30 de julho de 2024

São Silvano sobre a imaginação e a vida intelectual


[As 4 formas de imaginação e os perigos da vida intelectual].

A imaginação se manifesta nas mais variadas formas. Primeiro de tudo, o asceta tem que lidar com aquelas formas de imaginação que estão conectadas com as paixões mais grosseiras. Ele sabe que cada paixão tem uma imagem correspondente; e geralmente adquire força no homem somente quando a imagem é aceita e ganha a atenção da mente. Se a mente rejeita a imagem, a paixão em si não pode se desenvolver e irá expirar. Por exemplo, supondo que algum desejo da carne — um desejo fisiologicamente normal, talvez — venha ao asceta, ele defenderá sua mente da imagem de fora, sugerida pela paixão. (A palavra mente, como usada aqui, denota não razão — deliberação lógica — mas algo que talvez seja melhor definido pela expressão 'atenção interior'.) Se a mente, entendida neste sentido, é preservada de imagens apaixonadas a castidade completa é possível durante toda a vida, mesmo quando o corpo é forte. Isso é provado pela experiência de séculos, e temos um exemplo adicional no staretz. Por outro lado, se a mente aceita e desfruta da imagem apaixonada, mesmo um corpo frágil, doente ou exausto será tiranizado.

O mesmo acontece com outra paixão — o ódio. Ela também tem uma imagem sui generis. Enquanto a mente se abstém do comércio com a imagem, a paixão não pode evoluir. Mas se a mente se une à imagem o ódio se tornará cada vez mais violento, até mesmo se tornando uma obsessão.

Uma segunda forma de imaginação contra a qual o asceta tem que lutar é o devaneio. Quando ele se entrega ao devaneio, o homem abandona a ordem real das coisas no mundo para ir viver no domínio da fantasia. Como a imaginação não pode criar nada do nada, as ficções engendradas por ela devem conter elementos emprestados do mundo real, assim como os sonhos, e, portanto, não são totalmente inatingíveis: um homem pobre pode imaginar que é um imperador, um profeta, um grande cientista, e a história conhece casos de homens pobres dos estratos mais baixos da sociedade que ascenderam a esses altos lugares. É essa forma da imaginação que opera na oração "imaginativa": por um esforço de sua imaginação, o iniciante, inexperiente em combate espiritual, cria em sua mente imagens visuais inspiradas pela vida de Cristo ou algum outro assunto sagrado. Ele não encerra sua mente em seu coração, por uma questão de vigilância interior, mas fixando sua atenção nas imagens visuais que ele mesmo criou, mas que ele pensa serem de origem divina, trabalha a si mesmo em um estado de excitação emocional e até mesmo êxtase mórbido (patológico).

Vemos um terceiro aspecto do poder da imaginação quando um homem usa suas faculdades de memória e imaginação para pensar na solução de algum problema técnico; e quando ele tiver feito isso sua mente buscará meios para a realização prática de sua ideia. Esta atividade da razão em associação com a imaginação desempenha um papel vital na cultura humana e é essencial para a economia da vida. Mas o batalhador espiritual, cuja preocupação é atingir a oração pura, renuncia a toda aquisição, mesmo intelectual, para que esse tipo de imaginação também não o impeça de devotar seu primeiro pensamento e suas melhores energias a Deus - isto é, concentrar todo seu ser em Deus.

Finalmente, considere o jogo da imaginação quando o intelecto tenta penetrar o mistério do Ser Divino. O asceta, dedicando-se ao silêncio interior ativo e à oração pura, combate resolutamente esse impulso "criativo" dentro de si porque vê nele um processus contrário à verdadeira ordem do ser, com o homem "criando" Deus à sua própria imagem e semelhança. O ponto de partida do asceta que se esforça pela oração pura é a crença de que Deus nos criou, não que nós criamos Deus; e então ele se volta para Ele em oração sem imagem, despojado de toda criatividade teológica e filosófica. Se a graça desce sobre ele e lhe é concedido saborear o advento de Deus, então esse conhecimento supraconceitual de Deus será posteriormente traduzido neste ou naquele conceito, não, no entanto, da própria invenção do asceta ou profeta, mas recebido por ele do alto.

[...]

O mundo da vontade e imaginação humanas é o mundo das miragens. É comum ao homem e aos anjos caídos, e a imaginação é, portanto, frequentemente um condutor de energia demoníaca.

Tanto as imagens demoníacas quanto aquelas conjuradas pelo homem podem adquirir força considerável, não porque sejam reais no sentido último da palavra, como a Força Divina que cria do nada, mas na medida em que a vontade humana se curva diante delas. É somente quando o homem cede que sua vontade é moldada por essas imagens. Mas o arrependimento liberta do domínio da paixão e da imaginação, e o cristão assim libertado pelo Salvador ri do poder das imagens.

O poder do mal cósmico sobre o homem é colossal, e tal que nenhum filho de Adão pode superar sem Cristo ou fora de Cristo. Ele é o Salvador, no sentido literal e único da palavra. Esta é a crença do asceta ortodoxo, e ele, portanto, busca a oração da quietude interior pela invocação incessante do Nome de Jesus Cristo, razão pela qual esta oração é chamada de Oração de Jesus.

As muitas manifestações da imaginação que desfiguram a vida espiritual, o Staretz reduziu às quatro formas indicadas acima. Destas, a última, onde a imaginação é entregue à atividade criativa no domínio teológico e filosófico, é frequentemente tão sutil em caráter que pode até parecer ser vida em Deus.

O teólogo que é um intelectualista constrói seu sistema como um arquiteto constrói um palácio. Conceitos empíricos e metafísicos são os materiais que ele usa, e ele está mais preocupado com a magnificência e simetria lógica de seu edifício ideal do que com o fato de que ele deve se conformar à ordem real das coisas.

Por mais estranho que pareça, muitos grandes homens foram incapazes de resistir a essa tentação, na verdade, ingênua, cuja causa oculta é o orgulho. A pessoa se apega aos frutos da inteligência como uma mãe ao seu filho. O intelectual ama sua criação como a si mesmo, identifica-se com ela, fecha-se com ela. Quando isso acontece, nenhuma intervenção humana pode ajudá-lo: se ele não renunciar ao que acredita ser riquezas, nunca alcançará a oração pura e a verdadeira contemplação. Aqueles que buscam a forma mais elevada de oração — a união da mente com o coração — sabem o quão difícil é essa renúncia.

Muitos teólogos do tipo filosófico, permanecendo essencialmente racionalistas, elevam-se a esferas suprarracionais ou, melhor, supralógicas do pensamento, mas essas esferas ainda não são o mundo Divino: elas estão dentro dos limites da natureza criada pelo homem e, como tal, estão ao alcance do entendimento na ordem natural das coisas. Essas visões mentais não podem, é verdade, ser circunscritas dentro da estrutura da lógica formal, uma vez que vão além do domínio do raciocínio metalógico e antinômico, mas, apesar de tudo, ainda são o resultado da atividade da razão.

A superação do pensamento discursivo é prova de alta cultura intelectual, mas ainda não é 'fé verdadeira' e visão divina real. Pessoas nesta categoria, que frequentemente possuem capacidades extraordinárias para reflexão racional, chegam a perceber que as leis do pensamento humano são de validade limitada e que é impossível cercar o universo inteiro dentro dos aros de aço dos silogismos lógicos. Isso os capacita a chegar a uma contemplação supramental, mas o que eles então contemplam ainda é meramente beleza criada à imagem de Deus. Uma vez que aqueles que entram pela primeira vez nesta esfera do 'silêncio da mente' experimentam um certo temor místico, eles confundem sua contemplação com comunhão mística com o Divino. A mente, é verdade, aqui ultrapassa as fronteiras do tempo e do espaço, e é isso que lhe dá uma sensação de compreensão da sabedoria eterna. Isso é o mais longe que a razão humana pode ir ao longo do caminho do desenvolvimento natural. Nesses limites onde 'o dia e a noite chegam ao fim' o homem contempla uma luz, que é, no entanto, não a Verdadeira Luz na qual não há escuridão, mas a luz natural peculiar à mente do homem criado à imagem de Deus.

Esta luz mental, que supera todas as outras luzes do conhecimento empírico, ainda pode muito bem ser chamada de escuridão, pois é a escuridão do despojamento e Deus não está nela. Fomos avisados ​​pelo Senhor: 'Toma cuidado, portanto, para que a luz que há em ti não seja escuridão.' A primeira catástrofe cósmica pré-histórica a queda de Lúcifer, filho da manhã, que se tornou o príncipe das trevas foi devido à sua contemplação apaixonada de sua própria beleza, que terminou em sua autodeificação.

[...]

Para afirmar sua superioridade, a mente racional aponta para sua realização, para sua criatividade, produzindo muitas provas convincentes que pretendem mostrar que na experiência secular da história o estabelecimento ou afirmação da verdade cai inteiramente em sua província. O poder intelectual é, de fato, uma das energias, uma das manifestações da personalidade humana. Mas quando esse poder, funcionando de acordo com as leis impessoais da lógica, assume prioridade na vida espiritual do homem, ele inevitavelmente começa a lutar contra sua fonte — o princípio hipostático. Então, tendo superado esse princípio dentro dos limites da experiência terrena, a razão se vê como transpessoal e universal, e transfere sua Ideia para o plano do ser cósmico, para buscar ali uma espécie de Primeiro Princípio suprapessoal.

Em sua arrogância, a razão se imagina ascendendo às alturas mais altas, descendo, como acredita, às profundezas mais baixas. A razão aspira abraçar a integralidade do ser, para em todos os lugares transmitir sua própria definição. Não conseguindo atingir os confins do ser, a razão atribui a si mesma essa infinitude e acaba identificando-se com o princípio divino.

* * *

[A essência está para o fato assim como a energia está para o ato]

O Ser Divino, absolutamente realizado, absolutamente atualizado, exclui a presença em Si de potencialidades não desenvolvidas e, como tal, pode ser definido como Ato Puro.

O Ser Divino, como Auto-Ser, não tendo causa fora de Si, todo-perfeito desde o princípio, é para o ser criado dado e, como tal, pode ser definido como Fato Puro.

Como Ato (Energia), o Ser Divino é comunicável à criatura racional em toda a Sua plenitude e infinidade. Como Fato (Essência), é absolutamente transcendental e incomunicável à criatura, e permanece um Mistério, para sempre inacessível.

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Em sua opinião, está chegando o dia em que muitos homens eruditos viverão no mundo e ao mesmo tempo levarão uma vida monástica. Ele achava que as circunstâncias estavam em geral se tornando desfavoráveis para a forma de vida monástica que existia nos tempos antigos, mas que a vocação e o anseio pelo monasticismo sempre existiriam.

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O monge prefere isso [a oração pura] à teologia científica porque, embora seja possível, por meio da contemplação abstrata e filosófica, perceber que nossas concepções humanas não são aplicáveis ​​a Deus e, assim, chegar ao estado em que a mente começa a ficar "silenciosa", esse silêncio da mente não é, de forma alguma, sempre a verdadeira contemplação de Deus, embora se aproxime dos limites da verdadeira contemplação.

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A oração 'face a face' é o prelúdio vital para a descoberta do homem em si mesmo da 'imagem de Deus', então vamos considerar este lado da nossa vida em Deus.

O estágio final da Revelação é a revelação de um Deus Pessoal — um Deus Hipostático. (Prefiro a palavra grega para evitar os detalhes técnicos dos termos individual ou pessoal.) O Deus Hipostático só pode ser conhecido por meio da revelação — por Deus aparecendo ao homem em um ato de contato direto, 'Face a face'. É indispensável que Deus primeiro se manifeste a nós.

Quando Deus como Hipóstase se revela ao homem neste contato direto, mesmo que ainda seja 'como em um espelho', o homem se tornará ciente de sua própria hipóstase, na qual a 'semelhança de Deus' é refletida antes de tudo. O homem, 'sendo carne e vivendo no mundo', experimenta principalmente sua própria individualidade limitada, e esta nova consciência expandida é como um nascimento do Alto. 'A menos que o homem nasça de novo, ele não pode ver o reino de Deus.' Após tal nascimento, a oração assume um caráter diferente, ultrapassando os limites do tempo e da matéria, e o homem se sente arrebatado na eternidade de Deus.

A revelação do Deus Hipostático leva à compreensão de que a hipóstase é a forma do Ser Absoluto; que esta dimensão — hipóstase — não é limitativa, mas Aquele que vive de fato: o EU SOU (cf. Êxodo 3:14 e João 8:58). Fora desta dimensão nada existe nem pode existir. Não há 'essência' além da Hipóstase no Ser Divino. E assim a oração do cristão é dirigida ao Deus Hipostático, 'face a Face': não é uma busca ou um retorno a uma Essência Supra-Pessoal.

Este conhecimento deixa claro, portanto, que somos hipóstases criadas, dotadas de liberdade para uma autodeterminação que pode ser positiva em relação ao Protótipo, ou negativa.

Uma hipóstase livre, não pré-determinada, só pode ser criada como pura potencialidade, destinada a ser atualizada posteriormente. Então, ainda não somos inteiramente hipóstases: estamos passando pelo processo mais ou menos longo de nos tornarmos — de converter uma forma de ser 'atomizada' em uma forma hipostática. O conceito de pessoa-hipóstase não deve ser confundido com o conceito de indivíduo — em grego atomo, o resultado da queda do homem). Eles são, na verdade, dois polos do ser humano. Um expressa o último grau de divisão, o outro indica a 'imagem de Deus' na qual Adão foi feito, em cujas entranhas toda a humanidade estava potencialmente encerrada. Este é o padrão manifestado a nós pelo Verbo feito carne. Em nossa apreensão de Deus, portanto, não transferimos nossa experiência da limitação do indivíduo ao Ser Divino, para depois negar nEle o caráter hipostático e, consequentemente, lançar-nos em busca de um Absoluto Supra-Pessoal. O impulso do nosso espírito é em direção à oração face a Face — oração, isto é, da hipóstase criada à Hipóstase de Deus. É essencial que o princípio hipostático seja desdobrado em nós. Quais são os caminhos e meios para esse fim?

Chamados do não-ser, todos nós estamos presos pelos grilhões do tempo relativo e do espaço relativo. O espírito do homem, a imagem do Deus absoluto, está confinado dentro da estrutura deste mundo material. O homem se sente preso, como um prisioneiro condenado. Seu sofrimento se aproxima do desespero, do qual brota a oração de uma tensão singular, oração 'contra a esperança acreditando na esperança'. Pode ser que todos nós, pessoas do nosso tempo, precisemos dessa experiência de desespero durante o curso de nosso nascimento para a eternidade.

Chegando ao mundo, a criança aprende primeiro com sua mãe e seu pai, depois com amigos e professores. Crescido até o estado de homem, ele se apodera avidamente do conhecimento de todo tipo até que finalmente ele pode se convencer de que o conhecimento 'científico' não apenas falha em levá-lo além das dimensões relativas de tempo e espaço, mas, pior, restringe sua consciência dentro do aspecto determinista da existência.

A recusa do nosso espírito em aceitar o absurdo da morte como um retorno ao nada engendra uma oração fervorosa e uma busca diligente nas Escrituras Sagradas pelo conhecimento do Eterno. Nenhuma escola, no entanto — e isso inclui escolas teológicas — nenhum livro, mesmo livros sagrados, pode, sem o máximo esforço ascético de todo o nosso ser em pura oração, nos fazer sentir que Deus nos ouviu e nos aceitou em Sua eternidade.

Esta oração nascida do "desespero" é, sem dúvida, um presente do Alto. Ela nos coloca na fronteira entre o tempo e a eternidade. O tempo é, por assim dizer, esquecido, em algum lugar atrás de nós, e o olhar do nosso espírito se fixa na eternidade, ainda fora de alcance, ainda não em nossa posse. Esta transposição do espírito em oração para os limites finais do tempo explica muito o que nas Escrituras até agora pareceu paradoxal — como, por exemplo, "Um dia é para o Senhor como mil anos, e mil anos como um dia"; 'Vós fostes ... redimidos ... pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula: O qual, na verdade, foi predestinado antes da fundação do mundo, mas foi manifesto nestes últimos tempos': 'Ora, todas estas coisas ... foram escritas para nossa advertência, sobre quem os confins do mundo vêm: 'Ele nos escolheu antes da fundação do mundo'; e, por último, 'Eu vos escrevo... porque conheceis aquele que é desde o princípio'.

O que significam as palavras 'estes últimos tempos' ou 'o fim do mundo'? O que devemos entender na Liturgia de São João Crisóstomo por 'Tu nos concedeste Teu reino vindouro'; ou 'Vimos a figura de Tua Ressurreição, fomos preenchidos com Tua vida imortal' na Liturgia de São Basílio, o Grande?

Por causa de seu contato imediato com a Hipóstase Divina do Logos, os Apóstolos, enquanto ainda aqui na terra, em espírito também peregrinaram na Eternidade. Para eles, como para todos os outros que experimentam um estado semelhante, o Tempo-Aeon chega ao fim. (Sua percepção do tempo diferia daquela de Newton e Einstein ou dos filósofos e gnósticos de vários moldes.) Para eles, o tempo se torna uma espécie de "espaço" que admite mudança de posição, "onde" um primeiro encontro com o Criador é possível. Lemos que foi dado a alguns ver "o reino de Deus vir com poder" antes de "provarem a morte". Essas pessoas têm uma percepção particular do mundo.

Os caminhos do Senhor são assim: para começar, Ele nos busca, revela Sua "Face" para nós, nos atrai para Sua eternidade. Então Ele pode nos retornar à estrutura do tempo. Não parece haver sentido neste retorno além de nos confiar a manifestar em nossa vida o conhecimento que nos foi dado do EU SOU, e dar testemunho de Seu amor por nós. Nós mesmos, no entanto, sentimos nosso retorno como uma "ausência do Senhor", como uma retirada da graça, e nos cansamos sob o fardo do corpo mortal. O anseio de restaurar a plenitude perdida da união com Deus impele a pessoa ao esforço espiritual, que — um ato humano, agora — se torna uma ciência ascética, uma arte, uma cultura. Em nossa era, essa cultura está praticamente abandonada ou esquecida.

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A luz da palavra divina traz o pecado à vista.

O que o cristão entende por pecado?

O pecado é principalmente um fenômeno metafísico cujas raízes estão nas profundezas místicas da natureza espiritual do homem. A essência do pecado não consiste na violação de padrões éticos, mas em um afastamento da vida eterna divina para a qual o homem foi feito e para a qual, por sua própria natureza, ele é chamado. O pecado é cometido antes de tudo nas profundezas secretas do espírito humano, mas suas consequências distorcem todo o indivíduo. O pecado reflete na condição psicológica e física do homem, em sua aparência externa, em seu destino pessoal. O pecado, inevitavelmente, ultrapassará os limites da própria vida do pecador para sobrecarregar toda a humanidade e, assim, afetar o destino do mundo inteiro. O pecado de nosso antepassado Adão não foi o único pecado de significado cósmico. Todo pecado, secreto ou manifesto, cometido por cada um de nós, tem uma relação com o resto do universo.

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Através do amor de Cristo todos os homens são parte inseparável de nossa própria existência individual e eterna. O staretz [São Silvano] começou a entender que o mandamento “ama ao próximo como a ti mesmo” é mais do que um imperativo ético. Na palavra como ele não vislumbrou uma indicação de grau de amor, mas uma indicação de comunidade ontológica de ser – o mandamento de Cristo incorpora o homem no todo do ato divino da criação do mundo. [...] O Filho do homem tomou para Si toda a humanidade. Ele aceitou o “Adão integral” e sofreu por ele.

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Suponha que por alguma razão a Igreja fosse privada de todos os seus livros litúrgicos, do Velho e Novo Testamentos, das obras dos Santos Padres — o que aconteceria? A Santa Tradição restauraria as Escrituras, não palavra por palavra, talvez — a forma verbal pode ser diferente — mas, em essência, as novas Escrituras seriam a expressão daquela mesma 'fé outrora entregue aos santos'. Elas seriam a expressão do único Espírito Santo continuamente ativo na Igreja, seu fundador e sua própria substância.

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[Adão é o homem ontológico. Ele é imperfeito, limitado, e, portanto, peca. Todo homem participa dessa imperfeição. Todo homem participa da maldade. O filho do Espírito Santo de Cristo se vê participante dessa maldade. O homem que se autojustifica rebaixa a condição humana a um fenômeno mundano. Ao crer que se eleva em relação ao outro, rebaixa-se inconscientemente.]

Fonte: São Sofrônio Sakharov, The monk of Mount Athos, St Vladimir’s Seminary Press, Yonkers, NY, EUA, 1973.


20 de julho de 2024

A verdade


Não se faz beber um asno que não tem sede

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O indiferentismo, em face da verdade, é um erro contra a natureza. Negar a necessidade da verdade é negar a própria inteligência, é rebaixar o homem ao plano do animal. Deixaremos, de bom grado, aos defensores dessa tese o cuidado de destruir o homem e povoar os zoológicos.

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Longe de ser uma marca de orgulho, a posse da verdade é a marca de certa humildade. É o sinal de que a inteligência soube deixar-se gravar e ser informada. [...] A inteligência não aborda a verdade como um superior.  Aproxima-se como um mendigo, um inferior. A inteligência está a serviço da verdade, e não o inverso. Serviço afetuoso, por certo, e entusiasmado, porém respeitoso.

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O subjetivismo: "A doutrina realista da verdade é sufocante. O homem nela não tem a parte criativa e extensora que lhe é devida. A verdade é uma construção".

O pai dessa maneira de ver é Kant. Lê-se no prefácio da 2a edição da Crítica da Razão Pura: "Admitiu-se, até aqui, que todos os nossos conhecimentos deveriam regular- se pelos objetos; mas, nessa hipótese, todos os nossos esforços para estabelecer, a respeito desses objetos, qualquer julgamento a priori pelo nosso conhecimento não conduziria a nada. Que se pesquise, então, uma vez, se não seríamos mais felizes, nos problemas metafísicos, supondo-se que os objetos se regulam pelo nosso conhecimento".

[...]

Conhecer uma coisa não é inventá-la, é descobri-la tal qual é.

A diferença profunda entre o subjetivismo e o realismo pode ser assim resumida: o realista é um livro, o livro do real. O subjetivista escreveu-o.

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Para nos estimular no trabalho, leiamos o comentário de Santo Tomás sobre as palavras do Senhor: "Eu sou a Verdade" ( Jo. 14, 16). Introduzindo-nos no próprio coração de Deus, que dita o seu Verbo eternamente, ele nos indica o cume da verdade, para o qual devem tender todos os nossos esforços. Deixa-nos, assim, imaginar como uma sã filosofia pode servir à fé tornando-a mais penetrante. Enfim, mostra-nos a disciplina a que deverá submeter-se aquele que queira atingir a verdade total: Aderir ao Verbo, entrar na escola de Jesus Verdade. Aos homens que têm sede de verdade, diz Jesus: "Eu sou a Verdade". A verdade lhe vem por ele mesmo, pelo fato de que ele próprio é o Verbo. A verdade não é nada mais do que a adequação da coisa com a inteligência, o que se realiza quando a inteligência concebe a coisa tal qual é. A verdade da nossa inteligência nos vem, pois, do nosso "verbo", que é a sua concepção (o "verbo" interior é o conceito que nasce na inteligência quando ela conhece. É a presença imaterial, como a proclamação, em nós, da coisa conhecida que nos torna a inteligência semelhante à coisa). Entretanto, mesmo que o nosso verbo seja verdadeiro, ele não é a própria verdade, dado que não é verdadeiro por si mesmo, mas pelo fato de que é adequado à coisa conhecida. Para a inteligência divina, a verdade volta ao Verbo de Deus. Mas o Verbo de Deus é verdadeiro por si mesmo, dado que não é medido pelas coisas, ao passo que, ao contrário, as coisas não são verdadeiras senão na medida em que alcançam certa similitude com o Verbo. E, pois, o Verbo de Deus é a própria Verdade. E, como ninguém pode conhecer a verdade se não adere à verdade, é necessário que quem deseje conhecer a verdade adira ao Verbo.

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É, pois, no contato inicial da inteligência com o ser que é preciso buscar a evidência, a certeza primeira anterior a todo raciocínio. Ela nasce dessa primeira abertura da inteligência à existência das coisas, na qual esta se entrega àquela, e na qual o sujeito vê, pelo fato mesmo de que conhece, sua aptidão de extrair o verdadeiro.

As evidências primeiras resumem-se nesta simples afirmação: "Eu conheço alguma coisa".

Afirmação que pressupõe uma tríplice evidência:

— a existência das coisas que me envolvem;

— a existência desse "eu" que conhece; e

— a aptidão da inteligência para conhecer, sua ordenação natural ao ser. Noutras palavras: a possibilidade e a existência da verdade.

Nesse contato inicial e imediato, o ser entrega à inteligência suas próprias leis. São os primeiros princípios do ser: o princípio de identidade e de não contradição (o ser é; o não ser não é; todo ser é o que é; não se pode ser e não ser ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto); o princípio de causalidade (tudo aquilo que não é por si é por outro); o princípio de finalidade (todo agente age para um fim)...

São evidências que não se podem negar sem interditar todo conhecimento, e daí toda verdade, toda linguagem, toda vida.

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Poder-se-ia aplicar-lhe o que diz o Salmo 35, a respeito do ímpio: Noluit intelligere ut bene ageret (v. 2): Ele não quer refletir para agir bem. Não quer obedecer a uma regra externa. Aceita desconhecer a verdade. Aceita a eventualidade de estar em erro de preferência a curvar-se.

Essa mentalidade nos convida, ao contrário, a uma grande lealdade em face da verdade. Já que a entrevimos, tomemo-la como ao sol de nossa existência. Em face de tal ou qual vício, de tal ou qual hábito maléfico, de tal ou qual conivência com o mal, não fechemos os olhos, como quem não viu. Ao contrário, declaremos guerra, em nós, à ilusão, a fim de estabelecer, na nossa vida, o reino da verdade.

Fonte: Jean-Dominique, A verdade, Edições Santo Tomás, Formosa, GO, Brasil, 2023. Trechos selecionados.

19 de julho de 2024

Física-matemática e metafísica


A necessidade da metafísica

Jacques Maritain, mais especificamente sua obra The Degrees of Knowledge (que será alvo de estudo nosso em breve), é a influência capital no pensamento do filósofo venezuelano Carlos Casanova. Usando diversos livros de filosofia da ciência como pontos de apoio para tecer seus comentários, torna-se um tanto difícil detectar precisamente seu pensamento acerca dessa disciplina.

De toda forma, o que procura fazer Casanova é superar o entendimento nominalista e mecanicista prevalente na filosofia da ciência, a qual considera falha, e estabelecer bases mais lúcidas e convincentes. A partir de Descartes, as normas ou “leis” que regem a natureza deixam de ser causas formais dos entes, que perdem, portanto, sua natureza. As coisas se reduzem ao que Casanova chama de “monturos” (i.e. montes de esterco) de res extensa. Mas então onde foram parar as leis da natureza? Para Newton, na própria res extensa; para Hume, as leis são hábitos da mente; para Kant, as leis são um acasalamento entre as categorias/formas e nossas experiências. Casanova, com Maritain em punhos, discorda de todos eles.

Veja o caso da nutrição, por exemplo. Na visão nominalista/mecanicista contemporânea, a nutrição não passa de mero intercâmbio de interações químicas (é o que se pode vislumbrar neste artigo, por exemplo). Mas por que ocorre a enteléquia, isto é, por que ocorre a passagem da potência para o ato no caso da nutrição? A resposta não se encontra na própria dinâmica da nutrição. A enteléquia não é uma “força” que se soma às outras “forças” da nutrição, mas ela é precisamente o que dá unidade às partes, é o que faz com que a biologia não seja mera física matemática.

Similarmente, nem mesmo a física se resume à física matemática. Aliás, nem mesmo a matemática se reduz à matemática (!). Sim, porque alguns dos axiomas sobre os quais versa a matemática não podem ser provados por ela mesma. Veja o caso do princípio da não-contradição, por exemplo. É aqui que entra a metafísica. É ela, a metafísica, que detecta e defende os primeiros princípios.

Entes de razão e entes naturais

Maritain, como bom tomista, ordena os entes da seguinte forma:

  • Entes de razão. São os entes que têm existência mental. Maritain os dividem em escalões. O primeiro escalão são os entes de razão que respondem a observações experimentais (medições). O segundo escalão são os entes de razão que são apenas imagens simbólicas (átomos, elétrons, moléculas). O terceiro escalão são os entes de razão incapazes de existir enquanto tais (os tempos de Einstein, os modelos materiais de Kelvin).De maneira geral, são entes de razão os universais, proposições e juízos – aqui pouco importa que respondam a essências reais –, bem como negações, relações, conectores lógicos, quimeras (i.e. fantasias), metáforas etc. Estes entes, embora não sejam “reais”, são exigidos pela inteligência para que possa conhecer a realidade.
  • Entes naturais. São o que chamamos coloquialmente de “coisas”. São os entes que compõem o mundo real.

As teorias da física-matemática, que se encontram nos segundo e terceiro escalões dos entes de razão, são basicamente um conjunto de “mitos verossímeis” que não conhecem a natureza das coisas em si mesmas, mesmo que conheçam algo real. O que Maritain quer dizer, no entanto, é que as teorias físico-matemáticas são uteis, senão indispensáveis em muitos casos, para que entendamos a realidade, mas elas não encerram em si a própria realidade. Por estarem naturalmente distantes da realidade (lembre-se, são entes de segundo e terceiro escalões), é imprescindível que outra disciplina entre em ação para organizar o conhecimento que trazem. Eis o papel da física descritiva (ou “filosofia natural”). Em outras palavras, atribuir realidade a fórmulas algébricas é perder-se em erros. O esquecimento da metafísica é o que torna possível delírios como “viagem no tempo”, “campos de força”, “homúnculos” etc.

Um dos maiores enganos associados às teorias da física-matemática é atribuir-lhes realidade. A mente definitivamente não é um espelho do mundo. Talvez Platão, em sua teoria das ideias, tenha vacilado nesse sentido, mas Aristóteles mostrou claramente a diferença entre aquilo que conhecemos do aquilo pelo que conhecemos. Tenhamos em mente os entes de razão e os entes naturais: os entes de razão são aquilo pelo que (id quo) conhecemos aquilo que (id quod) é real. Já vimos isso inúmeras vezes nos estudos de Mortimer Adler, como, por exemplo, no verbete “ideia” de seu dicionário filosófico. Casanova evidentemente não nega que haja verdade na física, mas ela é muito menos dogmática do que muitos imaginam. A verdade na física se expressa de modo metafórico. E tal verdade está mais presente nas explicações que servem de contexto às formulas algébricas que nas próprias fórmulas algébricas. As fórmulas apenas captam inter-relações quantitativas e, como é óbvio, não as refletem como um espelho.

Por outro lado, negar os universais (conceitos, ideias) é negar que existe ciência, física ou matemática.

A origem das teorias científicas

É verdade que toda ciência se origina da experiência, e ela, em si, não é racional. Mas estas experiências tampouco são irracionais. Elas são, na verdade, intelectuais. A esta altura o leitor já deve estar habituado a diferenciar ‘intelectual” de “racional”. O intelecto é uma das potências superiores da alma (a outra é a vontade), enquanto a racionalidade (ou “raciocínio”, melhor dizendo) é um dos modos de operação do intelecto. Mas o ponto aqui é que a experiência inicial do intelecto, mais especificamente do intelecto agente, é de maneira espontânea extrair o conceito ou ideia do fantasma que lhe é apresentado pela parte sensível da alma. Portanto, a atividade intelectual inicial não é irracional, mas suprarracional. Einstein foi um dos cientistas que admitia o caráter intuitivo dessa experiência:

A suprema tarefa do físico é a busca dessas leis altamente universais [...] desde as quais se pode obter um retrato do mundo por pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza a essas [...] leis. Elas só podem ser alcançadas por intuição, baseadas em algo como um amor [Einfühlung] intelectual dos objetos da experiência.

É claro que uma miríade de fenômenos psicológicos entra em jogo nessa intuição inventiva. Mas a visão que reconhece dentre as várias ideias qual a correta é algo que se explica pelo amor conatural à verdade; ou, como diria Tomás de Aquino, as “sementes da verdade”. Roger Penrose dizia em seu The Emperor’s New Mind (a ser estudado aqui futuramente) que a intelecção não é redutível a sistemas inteligentes porque a inteligência não é algorítmica nem se conforma a regras conscientes (muito menos inconscientes).

E há mais. A invenção não é o único aspecto no qual a intuição intelectual se aplica. Mesmo quando são detectados os axiomas de uma teoria qualquer, seu desenvolvimento demonstrativo também exige a participação da intuição intelectual. Demonstrar uma teoria qualquer não é um processo retilíneo e puramente lógico porque há valores suprarracionais envolvidos na descoberta científica como a capacidade preditiva, a consistência, a ampla aplicabilidade, a simplicidade e a fecundidade para produzir novos resultados. Nada disso é “racional”. Observe que é fantasioso supor que a ciência, seja a física-matemática ou qualquer outra, parta de axiomas bem estabelecidos e daí deduza uma teoria. Pelo contrário, o que ocorre é que um sistema axiomático é produto de reflexões que reforçam o edifício científico existente. Não se trata de “conspiração” ou qualquer coisa do gênero, mas sim de um conjunto de observações empíricas que esperam o surgimento de um gênio que proponha hipóteses que organizem essas observações em uma teoria.

Cumpre-se portanto o velho adágio aristotélico: “Toda doutrina e toda disciplina procedem de um conhecimento prévio”. Esse conhecimento intelectual “bruto”, digamos, é infalível porque inicialmente é feito de todos, ou seja, de compostos. Perceber “homem” é infalível porque se percebe num ato único. Posteriormente, claro, se decomporá esta percepção em elementos simples, e esta passagem do uno ao múltiplo é onde residirão os erros.

A depuração dos erros é possível voltando-se à síntese, ou seja, a uma nova síntese. Eis o processo científico: ele jamais descreverá com precisão a essência dos entes, mas é capaz sim de nos aproximar das causas verdadeiras mediante a transpassagem das fórmulas matemáticas em direção às realidades físicas que essas fórmulas apontam. Eis o papel da física-matemática: uma ponte para a realidade. Não é a realidade, mas uma ponte para ela.

Causalidade como princípio suprarracional

Muitos filósofos, entre os quais se encontra Kant e a maioria dos materialistas/fisicalistas, sustentam que o princípio da causalidade é irracional porque não é dedutivamente explicável pelos métodos científicos. Isso ocorre, segundo Casanova, porque a causalidade é modernamente confundida com determinismo eficiente. Causa é causa eficiente. Como não se detectam causas eficientes pelo método científico então a causa eficiente não existe e, portanto, a causa não existe.

O problema reside na dificuldade moderna em entender que a causa eficiente subordina-se à causa final. É a finalidade que traz inteligibilidade ao mundo (e à ciência, por óbvio), e é ela também que explica adequadamente a mecânica quântica. O fato de haver acaso não significa que haja irracionalidade, pois, a ausência de causa é apenas ausência (ainda) de finalidade. Uma vez que entendemos que a base das ciências são os poderes (aka potências) que constituem a materialidade, postular o acaso não implica que estejamos nos afastando da racionalidade. O acaso não exclui a existência de uma materialidade junto à formalidade das tendências, nem a causalidade per accidens nem o livre arbítrio humano.

Fonte: Carlos Casanova, Física e realidade, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2013.

14 de julho de 2024

O único evento da minha vida


Pombas brancas voam sobre meu lago azul, como anjos brancos sobre o céu azul.  As pombas não seriam brancas nem o lago seria azul, se o grande sol não abrisse os olhos sobre elas.

Ó minha Mãe celestial, abre Teu olho em minha alma, para que eu possa ver o que é o quê - para que eu possa ver quem está habitando em minha alma e que tipo de frutos estão crescendo nela.

Sem o Teu olhar, vagueio desesperadamente pela minha alma como um viajante, na escuridão indistinguível da noite. E o viajante cai e se levanta, e o que encontra ao longo do caminho ele chama de “eventos”.

Tu és o único evento da minha vida, ó lâmpada da minha alma. Quando uma criança corre para os braços da mãe, os eventos não existem para ela. Quando uma noiva corre ao encontro do noivo, ela não vê as flores na campina, nem ouve o estrondo da tempestade, nem sente o cheiro da fragrância dos ciprestes ou sente o humor dos animais selvagens – ela vê apenas  o rosto do seu noivo; ela ouve apenas a música dos lábios dele; ela cheira apenas a alma dele. Quando o amor vai ao encontro do amor, nenhum evento acontece. O tempo e o espaço abrem caminho para o amor.

Andarilhos sem rumo e pessoas sem amor têm eventos e têm história. O amor não tem história e a história não tem amor.

Quando alguém desce ou sobe uma montanha sem saber para onde vai, os eventos lhe são impostos como se fossem o objetivo de sua jornada. Na verdade, os eventos são o objetivo dos que não têm objetivo e a história dos que não têm caminho.

Portanto, os sem objetivo e sem caminho são bloqueados pelos eventos e brigam com os eventos. Mas eu tranqüilamente corro até Ti, tanto subindo quanto descendo a montanha, e eventos desprezíveis furiosamente se afastam dos meus passos.

Se eu fosse uma pedra e estivesse rolando montanha abaixo, não pensaria nas pedras contra as quais estou batendo, mas no abismo no fundo da encosta íngreme.

Se eu fosse um riacho de montanha, não estaria pensando no meu percurso irregular, mas no lago que me esperava.

Verdadeiramente assustador é o abismo daqueles que estão apaixonados pelos eventos que os arrastam para baixo.

Ó Mãe celestial, meu único amor, liberta-me da escravidão dos eventos e faze-me teu escravo.

Ó dia esplendoroso, nasce em minha alma, para que eu possa ver o objetivo do meu tortuoso caminho.

Ó Sol dos sóis, único evento no universo que atrai meu coração, ilumina meu eu interior, para que eu veja quem ousou habitar ali além de Ti - para que eu possa erradicar dele todos os frutos que parecem doces por fora, mas cheiram podre por dentro.

Fonte: São Nicolau Velimirovich, Prayers by the lake, Oração XV

Leia também: Orações às margens do Lago Ohrid

* * *

Embora belíssimo, é inegável que o poema traz elementos gnósticos ligados ao Eterno Feminino. Deve ser lido, portanto, com a devida precaução.

3 de julho de 2024

A causalidade vertical e o colapso do vetor de estado


Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. (1 Coríntios 13:11-12)

O “enigma quântico” que Wolfgang Smith afirma desvendar é o colapso do vetor de estado. Para tanto, Smith parte da ideia de que a manifestação de um objeto é apenas uma parte do que ele plenamente é. A percepção, portanto, é incapaz de “esgotar” o objeto. Se o objeto fosse capaz de manifestar-se plenamente, então não seria um objeto corpóreo, da mesma forma que um círculo sem o traço que o delimita deixaria de ser um círculo. A redução do intelecto e sua intuição (ou “abstração”, como provavelmente diriam os escolásticos) ao raciocínio é um dos vilões da falta de cosmovisão da física matemática moderna. O raciocínio analisa, i.e., dissocia, enquanto o intelecto capta de um só golpe aquilo que o próprio Deus dispôs como já unido. Afinal, não foi o próprio Tomás de Aquino quem disse que o raciocínio é algo defeituoso em nós?

Não é a primeira vez que Smith diferencia o que é corpóreo do que é físico. Já o vimos fazer isso com a proverbial maçã: a maçã corpórea e a maçã molecular. A maçã é o objeto corpóreo X, enquanto a maçã molecular é o objeto físico associado SX. Ambas não são a mesma coisa. Aliás, os dois são tão diferentes a ponto de, a rigor, ninguém nunca jamais ter visto uma maçã molecular pela frente. A maçã molecular depende do ato de presentificação, ou seja, X é a presentificação de SX. Ambos, X e SX, ocupam a mesma região do espaço, isto é, têm como que uma “continuidade geométrica” entre si. Isso é importante salientar porque o que o físico quer, afinal, não é tanto a maçã molecular, mas a apreensão intelectual da maçã. Ele quer, antes de mais nada, por meio de uma série de medidas e leituras contingentes da maçã molecular (SX), entender o que é necessário da maçã corpórea (X). O físico aplica um modelo ao objeto físico para, a partir daí, extrair/medir/ler o que quer que o modelo lhe diga. O modelo mecanicista, que triunfou a partir sobretudo de Newton, foi usado para desvelar praticamente todos os fenômenos físicos: acústica, termodinâmica, óptica, química etc. Mas o surgimento do eletromagnetismo representou uma novidade: por mais que o próprio Maxwell tenha feito uso do velho conceito de “éter”, o modelo então vigente mostrou-se incapaz de explicar os fenômenos eletromagnéticos, e uma estrutura puramente matemática suplantou o mecanicismo newtoniano. No entanto, o emprego de representações ingênuas permanece de certa forma no eletromagnetismo: os vetores são indício disso. No caso da física quântica, o emprego de “partículas”. Tudo isso, defende Smith, deveria ser definitivamente abandonado em favor de uma postura rigorosamente simbolista. As “partículas” são a tentativa pictórica de tampar o fosso ontológico entre os domínios físico e corpóreo.

No caso específico da física quântica, Smith se pergunta se haveria um subconjunto especificável de observáveis, ou seja, se haveria alguns observáveis que poderiam ser medidos e, a partir daí, determinar os valores de todos os demais observáveis. Não é por acaso: os sistemas “macroscópicos” funcionam assim. Por exemplo, se medimos alguns observáveis, digamos, de um carro ou de um edifício, pode-se determinar com segurança o comportamento dos demais observáveis, dentro de um sistema física específico. No entanto, no que tange à teoria quântica, a redução do sistema a seus observáveis é algo que sabemos não ser possível. O caso do elétron é típico: dizemos que o elétron tem tal posição e tal momento, quando na verdade estes atributos clássicos nem mesmo existem. É por isso que dizemos que o elétron ora parece uma partícula, ora uma onda, ora “salta”, quando na verdade seus atributos são logicamente incompatíveis. Mas será que as leis da lógica não valem para o “mundo microscópico”? Sem querer fazer trocadilho, é lógico que valem. O que não vale são as premissas metafísicas adotadas pela física moderna que, além de não se aplicarem à física quântica, tampouco se aplicam à física “mecânica”.

O elétron não tem posição nem momento. O que ele “tem”, tecnicamente falando, é um vetor de estado, ou seja, um valor médio e o desvio padrão em relação ao valor esperado do observável. O vetor de estado não determina medições individuais, mas é uma mera distribuição estatística dos resultados possíveis. Mas o que há de “incerto” nisso? Por acaso é “incerto” o valor esperado ao lançarmos uma moeda, que pode dar cara ou coroa? Ocorre que o estado inicial de um sistema isolado determina os estados futuros desse sistema, mas não seus observáveis. Por um lado, as equações de Schrödinger garantem o determinismo, enquanto o princípio de Heisenberg garante a indeterminação. Sim, é verdade que uma medição num sistema físico causará uma destruição do determinismo e, portanto, o colapso do vetor de estado (quando o vetor se reduz a um único autovetor do observável i.e. uma probabilidade que saltou agora para o valor 1, o que indica certeza, muito embora os demais observáveis permaneçam uma síntese de possibilidades). Mas, enquanto perdura, é um sistema que se comporta de modo determinista. Novamente, sim, o determinismo quântico está longe de ser um determinismo clássico. Mas e daí? O que se perdeu no mundo quântico não foi o determinismo, mas o reducionismo, ou seja, a ideia tola de que o mundo corpóreo (a maçã) é apenas um mundo físico (a maçã molecular). Em outras palavras, os sistemas físicos microscópicos constituem um tipo de potência aristotélica com relação ao mundo real.

Em suma, o vetor de estado é um espectro de possibilidades (potência), que por sua vez colapsa em função da medição (ato). A passagem da potência ao ato é a passagem da potência para o mundo real corpóreo. Portanto – e isto é importantíssimo – para Smith não existe isso de “mundo físico microscópico” e “mundo corpóreo macroscópico”, mas “mundo potencial microscópico” e “mundo atual macroscópico”. Em outras palavras, SX existe como potência e X existe como ato (ou como diria Heisenberg, “coisa ou fato”).

As investigações no campo quântico levantam a suspeita de que há uma espécie de “terceiro substrato ontológico” para além do mundo corpóreo e o mundo físico microscópico. Um nível ontológico que contenha a “totalidade indivisa”, nas palavras de Smith. Veja-se, por exemplo, o teorema do entrelaçamento de Bell, no qual uma observação efetuada no fóton A afeta o fóton B instantaneamente (ora, cadê a “velocidade da luz” de Einstein?). Tais partículas não parecem ser partes que existam separadamente. Smith entende que um objeto físico nada mais é que uma manifestação particular de uma realidade total. Claro, o objeto existe no espaço e no tempo e exibe certa identidade fenomênica. No entanto, em si mesmo ele excede os limites dessa aparente identidade, mergulhado numa potência ainda indiferenciada sobre a qual nada de específico pode ser dito. A predileção de Smith pelo modelo hilemórfico é óbvia.

Há, no entanto, uma adaptação da teoria clássica que procura englobar, ou seja, tornar determinística, a mecânica quântica. Trata-se da teoria de variáveis ocultas, exposta por De Broglie e David Bohm. Será então que a questão do universo ser determinístico ou indeterminístico é meramente de gosto? Smith entende que a questão não deve ser resolvida no âmbito técnico-científico, mas metafísico: não é necessário que ambas as posições sejam mutuamente excludente; a indeterminação é como que “inserida” dentro da determinação, convivendo com ela (lado Yin da moeda).

No entanto, o hilomorfismo em si, ou seja, apenas a forma e a matéria, não podem explicar tudo. Há ainda duas outras causas, a final e a eficiente, que devem ser levadas em conta. Não sem surpresa, Smith repete o velho artifício de aglutinar as quatro causas em causa material e formal (vimos tal expediente em Émile Boutroux, por exemplo), mas neste caso ele mantém a causa eficiente (como também o fazem os tomistas, que ensinam repetidas vezes que é necessário um agente em ato para provocar em um ente a passagem da potência ao ato), aludindo ao nome de natura naturans (o “naturante”, digamos) em contraste ao natura naturata (o “naturado”, digamos). O naturado, portanto, pressupõe o naturante; em outras palavras, o natural pressupõe o sobrenatural (o “doador de formas”). Nota-se aqui uma clara diferença entre a descontinuidade mecânica clássica e a descontinuidade quântica: na mecânica clássica, a descontinuidade (por exemplo, a consumação de um resultado no lançamento de um dado com probabilidades anteriormente calculadas) dá-se no tempo e, em verdade, não é propriamente uma descontinuidade; na mecânica quântica, a descontinuidade (por exemplo, no colapso do vetor de estado uma vez que se faça a medição de um observável) dá-se instantaneamente, e eis que aqui há uma descontinuidade real autêntica.

É no nível quântico que observamos uma ordem de causalidade diferente da causalidade temporal que verificamos em objetos compostos de grande quantidade de partículas. É uma causalidade que não é deste mundo. Trata-se de uma causalidade primária que atua em cada aqui e agora, sem exceção. Daí se depreende que os objetos corpóreos não são realmente compostos de “partículas subatômicas”, mas, pelo contrário, o fato mesmo de serem corpóreos implica que já não há nada “subatômico” ali. As “partículas subatômicas” são partes genuínas de um todo ontológico. Segundo Smith, “pode-se dizer que toda medição de um sistema quântico constitui um ato cosmogênico que ‘participa’ do Ato único da criação”. Trata-se da causalidade vertical.

Fonte: Wolfgang Smith, O enigma quântico, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2019.