19 de julho de 2024

Física-matemática e metafísica


A necessidade da metafísica

Jacques Maritain, mais especificamente sua obra The Degrees of Knowledge (que será alvo de estudo nosso em breve), é a influência capital no pensamento do filósofo venezuelano Carlos Casanova. Usando diversos livros de filosofia da ciência como pontos de apoio para tecer seus comentários, torna-se um tanto difícil detectar precisamente seu pensamento acerca dessa disciplina.

De toda forma, o que procura fazer Casanova é superar o entendimento nominalista e mecanicista prevalente na filosofia da ciência, a qual considera falha, e estabelecer bases mais lúcidas e convincentes. A partir de Descartes, as normas ou “leis” que regem a natureza deixam de ser causas formais dos entes, que perdem, portanto, sua natureza. As coisas se reduzem ao que Casanova chama de “monturos” (i.e. montes de esterco) de res extensa. Mas então onde foram parar as leis da natureza? Para Newton, na própria res extensa; para Hume, as leis são hábitos da mente; para Kant, as leis são um acasalamento entre as categorias/formas e nossas experiências. Casanova, com Maritain em punhos, discorda de todos eles.

Veja o caso da nutrição, por exemplo. Na visão nominalista/mecanicista contemporânea, a nutrição não passa de mero intercâmbio de interações químicas (é o que se pode vislumbrar neste artigo, por exemplo). Mas por que ocorre a enteléquia, isto é, por que ocorre a passagem da potência para o ato no caso da nutrição? A resposta não se encontra na própria dinâmica da nutrição. A enteléquia não é uma “força” que se soma às outras “forças” da nutrição, mas ela é precisamente o que dá unidade às partes, é o que faz com que a biologia não seja mera física matemática.

Similarmente, nem mesmo a física se resume à física matemática. Aliás, nem mesmo a matemática se reduz à matemática (!). Sim, porque alguns dos axiomas sobre os quais versa a matemática não podem ser provados por ela mesma. Veja o caso do princípio da não-contradição, por exemplo. É aqui que entra a metafísica. É ela, a metafísica, que detecta e defende os primeiros princípios.

Entes de razão e entes naturais

Maritain, como bom tomista, ordena os entes da seguinte forma:

  • Entes de razão. São os entes que têm existência mental. Maritain os dividem em escalões. O primeiro escalão são os entes de razão que respondem a observações experimentais (medições). O segundo escalão são os entes de razão que são apenas imagens simbólicas (átomos, elétrons, moléculas). O terceiro escalão são os entes de razão incapazes de existir enquanto tais (os tempos de Einstein, os modelos materiais de Kelvin).De maneira geral, são entes de razão os universais, proposições e juízos – aqui pouco importa que respondam a essências reais –, bem como negações, relações, conectores lógicos, quimeras (i.e. fantasias), metáforas etc. Estes entes, embora não sejam “reais”, são exigidos pela inteligência para que possa conhecer a realidade.
  • Entes naturais. São o que chamamos coloquialmente de “coisas”. São os entes que compõem o mundo real.

As teorias da física-matemática, que se encontram nos segundo e terceiro escalões dos entes de razão, são basicamente um conjunto de “mitos verossímeis” que não conhecem a natureza das coisas em si mesmas, mesmo que conheçam algo real. O que Maritain quer dizer, no entanto, é que as teorias físico-matemáticas são uteis, senão indispensáveis em muitos casos, para que entendamos a realidade, mas elas não encerram em si a própria realidade. Por estarem naturalmente distantes da realidade (lembre-se, são entes de segundo e terceiro escalões), é imprescindível que outra disciplina entre em ação para organizar o conhecimento que trazem. Eis o papel da física descritiva (ou “filosofia natural”). Em outras palavras, atribuir realidade a fórmulas algébricas é perder-se em erros. O esquecimento da metafísica é o que torna possível delírios como “viagem no tempo”, “campos de força”, “homúnculos” etc.

Um dos maiores enganos associados às teorias da física-matemática é atribuir-lhes realidade. A mente definitivamente não é um espelho do mundo. Talvez Platão, em sua teoria das ideias, tenha vacilado nesse sentido, mas Aristóteles mostrou claramente a diferença entre aquilo que conhecemos do aquilo pelo que conhecemos. Tenhamos em mente os entes de razão e os entes naturais: os entes de razão são aquilo pelo que (id quo) conhecemos aquilo que (id quod) é real. Já vimos isso inúmeras vezes nos estudos de Mortimer Adler, como, por exemplo, no verbete “ideia” de seu dicionário filosófico. Casanova evidentemente não nega que haja verdade na física, mas ela é muito menos dogmática do que muitos imaginam. A verdade na física se expressa de modo metafórico. E tal verdade está mais presente nas explicações que servem de contexto às formulas algébricas que nas próprias fórmulas algébricas. As fórmulas apenas captam inter-relações quantitativas e, como é óbvio, não as refletem como um espelho.

Por outro lado, negar os universais (conceitos, ideias) é negar que existe ciência, física ou matemática.

A origem das teorias científicas

É verdade que toda ciência se origina da experiência, e ela, em si, não é racional. Mas estas experiências tampouco são irracionais. Elas são, na verdade, intelectuais. A esta altura o leitor já deve estar habituado a diferenciar ‘intelectual” de “racional”. O intelecto é uma das potências superiores da alma (a outra é a vontade), enquanto a racionalidade (ou “raciocínio”, melhor dizendo) é um dos modos de operação do intelecto. Mas o ponto aqui é que a experiência inicial do intelecto, mais especificamente do intelecto agente, é de maneira espontânea extrair o conceito ou ideia do fantasma que lhe é apresentado pela parte sensível da alma. Portanto, a atividade intelectual inicial não é irracional, mas suprarracional. Einstein foi um dos cientistas que admitia o caráter intuitivo dessa experiência:

A suprema tarefa do físico é a busca dessas leis altamente universais [...] desde as quais se pode obter um retrato do mundo por pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza a essas [...] leis. Elas só podem ser alcançadas por intuição, baseadas em algo como um amor [Einfühlung] intelectual dos objetos da experiência.

É claro que uma miríade de fenômenos psicológicos entra em jogo nessa intuição inventiva. Mas a visão que reconhece dentre as várias ideias qual a correta é algo que se explica pelo amor conatural à verdade; ou, como diria Tomás de Aquino, as “sementes da verdade”. Roger Penrose dizia em seu The Emperor’s New Mind (a ser estudado aqui futuramente) que a intelecção não é redutível a sistemas inteligentes porque a inteligência não é algorítmica nem se conforma a regras conscientes (muito menos inconscientes).

E há mais. A invenção não é o único aspecto no qual a intuição intelectual se aplica. Mesmo quando são detectados os axiomas de uma teoria qualquer, seu desenvolvimento demonstrativo também exige a participação da intuição intelectual. Demonstrar uma teoria qualquer não é um processo retilíneo e puramente lógico porque há valores suprarracionais envolvidos na descoberta científica como a capacidade preditiva, a consistência, a ampla aplicabilidade, a simplicidade e a fecundidade para produzir novos resultados. Nada disso é “racional”. Observe que é fantasioso supor que a ciência, seja a física-matemática ou qualquer outra, parta de axiomas bem estabelecidos e daí deduza uma teoria. Pelo contrário, o que ocorre é que um sistema axiomático é produto de reflexões que reforçam o edifício científico existente. Não se trata de “conspiração” ou qualquer coisa do gênero, mas sim de um conjunto de observações empíricas que esperam o surgimento de um gênio que proponha hipóteses que organizem essas observações em uma teoria.

Cumpre-se portanto o velho adágio aristotélico: “Toda doutrina e toda disciplina procedem de um conhecimento prévio”. Esse conhecimento intelectual “bruto”, digamos, é infalível porque inicialmente é feito de todos, ou seja, de compostos. Perceber “homem” é infalível porque se percebe num ato único. Posteriormente, claro, se decomporá esta percepção em elementos simples, e esta passagem do uno ao múltiplo é onde residirão os erros.

A depuração dos erros é possível voltando-se à síntese, ou seja, a uma nova síntese. Eis o processo científico: ele jamais descreverá com precisão a essência dos entes, mas é capaz sim de nos aproximar das causas verdadeiras mediante a transpassagem das fórmulas matemáticas em direção às realidades físicas que essas fórmulas apontam. Eis o papel da física-matemática: uma ponte para a realidade. Não é a realidade, mas uma ponte para ela.

Causalidade como princípio suprarracional

Muitos filósofos, entre os quais se encontra Kant e a maioria dos materialistas/fisicalistas, sustentam que o princípio da causalidade é irracional porque não é dedutivamente explicável pelos métodos científicos. Isso ocorre, segundo Casanova, porque a causalidade é modernamente confundida com determinismo eficiente. Causa é causa eficiente. Como não se detectam causas eficientes pelo método científico então a causa eficiente não existe e, portanto, a causa não existe.

O problema reside na dificuldade moderna em entender que a causa eficiente subordina-se à causa final. É a finalidade que traz inteligibilidade ao mundo (e à ciência, por óbvio), e é ela também que explica adequadamente a mecânica quântica. O fato de haver acaso não significa que haja irracionalidade, pois, a ausência de causa é apenas ausência (ainda) de finalidade. Uma vez que entendemos que a base das ciências são os poderes (aka potências) que constituem a materialidade, postular o acaso não implica que estejamos nos afastando da racionalidade. O acaso não exclui a existência de uma materialidade junto à formalidade das tendências, nem a causalidade per accidens nem o livre arbítrio humano.

Fonte: Carlos Casanova, Física e realidade, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2013.