ato. Então, por exemplo, assim como o sapo está para seu ato de ser, assim
também o anjo está para seu ato de ser; mais ainda, o andar potencialmente está
para o andar atualmente, assim como assobiar potencialmente está para assobiar
atualmente.
A analogia entis não é, portanto,
analogia de atribuição nem analogia de proporção. Não ser analogia de proporção
é óbvio: não há estritamente uma “proporção” entre criatura e Criador. Isso
está claro. Mas quanto à analogia de atribuição (aquela que diz, por exemplo,
que uma comida é “saudável”, sendo que na verdade essa comida é uma causa da
saúde do corpo, não podendo ela mesma ser “saudável”), a coisa é diferente: há,
sim, uma analogia de atribuição entre o efeito criado e sua causa divina, pois
é precisamente desta forma que demonstramos a verdade da proposição de que Deus
existe (veja-se, por exemplo, algumas das demonstrações apresentadas por EdwardFeser).
Mas atenção: antes de lançar mão da analogia de atribuição para provar a
existência de Deus, de antemão forçosamente supõe-se que não atribuímos efeitos
reais a seres inexistentes. Óbvio, não? Ora, se é óbvio, então é óbvio que a analogia
entis é anterior à analogia de atribuição, ou seja, é sua condição
necessária. Isso é importante: Deus não é essencialmente causa de
Edward; Deus me transcende infinitamente, portanto não há uma relação
determinada entre Ele e eu: é forçoso, antes de estabelecer qualquer analogia
de atribuição entre Deus e eu, pressupor (ou “traduzir retroativamente”, como
diz Long) a analogia de proporcionalidade própria de que Edward está para o que
lhe é próprio assim como Deus está para o que Lhe é próprio. A analogia
entis é a semelhança entre as diversas rationes do ato, e é ela a
pré-condição para a resolução causal a Deus.
A resposta ao monismo de Parmênides
Mas se a analogia entis é um
princípio central da metafísica, também o é o princípio da não-contradição. Afinal,
a distinção entre ser e não-ser não é algo meramente “conceitual”, mas real.
Sim, pois assim como o som é o primeiro “audível”, o ser é o primeiro
inteligível. A realidade do ser, descoberta pelo pré-socrático Parmênides (já
vimos em Frederick Wilhelmsen como Platão o equilibrou com Heráclito, caso você
queira revisar a contenda),
no entanto, carrega um problema: se fora do ser só há o não-ser, então como
explicar a mudança? A mudança não pode vir do não-ser porque, bem, o não-ser
não é. Por isso a mudança parece algo irreconciliável com o princípio da
não-contradição. Platão, como vimos, concentra a unidade do ser na forma, como
que hipostatizando a forma. O problema disso é que, como apontará Aristóteles,
percebemos claramente que a forma também está nas coisas sensíveis, assim como
o monismo de Parmênides também é inaceitável porque percebemos claramente a
mudança, o “muito” em contraposição ao um, o limite.
E é aqui que entra um ponto-chave na
metafísica: a descoberta de Aristóteles da divisão do ser entre ato e potência.
Há no ser algo que não é um não-ser, mas uma capacidade real. É esta
descoberta que convincentemente explicará o movimento, a mudança.
“Em suma, ato e potência são cognoscíveis
apenas de maneira indutiva, e se há alguém que não seja capaz de percebê-los
inteligivelmente em toda sua variedade analógico, não há nada que se possa
fazer por ele. [...] A potência para rir está para o ato de rir assim como a
potência para pensar está para o ato de pensar, ou assim como a potência para
cozinhar está para o ato de cozinhar; mas rir não é pensar, nem pensar é cozinhar.
Há uma semelhança de rationes diversas de ato e potência [eis a raiz
da analogia entis].”
Note que a analogia entis é tão
fundamental, não nuclear, que é ela que torna possível a distinção real entre
essência e existência e mesmo o raciocínio causal. Em particular, foi a
descoberta da potentia que permite a reconciliação do princípio da
não-contradição com o muito, o múltiplo, a mudança. É a potência, não como mera
“possibilidade”, muito menos como “não-ser”, mas um princípio que se funda na
atualidade, embora realmente distinta dela, que permite o muito, o múltiplo, a
mudança. A analogia entis é o princípio por excelência da metafísica.
Não é a imaterialidade da alma, não é nem mesmo a existência de Deus.
A metafísica é o estudo do ente enquanto
ente. Certo, mas o que é o ente senão aquele que recebe o actus essendi,
o ato de ser, mediante sua forma? O ser é aquilo que na substância é suscetível
à adição. E essa adição só é possível porque o ser é divisível em ato e
potência. Em particular, é a potência que limita a participação no ser e é ela,
portanto, que estabelece o grau de remoção do ser de sua causa primeira. Os
diversos graus de ser que Deus ordena são diversos em função da relação e
proporção entre ato e potência. A atualização da capacidade (potência) para ser
é limitada por essa mesma capacidade (potência).
Somente Deus está livre de potentia,
e eis porque a perfeição divina excede toda proporção em relação às coisas
criadas. E eis uma das belezas da analogia entis: ela permite que
façamos afirmações analógicas acerca de Deus e, ao mesmo tempo, não coloca Deus
em uma relação determinada em relação à criatura, enquanto, causalmente, a
criatura sim está realmente relacionada a Deus. Tudo o que se move da potência
ao ato depende dAquele que é Ato Puro.
Algumas conclusões
Tomás nega que uma perfeição finita enquanto tal possa ter uma proporção diretamente a Deus. A razão é que Deus transcende a proporção de todo ser finito, e vis-à-vis qualquer espécie e em termos de sua perfeição específica é uma causa equívoca dela, porque Deus não está dentro de nenhum gênero ou espécie, e transcende todos os gêneros. Se dissermos que há uma proporção de perfeição criatural para Deus, parece que estamos dizendo que entre a perfeição criada e Deus pode ser encontrada uma distância determinada, como por exemplo encontramos na analogia da proporção pela qual o número dois é análogo ao um e está relacionado a ele como seu dobro. Mas a perfeição divina excede indefinidamente tal relação determinada com uma perfeição finita criada. Somente na medida em que "não há relação definida nas coisas que têm algo em comum analogamente" é o caso de que "não há razão pela qual algum nome não possa ser predicado analogamente de Deus e da criatura desta maneira" — isto é, quando estamos falando da semelhança de razões diversas que não se enquadram em uma ordem unívoca determinada.
Notamos, a título de resumo, que
(1) a analogia entis é o fundamento mesmo
da metafísica, inclusive das evidências da existência de Deus, da imortalidade
da alma e da distinção real entre ser e essência,
(2) é uma analogia de atribuição intrínseca,
mas, antes ainda, uma analogia de proporcionalidade própria,
(3) a analogia entis relaciona os
atributos da criatura a Deus, mas não vice-versa,
(4) o “motor” da analogia entis está
na semelhança /das diversas rationes em ato, embora tais diversidades
estejam radicadas na potência.
Fonte: Steven Long, Analogia entis: on the analogy of being, metaphysics, and the act of faith, University of Notre Dame Press, Notre Dame, IN, EUA, 2011.