23 de dezembro de 2019

A sabedoria de Ivan Ilyin



Amor

As pessoas não conseguem viver sem amor porque ele é a força mais seletiva da vida. A vida é como uma enorme corrente que flui perpetuamente em todas as direções, que nos arremete e nos arrasta. Não podemos incluir em nossas vidas tudo o que esta corrente nos traz; não podemos nos render ao seu conteúdo caótico e avassalador. Quem o tentar estará fadado a esgotar suas forças e se destruir: nada de bom virá disso pois se perderá em completa assimilação. Devemos ser seletivos e abnegar muito em prol de relativamente pouco; este pouco devemos receber, guardar, atesourar, salvar, desenvolver e aperfeiçoar e, dessa forma, construir nossa identidade. O amor é uma força seletiva por definição: ele “prefere”, “adota”, “se apega”, atesoura, cuida, busca e preserva a lealdade. Paralelamente, a vontade não passa de um instrumento do amor nos afazeres da vida. A vontade sem amor é vazia, dura, rude, violenta e, acima de tudo, indiferente ao bem e ao mal. Ela rapidamente transformará a vida em uma prisão de segurança máxima comandada por homens depravados. Muitas organizações construídas sobre estes princípios ainda existem. Que Deus nos proteja delas e de suas influências... Não, não conseguimos viver sem amor: é um grande dom – vislumbrar o bem supremo, escolhê-lo e vivê-lo. Temos a essencial e preciosa capacidade de dizer “sim”, de adotar e iniciar um serviço desinteressado. Como é terrível a vida da pessoa sem esse dom! Que vulgaridade, que vida desperdiçada!

Equidade

A equidade absolutamente não precisa da igualdade. Pelo contrário, a equidade requer desigualdade. A equidade é a arte da desigualdade. Mas em sua base também estão uma consciência viva e um amor vivo ao homem. O dom especial da equidade existe em todas as pessoas. Este dom pressupõe que a pessoa tenha um coração gentil e amoroso, um coração que não queira aumentar a quantidade de injustiçados, sofridos e amargurados. Este dom também pressupõe uma vigilância viva, uma sensibilidade afiada para com a individualidade humana e a capacidade de sentir e entender os outros. O homem justo rejeita a interpretação mecânica das pessoas segundo características abstratas.

Eis porque a equidade é um empreendimento criativo: ela contempla a vida por meio do coração, captura a singularidade de cada pessoa e procura avaliá-la com exatidão e lidar cm ela com objetividade. A equidade é atenta, cuidadosa, social; ela porta um senso de moderação; ela é inclinada à simpatia, a condescendência delicada e ao perdão.

É tolice buscar a equidade no ódio, pois o ódio é invejoso; ele não leva à equidade, mas a igualdade universal. É tolice buscar a justiça na revolução, pois a revolução excita-se no ódio e na vingança; o ódio é cego, é destrutivo, é o inimigo da justa desigualdade, e não presta honras às “habilidades superiores” [Dostoyevsky].

A equidade não pode ser delimitada a regras gerais ou a instituições governamentais. A equidade não é um “sistema”, mas uma entidade viva. Ela deve ser imaginada na forma de um fluxo de amor vivo e objetivo pelas pessoas. Somente tal amor pode resolver o problema: ele produzirá uma equidade viva, recriará tudo na vida e no relacionamento das pessoas, e criará uma nova desigualdade objetiva.

Ódio

Experimentamos a antipatia de outra pessoa pela primeira vez quando sentimos que nossa energia vital não é aceita por ela: sentimos que nossa energia é repelida, até mesmo terminantemente recusada. Só isso já é incômodo e doloroso. Essa situação pode nos levar ao desânimo ou mesmo a um estado de confusão. Uma estranha sensação de fracasso ou inaptidão pessoal, até mesmo de irrelevância de nossa existência, desperta na alma; o desejo de comunhão é interrompido, nossa energia perde o poder de irradiar-se, ficamos sem palavras, o coração deseja retirar-se. Pessoas retraídas e antissociais frequentemente nos inspiram este sentimento nas pessoas abertas e sociáveis mesmo quando não há nenhuma antipatia que seja digna de nota. Mas uma vez que a antipatia nasça ela pode desenvolver-se em animosidade, transformar-se em repulsa e aprofundar-se em ódio; isso pode acontecer a despeito se fizermos algo concreto para merecer tal ódio...

Claro, não podemos controlar os sentimentos das outras pessoas; sinceramente, não é nada simples encontrar o caminho seguro e a força espiritual necessária para solucionar esta formidável tarefa... Mas de uma coisa tenho certeza: este fogo obscuro tem de ser extinto. Ela precisa perdoar-me e fazer as pazes comigo. Ela não apenas deve “conceder-me vida” e chegar a um acordo com minha existência; ela precisa sentir felicidade porque eu vivo nesta terra e me dar a chance de ser feliz por sua existência. Pois, como dizia o grande sábio ortodoxo Serafim de Sarov, “O homem é a maior alegria do homem”...

Antes de mais nada, preciso aprender e entender como – e por que – mereço este ódio. Será que tenho alguma culpa pelo fato de que agora ambos estamos sofrendo – ele, o odiador, e eu, o odiado? Talvez eu tenha inconscientemente cutucado uma antiga ferida ainda não cicatrizada em seu coração, fazendo com que todo o legado acumulado de seu passado, suas velhas angústias, seus agravos não perdoados, colapsassem na minha cabeça. Neste caso, somente a compaixão pode ajudar – um entendimento amoroso de sua alma. Mas, talvez sem que tenha notado, eu o tenha infectado com meu próprio ódio oculto, que vive esquecido em mim, que tenha emanado de mim sem meu consentimento. Neste caso, tenho que primeiramente limpar minha alma e transformar os traços de ódio esquecido em amor. E mesmo que minha parte da culpa seja completamente insignificante e impremeditada, devo começar por aceitá-la e eliminá-la, mesmo que isto me obrigue – com sinceridade e amor – a obter o perdão dela.

Em segundo lugar, devo perdoar-lhe por seu ódio. Não devo, não me atrevo, a responder seus raios negros com raios igualmente negros de desprezo e repulsa. Não devo evitar encontrá-lo; não tenho o direito de fugir. Devo encarar sua face odiosa frente a frente e dar-lhe a correta resposta espiritual com meu coração e minha vontade. A partir daí, responderei o raio do seu ódio com um feixe branco – claro, humilde, bondoso, indulgente e perdoável. “Por favor, aceite minha existência da mesma maneira que eu aceito a sua – com amor”. De fato, com amor, pois perdoar não é apenas não buscar vingança, não apenas curar a ferida, mas amar o perdoado.

Isso tudo provavelmente será difícil de cumprir; seu ódio muito provavelmente vai mostrar-se relutante, e não vai querer se transformar ou descansar tão rapidamente assim. Mas serei insistente e manterei minha fé na vitória; é minha garantia de sucesso. O ódio é curado pelo amor, somente pelo amor. Um raio de amor verdadeiro pacifica os animais selvagens. Eis o que nos ensinam as vidas dos santos – não se trata de fantasia ou lenda de fiéis.

Culpa

Como é doloroso e às vezes incrivelmente difícil determinar e aceitar nossa própria culpa. “Amigos e inimigos, natureza e homem, pais e educadores, a concorrência infeliz de circunstâncias e condições, ‘sociedade’ e ‘influência’, céu e inferno, mas eu não! E isso posso provar – tenho que provar – porque disso não pode restar nenhuma dúvida”.

Oh, essa “necessidade” traiçoeira por auto-justificação. Me consome por completo. Essa caça por evidências...por que preciso disso se acredito tanto que “essa história não tem nada a ver comigo?” Quem está exigindo de mim essas evidências? Quem suspeita de mim senão eu mesmo? Isso somente atesta o fato de que nas profundezas da minha alma me considero culpado; certa voz silenciosa secretamente repete, dentro de mim, e não me deixa em paz...

E, de repente, influenciado por tais percepções inesperadas, paro de fugir da minha própria culpa. Minha covarde ansiedade cessa. Mas estou pronto: que meu acusador se pronuncie.

Sim, coragem é necessária para investigar suas próprias afrontas sem buscar libertar-se disso através da fuga. Por que você deve procurar examinar todas as suas ações pelo melhor e mais nobre lado? Que ingenuidade! De onde vem esta necessidade para apresentar-se – a si mesmo e aos demais – como uma pessoa justa, que nunca comete erros?

Em primeiro lugar, tenho que reconhecer o fato de que todas as pessoas, sem exceção, enquanto vivem nesta terra, compartilham da mesma culpa deste mundo: pelo desejo ou falta dela, mas também pela falta de vontade, pela falta de inclinação para fazer escolhas intencionais; ação e inação, mas também de mau grado ou “lavar as mãos” como Pilatos; sentimentos e pensamentos, mas também uma apatia de madeira e uma indiferença rígida.

Todo pensamento maligno, toda emoção odiosa, todo desejo malicioso, tudo isso invariavelmente envenena o ar espiritual do mundo e o espalha ainda mais.

Eis porque não existem pessoas “sem culpa” ou “inocentes”. Há somente aquelas que conhecem sua culpa, que são capazes de carregar sua própria culpa e a porção de culpa do mundo, e aquelas que, em sua cegueira, não sabem disso, mas tentam imaginar e apresentar aos outros sua inocência imaginária.

O primeiro tipo são pessoas que têm coragem e humildade suficientes para não fecharem seus olhos às suas próprias culpas. Elas são as portadores da culpa do mundo, purificando o mundo e fortalecendo seu tecido espiritual.

O segundo tipo são os eternos fugitivos, os que “se salvam” desesperadamente de sua culpa, pois sua culpa os persegue como no antigo conta de Erinyes. Elas imaginam que são responsáveis somente pelas coisas que deliberada e intencionalmente realizaram em suas vidas exteriores; elas não sabem nada sobre o éter abrangente que ocupa o mundo e sua culpa mundial compartilhada na qual todos as linhas e fios se encontram entrelaçados em um todo inseparável. Elas buscam a paz em sua inocência imaginária, a qual para elas e para qualquer um é completamente inalcançável. Como raciocinam de maneira astuta e lógica, que impressionante poder de julgamento quando expõem as pessoas à sua volta, apontando suas falhas, culpando-os e estigmatizando-os! E tudo isso porque lhes apetece se auto-justificarem desta forma. Mas quando o assunto lhes compete, de repente se volvem míopes, ingênuos e estúpidos. Se soubessem o quanto ferem a si mesmos e ao mundo! Elas se apressam em provar a si mesmas que são “muito boas” e “completamente inocentes”, que não precisam mudar ou melhorar nada em si mesmos. No entanto, exatamente por causa disso, as emanações que emitem ao mundo permanecem incontroladas e impurificadas; o ar do mundo, já tão contaminado e doente, mais e mais se empapa com os venenos da vulgaridade, do ódio e da malicia emitidos por elas...

Por isso não busco a libertação por meio da fuga. Aceito minha culpa e a carrego de hoje em diante – calmamente, honestamente e resolutamente. Haverá provavelmente horas difíceis e dolorosas, mas esta dor é purificante e benéfica. Vou procurar e encontrar minha própria culpa nas ações, palavras e feitos; vou procurar mais a fundo, vou investigar as condições inexpressivas e mudas da alma, onde se inicia meu total isolamento e onde mesmo a autoconsciência não alcança. Vou procurar em toda parte: onde faltei com o amor e o perdão, onde me esqueci da expansão universal e do éter compartilhado pelo espírito; onde eu parei de servir a Deus e fazer Sua obra – ou, pelo menos, quando eu a faço de malgrado? Sem cair em confusão ou desespero, vejo toda minha vida como uma cadeia de ações e estados de ser culpados – e disso extraio mais coragem e humildade.

Conforme chego a este estado, recebo o direito de explorar a questão da culpa das outras pessoas – não para expô-las ou julgá-las, o qual desejo cada vez menos, mas para experimentar sua situação de vida e condição espiritual de tal forma que eu possa vislumbrar-me no lugar da pessoa culpada em cada ocasião, e imaginar que sua culpa era minha. Isso promove e aprofunda minha experiencia de culpa, e lentamente aprendo a portar não apenas minha fração de culpa, mas também a das outras pessoas, a carregá-la, ou seja, conquistá-la, em meu espírito através do amor.

Porém, francamente, tenho muito por trilhar... Não sei se chegarei a dominar esta arte. Talvez sim, talvez não... Mas de uma coisa tenho certeza: este é o caminho certo.

Amizade

As pessoas naturalmente “gostam” uma das outras e “desfrutam a companhia” uma das outras, mesmo hoje em dia. Mas, meu Deus, como isso é superficial, que escasso, que raso! Isso apenas significa que elas passam tempos “agradáveis” e “divertidos” juntas, que elas conseguem “agradar” umas às outras... Se descobrem uma afinidade em inclinações e gostos; se evitam chatear-se mutuamente com certo sucesso fazendo uso de suas arestas arredondadas, sem cantos, sem emitir opiniões conflitivas; se ambos sabem ouvir o tagarelar um do outro com aparência amigável, bajulando ligeiramente um ao outro e compelindo um ao outro um pouquinho – já é o suficiente. Assim se forma a tal “amizade” entre as pessoas, a qual essencialmente é composta de convenções exteriores, brincadeiras vazias, “boas maneiras” escorregadias, brincadeiras vazias e cálculos ocultos. Algumas amizades se fundam no amor comum pela fofoca ou pelo vicio mútuo de reclamar. Mas também existem as “amizades” de bajuladores, “amizades” de vaidades, “amizades” de patrocínio, “amizade” de ofensas, “amizades” de preferências e “amizades” de alcoolismo. Às vezes um dá, às vezes outro recebe – e ambos se consideram “amigos”. Uma mão lava a outra: as pessoas tocam seus negócios e afazeres juntas, sem confiarem muito umas nas outras, e ainda assim pensam que “se tornaram amigas”. Mas “amizade” também é o nome que se dá à atração passageira entre um homem e uma mulher que não se comprometem jamais, ou às vezes é apenas uma paixão romântica que, com o tempo, os separará para sempre. Todas estas “amizades” imaginárias se resumem ao fato de que as pessoas que são estranhas, ou mesmo completamente contrárias umas às outras, cruzam caminhos e temporariamente aliviam suas vidas mediante contatos rasos e auto-interessados. Elas não veem, não sabem, não amam umas às outras, e frequentemente sua amizade se despedaça tão rapidamente que é difícil dizer se algum dia chegaram a se conhecer.

Há somente uma força neste mundo capaz de conquistar a solidão humana, e esta força é o amor. Há somente um caminho possível para emergirmos da areia da vida e resistir às suas tempestades, que é a vida espiritual. E assim pois a amizade é um amor espiritual que une as pessoas, e amor espiritual que é a chama viva de Deus. Quem não conhece a chama de Deus e nunca a experimentou não entenderá o que é a verdadeira amizade, nem será capaz de recriá-la nem jamais entenderá a lealdade ou o verdadeiro sacrifício. Eis porque somente as pessoas do espírito são capazes da verdadeira amizade.

Não existe verdadeira amizade sem amor, porque é o amor que une as pessoas. A verdadeira amizade é uma união voluntária; nela a pessoa está ao mesmo tempo livre e conectada. Esta conexão não interrompe ou diminui a liberdade; pelo contrário, lhe dá vida, e esta liberdade, ao encontrar vida em unidade, conecta as pessoas em espírito.

A pessoa verdadeira porta em seu coração certo calor oculto, como se em seu interior, em secreto, queimasse um carvão.

A amizade começa quanto a faísca emitida pelo espírito entra em contato entra em contato com a salsa ardente da pessoa e por ela é aceita. Em contrapartida uma faísca é emitida em resposta à faísca aceita; tal faísca une-se à primeira e, por sua vez, inspira nova resposta. Assim se inicia uma troca de luz. A faísca nunca desaparece nas trevas do entorno. Cada uma atinge seu objetivo. O espírito regozija-se em sua mansa sinceridade.  Ele sabe que encontrará contemplação espiritual e entendimento empático.

Assim a verdadeira amizade, como o amor – mais especificamente, amor espiritual – cria o núcleo inicial desta união; algum dia, estes pequenos núcleos de fogo espiritual formarão uma grande e unificada chama de Deus, um tecido luminoso e alegre do Reino de Deus através do mundo...

É por isso que cada um de nós deve procurar a verdadeira amizade ao longo de nossas vidas, a construí-la espiritualmente e preservá-la amorosamente. Somente então descobriremos o que abrange o êxtase da verdadeira fidelidade e da tranquilidade natural do verdadeiro sacrifício.

Aprender a ouvir

Toda beleza – mesmo a beleza menor e sem sentido, assim como todos os momentos alegres da vida – tem grande e insuperável valor. Tais belezas lavam os pesares da alma; elas nos trazem o sopro leve da vida e nos dão uma pequena fração de felicidade... Podemos estar seguros de que não há um único momento leve e alegre que seja desperdiçado na vida da pessoa.

Por isso precisamos aprender a ouvir: a ouvir a natureza das coisas com respiração suspensa, a adentrar na corrente viva da natureza, a unirmos à alegria e beleza do mundo. Eis porque quem busca a natureza viva, a arte gentil e as brincadeiras alegres devem se libertar internamente e eliminar quaisquer tensões.

Mas antes que podamos nos render a impulsos lúdicos ou a experimentar a criação de uma nova beleza, precisamos desenvolver a confiança em nós mesmos. Devemos silenciar quaisquer objeções ou considerações secundárias; devemos nos atirar imediatamente, sem titubear, sem nos interromper, sem tentar ser inteligente, sem nos fazer de desamparados pelo motivo ou pretensão que for. Devemos esquecer as tarefas e objetivos pessoais, pois toda brincadeira tem seu próprio objetivo subjetivo, sua própria tarefa individual. Devemos nos entregar a este objetivo – quanto mais ingênuo, espontâneo e pleno, melhor.

Tudo o que nos resta é desfrutar com gratidão, e, em meio a tal desfrute, encontrar a cura.

Privação

A vida é uma batalha que precisamos vencer; o vitorioso é aquele que aprende a personificar a bondade e a justiça. Claro, toda sorte de tentações e perigos surgirá, e cada um desses perigos representa, em essência, uma ameaça. Se examinarmos essas ameaças constataremos que todas elas são virtualmente a mesma: todos são ameaças de perda. Isso porque a chamada “humilhação” é também uma perda de liberdade, perda do reconhecimento alheio, perda de sucesso financeiro; essas privações podem, claro, tornar as coisas mais difíceis. Nós jamais devemos aceitar a perda de nossa verdadeira dignidade ou respeito próprio, no entanto não devemos levar ao coração a ausência de reconhecimento alheio, ou suas calúnias e difamações. Temos de saber como seguir a vida sem “sucesso”, “estima” ou a chamada “glória”.

Somos ameaçados por privações ao longo de toda a vida. Nossas vidas são impregnadas com pensamentos e preocupações sobre possíveis perdas, acidentes, humilhações e pobreza. Mas é isso que constitui a escola da vida; nisto reside nossa preparação para o sucesso e o treinamento para a vitória. Essa escola requer que derrotemos espiritualmente as ameaças e as privações. A habilidade de lidar com leveza nossas preocupações, de renunciar facilmente àquilo que nos falta, constitui a arte de viver. Nenhuma perda ou privação deve perturbar o equilíbrio da alma.

A arte de superar a privação se efetua com base em duas condições. Em primeiro lugar, a pessoa deve ter na vida determinado valor superior, exigente, ao qual ela verdadeiramente ame acima de todas as coisas, e que realmente mereça seu amor. Tal é o sol do amor santo e santificante, à luz do qual nenhuma privação parecerá difícil, ou nenhuma ameaça parecerá aterrorizante. Em segundo lugar, a pessoa deve desenvolver a capacidade de concentrar sua atenção, amor, vontade e imaginação – não naquilo que lhe falta, que lhe foi privado – mas naquilo que lhe é dado. Quem sempre pensa no que lhe falta estará sempre faminto, invejoso e carregado de ódio. Os discípulos de Antonio, o Grande, certa vez lhe perguntaram como ele conseguia ver o Senhor Deus. Ele respondeu da seguinte maneira: “De manhã cedo, quando saio de minha cabana de barro em direção ao deserto, vejo o sol nascer, ouço os pássaros cantarem, uma brisa suave sopra em meu rosto – e meu coração vê o Senhor e canta de alegria”.

O que isso quer dizer é que a privação nos impele à contemplação dedicada ao mundo, como se uma voz mística estivesse nos dizendo: “O que já lhe foi dado esconde a verdadeira riqueza; sinta-a, domine-a e renuncie tudo o mais que não lhe foi dado, pois não você não precisa disso...” Em todas as coisas terrenas há uma medida de profundidade. Nesta profundidade se encontra a porta para a sabedoria e para a bem-aventurança.

Saúde

Como é tedioso estar sempre pensando em sua própria saúde – eternamente se prevenir, ter medo de tudo, evitar fazer as coisas pensando “será que isso pode me machucar?” A vida inteira se transforma em um mar de pavor e horror. Você se transforma em seu próprio guarda prisional.

A poeira do mundo

Toda trivialidade insignificante de nossa existência – toda vicissitude, toda circunstancia elementar e vazia da vida que atinge certo peso e “significância” a nossos olhos, a qual na verdade é desprovida de qualquer propósito superior; todo fator oco e vagabundo da vida que pede nossa atenção, toda banalidade que pleiteia nosso tempo e dedicação, que irrita, agita, desaponta, distrai, exaure e drena – tudo isso é poeira, a própria malfadada e lamentável poeira da vida...

Oculta ao longo dos caminhos da vida, esta astuta poeira se encontra por todos os lados; melhor não a perturbar, melhor não a sacudir ao vento. Ela penetra silenciosamente nos aposentos interiores da nossa alma e se assenta em tudo o que ali se encontra. Eis porque devemos ser capazes de limpá-la de nosso espaço interior – e se não desenvolvermos esta habilidade estaremos sob risco de sermos sufocados por ela: seus pensamentos ”combinarão“ conceitos abstratos (poeira lógica); sua imaginação infundada brincará subjetivamente com imagens (poeira estética); sua vontade se desconectará de suas raízes sacras e se tornará cínica, sedenta de poder e cruel (poeira política); e seu coração frio e amortecido esquecerá como amar e estará coberto com a poeira da vida moralmente indiferente.

Riquezas e posses

A resposta não está em negar ou proibir posses; isso seria tolice, inatural e danoso. Em vez disso, devemos controlar nossas posses, não as eliminar, tornando-nos assim livres delas. Esta liberdade não pode vir das outras pessoas; as devemos pleitear nós mesmos, devemos libertar nossas almas. Se é fácil para mim pensar nas minhas posses, então sou livre delas. Sou eu quem determina o destino de cada uma das minhas posses, e o faço facilmente: meu destino não depende do que eu tenho; não sou um cachorro acorrentado a minhas posses nem sou um guarda que os vigia de noite; não sou um mendigo que pede dinheiro a cada ocasião e o esconde na meia. É vergonhoso temer por suas posses e ainda mais vergonhoso invejar aqueles que são mais ricos que você. Devemos viver de uma maneira completamente diferente: devemos sacar com facilidade de nossa conta bancária o que quer que seja necessário, e dar com alegria onde quer que o coração nos mova a dar, provendo a quem lhe falta, sacrificando alegremente sem pesar, esperando nada em troca daquele que não pode dar, e de maneira fraterna, sem cobrar juros. Mais importante ainda, nunca vacilar por suas posses: “O Senhor o deu, e o Senhor o tomou: bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1:21). Aquele que vacila por sua riqueza se rebaixa e perde sua dignidade, e é melhor que uma pessoa modesta com pensamentos modestos que não tenha nenhuma riqueza...

Idade

Secretamente, de soslaio, nos perguntamos o que os outros pensam de nós, se gostam ou não gostam de nós, se nos aceitam, e quantos anos acham que temos.

Aquele cujo coração canta é eternamente jovem, mas aquele cujo coração nunca cantou nasceu velho. A verdadeira juventude é um atributo do espírito e sua força, sua criatividade. Aonde quer que o espírito se mova e desabroche, onde quer que o coração cante – lá, a velhice é somente uma indelicadeza do tempo e uma realidade fantasma. Infelizmente as pessoas não sabem muito disso. Elas não têm força espiritual para determinar sua idade, e lhes falta a capacidade de permanecer espiritualmente jovens. Por esta razão elas facilmente se rendem ao estado de seus corpos, ansiosamente contam os anos de suas vidas, observando em estado de desamparo seus cabelos rarearem, tentando esconder sua verdadeira idade de todos, ofendendo-se com perguntas indelicadas e mantendo sua data de nascimento em segredo. No final das contas, suas glândulas se tornam a coisa mais importante de suas vidas... Frequentemente nos encontramos infelizes por causa de nossa miopia e ingenuidade; não entendemos que a espiritualidade é a chave para a verdadeira felicidade...

Que venha a velhice: não é ela que ameaça a juventude. É possível ser velho e jovem ao mesmo tempo. Devemos superar espiritualmente nossa idade e torná-la um detalhe irrelevante de nossa existência.

Fácil falar... Mas como fazer isso?

Eis como.

Primeiramente, devemos calcular nossa idade não de acordo com as condições do corpo, mas de acordo com as condições do espírito. Em segundo lugar, em cada fase da vida, devemos sentir prazer em suas alegrias mais nobres e resolver as tarefas espirituais que se apresentam em cada fase específica. Em terceiro lugar, em qualquer idade, devemos viver pelas coisas que não amadurecem e não envelhecem – as coisas que existiram desde o princípio dos tempos e que existirão para o resto da vida. Tudo isso é parte da arte de viver.

Isso significa viver a serviço do eterno – em amor, em contemplação espiritual, e imerso na tapeçaria divina do mundo – então sua vida será abençoada e alegre... Em outras palavras, significa rejubilar-se no sopro de Deus quando criança; quando jovem, contemplar a centelha divina no ser amado; ao entrar na vida, já perceber por Quem fomos criados – e para quê. Quando homem maduro, convencer-se firmemente Quem e o que reivindica sua lealdade. Sua sabedoria, na vida avançada, será imbuída de amor espiritual, e iluminará as pessoas em sua vida como um farol espiritual. Quem cruzar com os raios de sua luz sentirá sua fonte sobrenatural. E uma vez que deixe este mundo, entrará em paz e alegria no mundo eterno ao qual seus pensamentos já estavam conectados em toda sua vida...

Se vivermos desta maneira, então nossa vida se transformará em um jardim florido. A velhice será superada, a velhice será exaltada... E não haverá razão para resmungar ou reclamar.

Oração

Eis algo que ocorre frequentemente: quando uma pessoa se encontra privada de algo, lhe dói observar quem o tenha. “Ninguém deveria ter o que eu não tenho”. Os benefícios dos outros a ferroam e a ofendem; é raro que alguém “perdoe” os outros por seus dons.

O que um cego pode dizer sobre as cores de uma bela pintura ou de uma delicada flor? Nada! E ainda assim muita gente conclui que a pintura não existe ou que a flor é uma alucinação... Quem acreditaria no surdo que anuncia que não existe música, que tudo não passa de “ficção de hipócritas”? A pessoa privada de seu olho e ouvido espirituais não tem direito de versar sobre assuntos espirituais. A pessoa de coração insensível ou percepção espiritual amortecida não sabe nada sobre o amor, pois como ela seria capaz de perceber o amor de Deus?

Que descabido, que ingênuo, que primitivo imaginar que as únicas realidades são aquelas acessíveis através dos cinco sentidos.

O retorno

Em meio às adversidades e sofrimentos de nosso tempo, às tentações que nos invadem e aos temores que nos cercam, aprendemos de novo a rezar. Pois estamos perdendo este que é o maior dos dons e simplesmente esquecemos esta habilidade tão maravilhosa. E, apesar disso, sem a oração, o homem se encontra distante de Deus, cortado de fonte da verdadeira vida: ele se vê rendido à origem do mal e não tem forças para lutar contra ele.

A vida flui por e através de nós, como numa corrente de todo tipo possível de sentimentos, desejos e paixões – uma multidão de preocupações e ocupações, uma nuvem de poeira que consiste em conteúdos fragmentados e insignificantes. Nos perdemos neste fluxo, nesta neblina, e perdemos o sentido de nossas vidas.

Precisamos apartar minutos, ou mesmo horas, para respirar e contemplar sem restrições, de um tempo no qual nossas preocupações são silenciadas, no qual tudo que constitui nossa vida cotidiana seja esquecido e nos libertemos de tudo o que seja banal, demasiado humano e vulgar.

Se eu for capaz de me afastar do conteúdo cotidiano e caótica da minha vida, então meu coração e minha vontade se abrirão às melhores e mais exaltadas coisas.

Contudo, não imaginemos que podemos apelar ao Deus do amor e da luz em cada um de nossos afazeres e esquemas mundanos, pois nossas ações terrenas são às vezes cruas e egoístas, frequentemente nefastas, insidiosas e destrutivas. Não podemos rogar ao Deus da luz nas trevas dos nossos afazeres frios. Não devemos esperar ajuda do Deus do amor em questões predatórias e odiosas. A oração se justifica e se eleva somente na batalha pelo bem.

A primeira ajuda que posso suplicar é iluminar minha alma em questões de escolha e serviço: que me seja dada a capacidade de discernir fielmente entre o bem e o mal, e desejar infalivelmente a bondade e a perfeição; que eu me seja dada a pura contemplação, insight confiável, percepção verdadeira e decisão firme.

Quem transmite orações que não cumpram tais requisitos não rezam a Deus, mas a seu senhor, o diabo.

Não há oração que deva excluir meus próprios esforços ou que os considere inúteis: meu amor, meu desejo, meu esforço e minha luta devem todos estar a serviço da causa pela qual rezo. Se a causa for realmente boa e verdadeira aos olhos de Deus, então devo dedicar a ela ainda mais esforços – a ela servir, por ela batalhar, quaisquer ameaças desafiar, aos perigos se opor.

Se estou rezando por mim, por minha vida e bem-estar, então posso estar seguro de que estou trilhando o caminho verdadeiro de minha vida. A oração que brota de uma consciência pura pode fazer maravilhas.

As aflições do mundo

Enquanto a pessoa se mantiver presa e cega a seus próprios sofrimentos pessoais, quando de maneira desesperada não vê nenhuma saída por conta de sua cegueira, ela se deixa derrotar por sua natureza bruta e não consegue encontrar o caminho a Deus. Ela deve sair do seu próprio eu em espírito, elevar-se e enxergar o sofrimento do próximo, de todas as pessoas, de todas as coisas criadas. Em princípio ficará horrorizada, e este horror ante aos tormentos do mundo levará à indignação, a protestos e talvez à rebeldia. Estes humores e sentimentos não a levarão a Deus, mas a afastarão de Deus, e a levará até mesmo contra Deus.

A pessoa padece pelo tormento alheio, simpatiza com o outro e começa a demonstrar uma participação viva e construtiva. Ela se esquece de si mesma e passa a viver em função do sofrimento alheio e, assim, se livra de conviver com suas próprias dores e aflições. Sua própria personalidade não mais a acorrenta nem a cega; em seu lugar, a personalidade da outra pessoa começa a invadi-la e preencher sua vida e alma. Se a pessoa não notar esta situação a tempo para derrotar esta nova prisão, então em breve se tornará prisioneiro dos tormentos de outra criatura. Enquanto a comiseração detiver a palavra final e se portar como a expressão mais alta de seu amor, o sofrimento de qualquer ser humano lhe parecerá uma tragédia ou infelicidade, e passará assim a ver o “mal” existente em cada tormento da criatura. Ela começa a acreditar que o propósito mais importante da vida está em libertar a humanidade de seu sofrimento. Ela não suporta ver um ser sofrendo, e a batalha contra o sofrimento se torna sua principal ocupação. Uma vida sem mazelas lhe parecerá o propósito terreno mais importante.

Isto significa que a pessoa que sente pena descobriu seu próximo, e isso é muito bom. Mas ela ainda não descobriu o sentido do sofrimento; o propósito da humanidade ainda não lhe foi revelado. Seu amor pelo próximo se estende não ao “anjo” oculto nas profundezas de sua alma que sofre e luta por libertação, mas à criatura que suspira e chora; ela procura não ajudar o “anjo”, mas servir à criatura; seu objetivo não é que o espírito sofredor seja purificado e emerja vitorioso, mas aliviar o tormento do ser criado. É por isso que a pessoa que sente pena ainda se encontra atormentada pelo medo e pelo horror, por isso ela ainda não aceita o sofrimento e não compreende nem seu sentido, nem sua graça: ela ainda tem medo da dor e não sabe nada de sua natureza iluminadora nem dos frutos de sua derrota. E por isso as aflições do mundo não a levam a Deus: ela segue presa aos confins da humanidade e do sentimentalismo, intocada pelos raios iluminadores de Deus.

O amor somente liberta quando a pessoa vê um filho de Deus naquele que sofre, vê que está sendo derrotado e está sendo purificado por este sofrimento. Não deveríamos ficar excessivamente horrorizados à vista de uma criatura que sofre. Não convém fugir da dor e do sofrimento a qualquer custo. Devemos perceber a necessidade do sofrimento e captar o sentido universal de tudo isso.

Ao encontrar-se afastada (até mesmo apartada) de Deus, a criatura humana deve sofrer. Este sofrimento é um chamamento a Deus. Eis porque o sofrimento existe; aí reside seu sentido, seu propósito último. As plantas e os animais estão sujeitos ao sofrimento básico universal em sua potência mais fraca, e por isso são incapazes de transformá-la em luta e iluminação. Mas o homem tem um chamado superior: ele tem de aceitar o sofrimento dado como algo “enviado”, como um chamado à purificação, como uma batalha pessoal em prol da iluminação desta pessoa.

Os tormentos da criatura são terríveis somente se a pessoa não compreende o propósito maior deste sofrimento nem descobre seu caminho de ascensão: ela enxerga somente agonia sem sentido.

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Há dias e momentos na vida quando a pessoa de repente se encontra diante da morte. São momentos terríveis; são dias abençoados. Nestes momentos, a morte, como um emissário divino, julga nossa vida. Mas quando o perigo da morte passa e chega a paz e a quietude, nos damos conta que nossa vida inteira foi revirada e peneirada, e chegamos a uma das conclusões mais importantes: nem tudo pelo qual vivemos é digno da dedicação de nossa vida. Somente se as coisas e ações que constituem nossas vidas não temem nem a morte nem a proximidade da morte elas podem ser consideradas plenamente dignas. Tudo o que é digno de nossa escolha e preferência, de nosso amor e serviço, mesmo na hora de nossa morte, é maravilhoso e apropriado. As coisas para as quais podemos e devemos entregar nossas vidas são as coisas dignas de amar e servir. Aquilo pelo qual não vale a pena morrer não vale a pena viver.

Fonte: Ivan Ilyin, The Singing Heart, Orthodox Christian Translation Society, Memphis, TN, EUA, 2016.