Amor
As pessoas não
conseguem viver sem amor porque ele é a força mais seletiva da vida.
A vida é como uma enorme corrente que flui perpetuamente em todas as direções,
que nos arremete e nos arrasta. Não podemos incluir em nossas vidas tudo o que
esta corrente nos traz; não podemos nos render ao seu conteúdo caótico e
avassalador. Quem o tentar estará fadado a esgotar suas forças e se destruir:
nada de bom virá disso pois se perderá em completa assimilação. Devemos ser
seletivos e abnegar muito em prol de relativamente pouco; este pouco devemos
receber, guardar, atesourar, salvar, desenvolver e aperfeiçoar e, dessa forma,
construir nossa identidade. O amor é uma força seletiva por definição:
ele “prefere”, “adota”, “se apega”, atesoura, cuida, busca e preserva a
lealdade. Paralelamente, a vontade não passa de um instrumento do amor nos
afazeres da vida. A vontade sem amor é vazia, dura, rude, violenta e, acima de
tudo, indiferente ao bem e ao mal. Ela rapidamente transformará a vida
em uma prisão de segurança máxima comandada por homens depravados. Muitas
organizações construídas sobre estes princípios ainda existem. Que Deus nos
proteja delas e de suas influências... Não, não conseguimos viver sem amor: é
um grande dom – vislumbrar o bem supremo, escolhê-lo e vivê-lo. Temos a
essencial e preciosa capacidade de dizer “sim”, de adotar e iniciar um serviço
desinteressado. Como é terrível a vida da pessoa sem esse dom! Que vulgaridade,
que vida desperdiçada!
Equidade
A equidade
absolutamente não precisa da igualdade. Pelo contrário, a equidade requer desigualdade.
A equidade é a arte da desigualdade. Mas em sua base também estão uma
consciência viva e um amor vivo ao homem. O dom especial da equidade existe em
todas as pessoas. Este dom pressupõe que a pessoa tenha um coração gentil e
amoroso, um coração que não queira aumentar a quantidade de injustiçados,
sofridos e amargurados. Este dom também pressupõe uma vigilância viva, uma
sensibilidade afiada para com a individualidade humana e a capacidade de sentir
e entender os outros. O homem justo rejeita a interpretação mecânica das
pessoas segundo características abstratas.
Eis porque
a equidade é um empreendimento criativo: ela contempla a vida por meio
do coração, captura a singularidade de cada pessoa e procura avaliá-la com
exatidão e lidar cm ela com objetividade. A equidade é atenta, cuidadosa,
social; ela porta um senso de moderação; ela é inclinada à simpatia, a
condescendência delicada e ao perdão.
É tolice
buscar a equidade no ódio, pois o ódio é invejoso; ele não leva à equidade, mas
a igualdade universal. É tolice buscar a justiça na revolução, pois a revolução
excita-se no ódio e na vingança; o ódio é cego, é destrutivo, é o inimigo da
justa desigualdade, e não presta honras às “habilidades superiores”
[Dostoyevsky].
A equidade
não pode ser delimitada a regras gerais ou a instituições governamentais. A
equidade não é um “sistema”, mas uma entidade viva. Ela deve ser imaginada na
forma de um fluxo de amor vivo e objetivo pelas pessoas. Somente tal
amor pode resolver o problema: ele produzirá uma equidade viva, recriará tudo
na vida e no relacionamento das pessoas, e criará uma nova desigualdade
objetiva.
Ódio
Experimentamos
a antipatia de outra pessoa pela primeira vez quando sentimos que nossa energia
vital não é aceita por ela: sentimos que nossa energia é repelida, até mesmo
terminantemente recusada. Só isso já é incômodo e doloroso. Essa situação pode
nos levar ao desânimo ou mesmo a um estado de confusão. Uma estranha sensação
de fracasso ou inaptidão pessoal, até mesmo de irrelevância de nossa
existência, desperta na alma; o desejo de comunhão é interrompido, nossa
energia perde o poder de irradiar-se, ficamos sem palavras, o coração deseja
retirar-se. Pessoas retraídas e antissociais frequentemente nos inspiram este
sentimento nas pessoas abertas e sociáveis mesmo quando não há nenhuma
antipatia que seja digna de nota. Mas uma vez que a antipatia nasça ela pode
desenvolver-se em animosidade, transformar-se em repulsa e aprofundar-se em
ódio; isso pode acontecer a despeito se fizermos algo concreto para merecer tal
ódio...
Claro, não
podemos controlar os sentimentos das outras pessoas; sinceramente, não é nada
simples encontrar o caminho seguro e a força espiritual necessária para
solucionar esta formidável tarefa... Mas de uma coisa tenho certeza: este fogo
obscuro tem de ser extinto. Ela precisa perdoar-me e fazer as pazes comigo. Ela
não apenas deve “conceder-me vida” e chegar a um acordo com minha existência;
ela precisa sentir felicidade porque eu vivo nesta terra e me dar a
chance de ser feliz por sua existência. Pois, como dizia o grande sábio
ortodoxo Serafim de Sarov, “O homem é a maior alegria do homem”...
Antes de
mais nada, preciso aprender e entender como – e por que – mereço este ódio.
Será que tenho alguma culpa pelo fato de que agora ambos estamos sofrendo –
ele, o odiador, e eu, o odiado? Talvez eu tenha inconscientemente cutucado uma
antiga ferida ainda não cicatrizada em seu coração, fazendo com que todo o
legado acumulado de seu passado, suas velhas angústias, seus agravos não
perdoados, colapsassem na minha cabeça. Neste caso, somente a compaixão pode
ajudar – um entendimento amoroso de sua alma. Mas, talvez sem que tenha notado,
eu o tenha infectado com meu próprio ódio oculto, que vive esquecido em mim,
que tenha emanado de mim sem meu consentimento. Neste caso, tenho que
primeiramente limpar minha alma e transformar os traços de ódio esquecido em
amor. E mesmo que minha parte da culpa seja completamente insignificante e
impremeditada, devo começar por aceitá-la e eliminá-la, mesmo que isto me
obrigue – com sinceridade e amor – a obter o perdão dela.
Em segundo
lugar, devo perdoar-lhe por seu ódio. Não devo, não me atrevo, a responder seus
raios negros com raios igualmente negros de desprezo e repulsa. Não devo evitar
encontrá-lo; não tenho o direito de fugir. Devo encarar sua face odiosa frente
a frente e dar-lhe a correta resposta espiritual com meu coração e minha
vontade. A partir daí, responderei o raio do seu ódio com um feixe branco –
claro, humilde, bondoso, indulgente e perdoável. “Por favor, aceite minha existência
da mesma maneira que eu aceito a sua – com amor”. De fato, com amor, pois
perdoar não é apenas não buscar vingança, não apenas curar a ferida, mas amar o
perdoado.
Isso tudo
provavelmente será difícil de cumprir; seu ódio muito provavelmente vai mostrar-se
relutante, e não vai querer se transformar ou descansar tão rapidamente assim.
Mas serei insistente e manterei minha fé na vitória; é minha garantia de
sucesso. O ódio é curado pelo amor, somente pelo amor. Um raio de amor
verdadeiro pacifica os animais selvagens. Eis o que nos ensinam as vidas dos
santos – não se trata de fantasia ou lenda de fiéis.
Culpa
Como é
doloroso e às vezes incrivelmente difícil determinar e aceitar nossa própria
culpa. “Amigos e inimigos, natureza e homem, pais e educadores, a concorrência
infeliz de circunstâncias e condições, ‘sociedade’ e ‘influência’, céu e
inferno, mas eu não! E isso posso provar – tenho que provar – porque disso não
pode restar nenhuma dúvida”.
Oh, essa
“necessidade” traiçoeira por auto-justificação. Me consome por completo. Essa
caça por evidências...por que preciso disso se acredito tanto que “essa
história não tem nada a ver comigo?” Quem está exigindo de mim essas
evidências? Quem suspeita de mim senão eu mesmo? Isso somente atesta o fato de
que nas profundezas da minha alma me considero culpado; certa voz silenciosa
secretamente repete, dentro de mim, e não me deixa em paz...
E, de
repente, influenciado por tais percepções inesperadas, paro de fugir da minha
própria culpa. Minha covarde ansiedade cessa. Mas estou pronto: que meu
acusador se pronuncie.
Sim,
coragem é necessária para investigar suas próprias afrontas sem buscar
libertar-se disso através da fuga. Por que você deve procurar examinar todas as
suas ações pelo melhor e mais nobre lado? Que ingenuidade! De onde vem esta
necessidade para apresentar-se – a si mesmo e aos demais – como uma pessoa
justa, que nunca comete erros?
Em primeiro
lugar, tenho que reconhecer o fato de que todas as pessoas, sem exceção,
enquanto vivem nesta terra, compartilham da mesma culpa deste mundo:
pelo desejo ou falta dela, mas também pela falta de vontade, pela falta de
inclinação para fazer escolhas intencionais; ação e inação, mas também de mau
grado ou “lavar as mãos” como Pilatos; sentimentos e pensamentos, mas também
uma apatia de madeira e uma indiferença rígida.
Todo
pensamento maligno, toda emoção odiosa, todo desejo malicioso, tudo isso
invariavelmente envenena o ar espiritual do mundo e o espalha ainda mais.
Eis porque
não existem pessoas “sem culpa” ou “inocentes”. Há somente aquelas que conhecem
sua culpa, que são capazes de carregar sua própria culpa e a porção de
culpa do mundo, e aquelas que, em sua cegueira, não sabem disso, mas
tentam imaginar e apresentar aos outros sua inocência imaginária.
O primeiro
tipo são pessoas que têm coragem e humildade suficientes para não fecharem seus
olhos às suas próprias culpas. Elas são as portadores da culpa do mundo,
purificando o mundo e fortalecendo seu tecido espiritual.
O segundo
tipo são os eternos fugitivos, os que “se salvam” desesperadamente de sua culpa,
pois sua culpa os persegue como no antigo conta de Erinyes. Elas
imaginam que são responsáveis somente pelas coisas que deliberada e
intencionalmente realizaram em suas vidas exteriores; elas não sabem nada sobre
o éter abrangente que ocupa o mundo e sua culpa mundial compartilhada na qual
todos as linhas e fios se encontram entrelaçados em um todo inseparável. Elas
buscam a paz em sua inocência imaginária, a qual para elas e para qualquer um é
completamente inalcançável. Como raciocinam de maneira astuta e lógica, que
impressionante poder de julgamento quando expõem as pessoas à sua volta,
apontando suas falhas, culpando-os e estigmatizando-os! E tudo isso porque lhes
apetece se auto-justificarem desta forma. Mas quando o assunto lhes compete, de
repente se volvem míopes, ingênuos e estúpidos. Se soubessem o quanto ferem a
si mesmos e ao mundo! Elas se apressam em provar a si mesmas que são “muito boas”
e “completamente inocentes”, que não precisam mudar ou melhorar nada em si
mesmos. No entanto, exatamente por causa disso, as emanações que emitem ao
mundo permanecem incontroladas e impurificadas; o ar do mundo, já tão
contaminado e doente, mais e mais se empapa com os venenos da vulgaridade, do
ódio e da malicia emitidos por elas...
Por isso
não busco a libertação por meio da fuga. Aceito minha culpa e a carrego de hoje
em diante – calmamente, honestamente e resolutamente. Haverá provavelmente
horas difíceis e dolorosas, mas esta dor é purificante e benéfica. Vou procurar
e encontrar minha própria culpa nas ações, palavras e feitos; vou procurar mais
a fundo, vou investigar as condições inexpressivas e mudas da alma, onde se
inicia meu total isolamento e onde mesmo a autoconsciência não alcança. Vou
procurar em toda parte: onde faltei com o amor e o perdão, onde me esqueci da
expansão universal e do éter compartilhado pelo espírito; onde eu parei de
servir a Deus e fazer Sua obra – ou, pelo menos, quando eu a faço de malgrado?
Sem cair em confusão ou desespero, vejo toda minha vida como uma cadeia de
ações e estados de ser culpados – e disso extraio mais coragem e humildade.
Conforme
chego a este estado, recebo o direito de explorar a questão da culpa das outras
pessoas – não para expô-las ou julgá-las, o qual desejo cada vez menos, mas
para experimentar sua situação de vida e condição espiritual de tal forma que
eu possa vislumbrar-me no lugar da pessoa culpada em cada ocasião, e imaginar
que sua culpa era minha. Isso promove e aprofunda minha
experiencia de culpa, e lentamente aprendo a portar não apenas minha fração de
culpa, mas também a das outras pessoas, a carregá-la, ou seja, conquistá-la, em
meu espírito através do amor.
Porém,
francamente, tenho muito por trilhar... Não sei se chegarei a dominar esta
arte. Talvez sim, talvez não... Mas de uma coisa tenho certeza: este é o
caminho certo.
Amizade
As pessoas
naturalmente “gostam” uma das outras e “desfrutam a companhia” uma das outras,
mesmo hoje em dia. Mas, meu Deus, como isso é superficial, que escasso, que
raso! Isso apenas significa que elas passam tempos “agradáveis” e “divertidos”
juntas, que elas conseguem “agradar” umas às outras... Se descobrem uma
afinidade em inclinações e gostos; se evitam chatear-se mutuamente com certo
sucesso fazendo uso de suas arestas arredondadas, sem cantos, sem emitir
opiniões conflitivas; se ambos sabem ouvir o tagarelar um do outro com
aparência amigável, bajulando ligeiramente um ao outro e compelindo um ao outro
um pouquinho – já é o suficiente. Assim se forma a tal “amizade” entre as
pessoas, a qual essencialmente é composta de convenções exteriores,
brincadeiras vazias, “boas maneiras” escorregadias, brincadeiras vazias e cálculos
ocultos. Algumas amizades se fundam no amor comum pela fofoca ou pelo vicio
mútuo de reclamar. Mas também existem as “amizades” de bajuladores, “amizades”
de vaidades, “amizades” de patrocínio, “amizade” de ofensas, “amizades” de
preferências e “amizades” de alcoolismo. Às vezes um dá, às vezes outro recebe
– e ambos se consideram “amigos”. Uma mão lava a outra: as pessoas tocam seus negócios
e afazeres juntas, sem confiarem muito umas nas outras, e ainda assim pensam
que “se tornaram amigas”. Mas “amizade” também é o nome que se dá à atração
passageira entre um homem e uma mulher que não se comprometem jamais, ou às
vezes é apenas uma paixão romântica que, com o tempo, os separará para sempre.
Todas estas “amizades” imaginárias se resumem ao fato de que as pessoas que são
estranhas, ou mesmo completamente contrárias umas às outras, cruzam caminhos e
temporariamente aliviam suas vidas mediante contatos rasos e auto-interessados.
Elas não veem, não sabem, não amam umas às outras, e frequentemente sua amizade
se despedaça tão rapidamente que é difícil dizer se algum dia chegaram a se
conhecer.
Há somente
uma força neste mundo capaz de conquistar a solidão humana, e esta força é o amor.
Há somente um caminho possível para emergirmos da areia da vida e resistir às
suas tempestades, que é a vida espiritual. E assim pois a amizade é um
amor espiritual que une as pessoas, e amor espiritual que é a chama viva
de Deus. Quem não conhece a chama de Deus e nunca a experimentou não
entenderá o que é a verdadeira amizade, nem será capaz de recriá-la nem jamais
entenderá a lealdade ou o verdadeiro sacrifício. Eis porque somente as pessoas
do espírito são capazes da verdadeira amizade.
Não existe
verdadeira amizade sem amor, porque é o amor que une as pessoas. A verdadeira
amizade é uma união voluntária; nela a pessoa está ao mesmo tempo livre
e conectada. Esta conexão não interrompe ou diminui a liberdade; pelo
contrário, lhe dá vida, e esta liberdade, ao encontrar vida em unidade, conecta
as pessoas em espírito.
A pessoa
verdadeira porta em seu coração certo calor oculto, como se em seu interior, em
secreto, queimasse um carvão.
A amizade
começa quanto a faísca emitida pelo espírito entra em contato entra em contato
com a salsa ardente da pessoa e por ela é aceita. Em contrapartida uma faísca é
emitida em resposta à faísca aceita; tal faísca une-se à primeira e, por sua
vez, inspira nova resposta. Assim se inicia uma troca de luz. A faísca nunca
desaparece nas trevas do entorno. Cada uma atinge seu objetivo. O espírito
regozija-se em sua mansa sinceridade. Ele sabe que encontrará contemplação
espiritual e entendimento empático.
Assim a
verdadeira amizade, como o amor – mais especificamente, amor espiritual – cria
o núcleo inicial desta união; algum dia, estes pequenos núcleos de fogo
espiritual formarão uma grande e unificada chama de Deus, um tecido luminoso e
alegre do Reino de Deus através do mundo...
É por isso
que cada um de nós deve procurar a verdadeira amizade ao longo de nossas vidas,
a construí-la espiritualmente e preservá-la amorosamente. Somente então
descobriremos o que abrange o êxtase da verdadeira fidelidade e da
tranquilidade natural do verdadeiro sacrifício.
Aprender
a ouvir
Toda beleza
– mesmo a beleza menor e sem sentido, assim como todos os momentos alegres da
vida – tem grande e insuperável valor. Tais belezas lavam os pesares da alma;
elas nos trazem o sopro leve da vida e nos dão uma pequena fração de
felicidade... Podemos estar seguros de que não há um único momento leve e
alegre que seja desperdiçado na vida da pessoa.
Por isso
precisamos aprender a ouvir: a ouvir a natureza das coisas com
respiração suspensa, a adentrar na corrente viva da natureza, a unirmos à alegria
e beleza do mundo. Eis porque quem busca a natureza viva, a arte gentil e as
brincadeiras alegres devem se libertar internamente e eliminar quaisquer
tensões.
Mas antes
que podamos nos render a impulsos lúdicos ou a experimentar a criação de uma
nova beleza, precisamos desenvolver a confiança em nós mesmos. Devemos
silenciar quaisquer objeções ou considerações secundárias; devemos nos atirar
imediatamente, sem titubear, sem nos interromper, sem tentar ser inteligente,
sem nos fazer de desamparados pelo motivo ou pretensão que for. Devemos
esquecer as tarefas e objetivos pessoais, pois toda brincadeira tem seu
próprio objetivo subjetivo, sua própria tarefa individual. Devemos nos
entregar a este objetivo – quanto mais ingênuo, espontâneo e pleno, melhor.
Tudo o que
nos resta é desfrutar com gratidão, e, em meio a tal desfrute, encontrar a
cura.
Privação
A vida é
uma batalha que precisamos vencer; o vitorioso é aquele que aprende a
personificar a bondade e a justiça. Claro, toda sorte de tentações e perigos
surgirá, e cada um desses perigos representa, em essência, uma ameaça. Se
examinarmos essas ameaças constataremos que todas elas são virtualmente a
mesma: todos são ameaças de perda. Isso porque a chamada “humilhação” é
também uma perda de liberdade, perda do reconhecimento alheio, perda de sucesso
financeiro; essas privações podem, claro, tornar as coisas mais difíceis. Nós
jamais devemos aceitar a perda de nossa verdadeira dignidade ou respeito
próprio, no entanto não devemos levar ao coração a ausência de reconhecimento
alheio, ou suas calúnias e difamações. Temos de saber como seguir a vida sem
“sucesso”, “estima” ou a chamada “glória”.
Somos
ameaçados por privações ao longo de toda a vida. Nossas vidas são impregnadas
com pensamentos e preocupações sobre possíveis perdas, acidentes, humilhações e
pobreza. Mas é isso que constitui a escola da vida; nisto reside nossa
preparação para o sucesso e o treinamento para a vitória. Essa escola requer
que derrotemos espiritualmente as ameaças e as privações. A habilidade
de lidar com leveza nossas preocupações, de renunciar facilmente àquilo que nos
falta, constitui a arte de viver. Nenhuma perda ou privação deve perturbar o
equilíbrio da alma.
A arte de
superar a privação se efetua com base em duas condições. Em primeiro lugar, a
pessoa deve ter na vida determinado valor superior, exigente, ao qual
ela verdadeiramente ame acima de todas as coisas, e que realmente mereça
seu amor. Tal é o sol do amor santo e santificante, à luz do qual
nenhuma privação parecerá difícil, ou nenhuma ameaça parecerá aterrorizante. Em
segundo lugar, a pessoa deve desenvolver a capacidade de concentrar sua
atenção, amor, vontade e imaginação – não naquilo que lhe falta, que lhe foi privado
– mas naquilo que lhe é dado. Quem sempre pensa no que lhe falta estará
sempre faminto, invejoso e carregado de ódio. Os discípulos de Antonio, o
Grande, certa vez lhe perguntaram como ele conseguia ver o Senhor Deus. Ele
respondeu da seguinte maneira: “De manhã cedo, quando saio de minha cabana de
barro em direção ao deserto, vejo o sol nascer, ouço os pássaros cantarem, uma
brisa suave sopra em meu rosto – e meu coração vê o Senhor e canta de alegria”.
O que isso
quer dizer é que a privação nos impele à contemplação dedicada ao mundo, como
se uma voz mística estivesse nos dizendo: “O que já lhe foi dado esconde a verdadeira
riqueza; sinta-a, domine-a e renuncie tudo o mais que não lhe foi dado,
pois não você não precisa disso...” Em todas as coisas terrenas há uma medida
de profundidade. Nesta profundidade se encontra a porta para a sabedoria e
para a bem-aventurança.
Saúde
Como é
tedioso estar sempre pensando em sua própria saúde – eternamente se prevenir,
ter medo de tudo, evitar fazer as coisas pensando “será que isso pode me machucar?”
A vida inteira se transforma em um mar de pavor e horror. Você se transforma em
seu próprio guarda prisional.
A poeira
do mundo
Toda
trivialidade insignificante de nossa existência – toda vicissitude, toda
circunstancia elementar e vazia da vida que atinge certo peso e “significância”
a nossos olhos, a qual na verdade é desprovida de qualquer propósito superior;
todo fator oco e vagabundo da vida que pede nossa atenção, toda banalidade que
pleiteia nosso tempo e dedicação, que irrita, agita, desaponta, distrai, exaure
e drena – tudo isso é poeira, a própria malfadada e lamentável poeira da
vida...
Oculta ao longo
dos caminhos da vida, esta astuta poeira se encontra por todos os lados; melhor
não a perturbar, melhor não a sacudir ao vento. Ela penetra silenciosamente nos
aposentos interiores da nossa alma e se assenta em tudo o que ali se encontra.
Eis porque devemos ser capazes de limpá-la de nosso espaço interior – e se não
desenvolvermos esta habilidade estaremos sob risco de sermos sufocados por ela:
seus pensamentos ”combinarão“ conceitos abstratos (poeira lógica); sua
imaginação infundada brincará subjetivamente com imagens (poeira estética); sua
vontade se desconectará de suas raízes sacras e se tornará cínica, sedenta de
poder e cruel (poeira política); e seu coração frio e amortecido esquecerá como
amar e estará coberto com a poeira da vida moralmente indiferente.
Riquezas
e posses
A resposta
não está em negar ou proibir posses; isso seria tolice, inatural e danoso. Em
vez disso, devemos controlar nossas posses, não as eliminar,
tornando-nos assim livres delas. Esta liberdade não pode vir das outras
pessoas; as devemos pleitear nós mesmos, devemos libertar nossas almas. Se é
fácil para mim pensar nas minhas posses, então sou livre delas. Sou eu quem
determina o destino de cada uma das minhas posses, e o faço facilmente: meu
destino não depende do que eu tenho; não sou um cachorro acorrentado a minhas
posses nem sou um guarda que os vigia de noite; não sou um mendigo que pede
dinheiro a cada ocasião e o esconde na meia. É vergonhoso temer por suas posses
e ainda mais vergonhoso invejar aqueles que são mais ricos que você. Devemos
viver de uma maneira completamente diferente: devemos sacar com facilidade de
nossa conta bancária o que quer que seja necessário, e dar com alegria onde
quer que o coração nos mova a dar, provendo a quem lhe falta, sacrificando
alegremente sem pesar, esperando nada em troca daquele que não pode dar, e de
maneira fraterna, sem cobrar juros. Mais importante ainda, nunca vacilar por
suas posses: “O Senhor o deu, e o Senhor o tomou: bendito seja o nome do
Senhor” (Jó 1:21). Aquele que vacila por sua riqueza se rebaixa e perde sua
dignidade, e é melhor que uma pessoa modesta com pensamentos modestos que não
tenha nenhuma riqueza...
Idade
Secretamente,
de soslaio, nos perguntamos o que os outros pensam de nós, se gostam ou não
gostam de nós, se nos aceitam, e quantos anos acham que temos.
Aquele cujo
coração canta é eternamente jovem, mas aquele cujo coração nunca cantou nasceu
velho. A verdadeira juventude é um atributo do espírito e sua força, sua
criatividade. Aonde quer que o espírito se mova e desabroche, onde quer que o
coração cante – lá, a velhice é somente uma indelicadeza do tempo e uma
realidade fantasma. Infelizmente as pessoas não sabem muito disso. Elas não têm
força espiritual para determinar sua idade, e lhes falta a capacidade de
permanecer espiritualmente jovens. Por esta razão elas facilmente se rendem ao
estado de seus corpos, ansiosamente contam os anos de suas vidas, observando em
estado de desamparo seus cabelos rarearem, tentando esconder sua verdadeira
idade de todos, ofendendo-se com perguntas indelicadas e mantendo sua data de
nascimento em segredo. No final das contas, suas glândulas se tornam a coisa
mais importante de suas vidas... Frequentemente nos encontramos infelizes por
causa de nossa miopia e ingenuidade; não entendemos que a espiritualidade é
a chave para a verdadeira felicidade...
Que venha a
velhice: não é ela que ameaça a juventude. É possível ser velho e jovem ao
mesmo tempo. Devemos superar espiritualmente nossa idade e torná-la um detalhe
irrelevante de nossa existência.
Fácil falar...
Mas como fazer isso?
Eis como.
Primeiramente,
devemos calcular nossa idade não de acordo com as condições do corpo, mas de
acordo com as condições do espírito. Em segundo lugar, em cada fase da
vida, devemos sentir prazer em suas alegrias mais nobres e resolver as
tarefas espirituais que se apresentam em cada fase específica. Em terceiro
lugar, em qualquer idade, devemos viver pelas coisas que não amadurecem e não
envelhecem – as coisas que existiram desde o princípio dos tempos e que
existirão para o resto da vida. Tudo isso é parte da arte de viver.
Isso
significa viver a serviço do eterno – em amor, em contemplação espiritual, e
imerso na tapeçaria divina do mundo – então sua vida será abençoada e alegre...
Em outras palavras, significa rejubilar-se no sopro de Deus quando criança;
quando jovem, contemplar a centelha divina no ser amado; ao entrar na vida, já
perceber por Quem fomos criados – e para quê. Quando homem maduro, convencer-se
firmemente Quem e o que reivindica sua lealdade. Sua sabedoria, na vida
avançada, será imbuída de amor espiritual, e iluminará as pessoas em sua vida
como um farol espiritual. Quem cruzar com os raios de sua luz sentirá sua fonte
sobrenatural. E uma vez que deixe este mundo, entrará em paz e alegria no mundo
eterno ao qual seus pensamentos já estavam conectados em toda sua vida...
Se vivermos
desta maneira, então nossa vida se transformará em um jardim florido. A
velhice será superada, a velhice será exaltada... E não haverá razão para
resmungar ou reclamar.
Oração
Eis algo
que ocorre frequentemente: quando uma pessoa se encontra privada de algo, lhe
dói observar quem o tenha. “Ninguém deveria ter o que eu não tenho”. Os
benefícios dos outros a ferroam e a ofendem; é raro que alguém “perdoe” os
outros por seus dons.
O que um
cego pode dizer sobre as cores de uma bela pintura ou de uma delicada flor?
Nada! E ainda assim muita gente conclui que a pintura não existe ou que a flor
é uma alucinação... Quem acreditaria no surdo que anuncia que não existe
música, que tudo não passa de “ficção de hipócritas”? A pessoa privada de seu
olho e ouvido espirituais não tem direito de versar sobre assuntos espirituais.
A pessoa de coração insensível ou percepção espiritual amortecida não sabe nada
sobre o amor, pois como ela seria capaz de perceber o amor de Deus?
Que
descabido, que ingênuo, que primitivo imaginar que as únicas realidades são
aquelas acessíveis através dos cinco sentidos.
O
retorno
Em meio às
adversidades e sofrimentos de nosso tempo, às tentações que nos invadem e aos
temores que nos cercam, aprendemos de novo a rezar. Pois estamos perdendo este
que é o maior dos dons e simplesmente esquecemos esta habilidade tão
maravilhosa. E, apesar disso, sem a oração, o homem se encontra distante de
Deus, cortado de fonte da verdadeira vida: ele se vê rendido à origem do mal e
não tem forças para lutar contra ele.
A vida flui
por e através de nós, como numa corrente de todo tipo possível de sentimentos,
desejos e paixões – uma multidão de preocupações e ocupações, uma nuvem de
poeira que consiste em conteúdos fragmentados e insignificantes. Nos perdemos
neste fluxo, nesta neblina, e perdemos o sentido de nossas vidas.
Precisamos
apartar minutos, ou mesmo horas, para respirar e contemplar sem restrições, de
um tempo no qual nossas preocupações são silenciadas, no qual tudo que
constitui nossa vida cotidiana seja esquecido e nos libertemos de tudo o que
seja banal, demasiado humano e vulgar.
Se eu for
capaz de me afastar do conteúdo cotidiano e caótica da minha vida, então meu
coração e minha vontade se abrirão às melhores e mais exaltadas coisas.
Contudo,
não imaginemos que podemos apelar ao Deus do amor e da luz em cada um de nossos
afazeres e esquemas mundanos, pois nossas ações terrenas são às vezes cruas e
egoístas, frequentemente nefastas, insidiosas e destrutivas. Não podemos rogar
ao Deus da luz nas trevas dos nossos afazeres frios. Não devemos esperar ajuda
do Deus do amor em questões predatórias e odiosas. A oração se justifica e se
eleva somente na batalha pelo bem.
A primeira
ajuda que posso suplicar é iluminar minha alma em questões de escolha e
serviço: que me seja dada a capacidade de discernir fielmente entre o bem e o
mal, e desejar infalivelmente a bondade e a perfeição; que eu me seja dada a
pura contemplação, insight confiável, percepção verdadeira e decisão firme.
Quem transmite
orações que não cumpram tais requisitos não rezam a Deus, mas a seu senhor, o
diabo.
Não há
oração que deva excluir meus próprios esforços ou que os considere inúteis: meu
amor, meu desejo, meu esforço e minha luta devem todos estar a serviço da causa
pela qual rezo. Se a causa for realmente boa e verdadeira aos olhos de Deus,
então devo dedicar a ela ainda mais esforços – a ela servir, por ela batalhar,
quaisquer ameaças desafiar, aos perigos se opor.
Se estou
rezando por mim, por minha vida e bem-estar, então posso estar seguro de que
estou trilhando o caminho verdadeiro de minha vida. A oração que brota de uma
consciência pura pode fazer maravilhas.
As aflições
do mundo
Enquanto a
pessoa se mantiver presa e cega a seus próprios sofrimentos pessoais, quando de
maneira desesperada não vê nenhuma saída por conta de sua cegueira, ela se
deixa derrotar por sua natureza bruta e não consegue encontrar o caminho a
Deus. Ela deve sair do seu próprio eu em espírito, elevar-se e enxergar o
sofrimento do próximo, de todas as pessoas, de todas as coisas criadas. Em
princípio ficará horrorizada, e este horror ante aos tormentos do mundo levará à
indignação, a protestos e talvez à rebeldia. Estes humores e sentimentos não a levarão
a Deus, mas a afastarão de Deus, e a levará até mesmo contra Deus.
A pessoa padece
pelo tormento alheio, simpatiza com o outro e começa a demonstrar uma participação
viva e construtiva. Ela se esquece de si mesma e passa a viver em função do
sofrimento alheio e, assim, se livra de conviver com suas próprias dores e aflições.
Sua própria personalidade não mais a acorrenta nem a cega; em seu lugar, a
personalidade da outra pessoa começa a invadi-la e preencher sua vida e alma.
Se a pessoa não notar esta situação a tempo para derrotar esta nova prisão, então
em breve se tornará prisioneiro dos tormentos de outra criatura. Enquanto a comiseração
detiver a palavra final e se portar como a expressão mais alta de seu amor, o
sofrimento de qualquer ser humano lhe parecerá uma tragédia ou infelicidade, e
passará assim a ver o “mal” existente em cada tormento da criatura. Ela começa a
acreditar que o propósito mais importante da vida está em libertar a humanidade
de seu sofrimento. Ela não suporta ver um ser sofrendo, e a batalha contra o
sofrimento se torna sua principal ocupação. Uma vida sem mazelas lhe parecerá o
propósito terreno mais importante.
Isto
significa que a pessoa que sente pena descobriu seu próximo, e isso é
muito bom. Mas ela ainda não descobriu o sentido do sofrimento; o propósito da
humanidade ainda não lhe foi revelado. Seu amor pelo próximo se estende não ao “anjo”
oculto nas profundezas de sua alma que sofre e luta por libertação, mas à criatura
que suspira e chora; ela procura não ajudar o “anjo”, mas servir à criatura;
seu objetivo não é que o espírito sofredor seja purificado e emerja vitorioso,
mas aliviar o tormento do ser criado. É por isso que a pessoa que sente pena ainda
se encontra atormentada pelo medo e pelo horror, por isso ela ainda não aceita
o sofrimento e não compreende nem seu sentido, nem sua graça: ela ainda tem medo
da dor e não sabe nada de sua natureza iluminadora nem dos frutos de sua
derrota. E por isso as aflições do mundo não a levam a Deus: ela segue presa
aos confins da humanidade e do sentimentalismo, intocada pelos raios
iluminadores de Deus.
O amor
somente liberta quando a pessoa vê um filho de Deus naquele que sofre, vê que
está sendo derrotado e está sendo purificado por este sofrimento. Não deveríamos
ficar excessivamente horrorizados à vista de uma criatura que sofre. Não convém
fugir da dor e do sofrimento a qualquer custo. Devemos perceber a necessidade
do sofrimento e captar o sentido universal de tudo isso.
Ao
encontrar-se afastada (até mesmo apartada) de Deus, a criatura humana deve
sofrer. Este sofrimento é um chamamento a Deus. Eis porque o sofrimento existe;
aí reside seu sentido, seu propósito último. As plantas e os animais estão sujeitos
ao sofrimento básico universal em sua potência mais fraca, e por isso são incapazes
de transformá-la em luta e iluminação. Mas o homem tem um chamado superior: ele
tem de aceitar o sofrimento dado como algo “enviado”, como um chamado à purificação,
como uma batalha pessoal em prol da iluminação desta pessoa.
Os
tormentos da criatura são terríveis somente se a pessoa não compreende o propósito
maior deste sofrimento nem descobre seu caminho de ascensão: ela enxerga
somente agonia sem sentido.
* * *
Há dias e
momentos na vida quando a pessoa de repente se encontra diante da morte. São momentos
terríveis; são dias abençoados. Nestes momentos, a morte, como um emissário divino,
julga nossa vida. Mas quando o perigo da morte passa e chega a paz e a
quietude, nos damos conta que nossa vida inteira foi revirada e peneirada, e
chegamos a uma das conclusões mais importantes: nem tudo pelo qual vivemos é
digno da dedicação de nossa vida. Somente se as coisas e ações que constituem
nossas vidas não temem nem a morte nem a proximidade da morte elas podem ser consideradas
plenamente dignas. Tudo o que é digno de nossa escolha e preferência, de nosso
amor e serviço, mesmo na hora de nossa morte, é maravilhoso e apropriado. As
coisas para as quais podemos e devemos entregar nossas vidas são as coisas
dignas de amar e servir. Aquilo pelo qual não vale a pena morrer não vale a
pena viver.
Fonte: Ivan
Ilyin, The Singing Heart, Orthodox Christian Translation Society,
Memphis, TN, EUA, 2016.