"...o sentimental é a pessoa que quer ter o luxo de ter uma emoção sem pagar por ela".
Oscar Wilde
"Travaillon donc à bien penser. Voilà le principe de la morale". [Esforcemo-nos,portanto, para pensar bem. Eis o princípio da moral].
Pascal
Uma importante característica do tipo de sentimentalismo
para o qual desejo chamar atenção é seu caráter público. Não mais basta derramar uma lágrima em particular, longe
da vista alheia. É necessário fazê-lo, ou seu equivalente moderno, à plena
visão do público. Suspeito, ainda que não possa provar, que isso seja em parte
consequência de viver num mundo, incluindo um mundo mental, tão amplamente
saturado por produtos da mídia de massa. Nesse mundo, aquilo que é feito ou que
acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no
sentido mais pleno possível. Não é real no sentido de que um reality show é real.
A expressão pública do sentimentalismo tem consequências
importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a
testemunham. Essa resposta deve, de maneira geral, ser simpática e afirmativa,
a menos que a testemunha esteja preparada para correr o risco de um confronto
com a pessoa sentimental e ser acusada de dureza de coração ou de pura e
simples crueldade. Há, portanto, algo coercitivo ou intimidador em exibições
públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar.
Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições.
Não há muito sentido em fazer algo em público se, de fato, ninguém repara. Isso
significa que exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam
necessárias, se se pretende que elas compitam com outras e sejam notadas. Os
tributos florais ficam maiores; a profundidade de um sentimento é medida pelo
tamanho do buquê. O que conta é a veemência e o volume expressivo.
Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não
coagem apenas os transeuntes ocasionais, como que os sugando para um fétido
pântano emocional, mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas,
começam a afetar as políticas públicas. O sentimentalismo permite que o governo
jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira
determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa.
Assim, há um consenso universal de que a expressão da emoção
deveria ser consoante tanto com a própria emoção quanto com a situação social,
ainda que não haja acordo quanto ao ponto preciso em que essa expressão se
torna excessiva. Isso em si não deveria nos preocupar, nem lançar dúvidas sobre
a ideia de uma expressão excessiva da emoção, assim como o fato de não haver um
consenso universal a respeito do que constitui um homem alto não deve lançar
dúvidas sobre a existência de homens altos.
Sobre o razoável pressuposto de que a emoção está sob o
controle consciente, o grau em que ela é expressa é, portanto, uma questão
moral. Aquilo que é permissível e até louvável entre pessoas íntimas e
confidentes é repreensível entre estranhos. De fato, o desejo ou a exigência de
que todas as emoções sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em
todos os momentos destrói a possibilidade mesma de intimidade. Se o mundo
inteiro é seu confidente, então ninguém é. A distinção entre o privado e o
público é abolida, e a vida, por conseguinte, fica mais rasa.
Mas não é só a expressão da emoção que deve ser
disciplinada, é a própria emoção que deve ser sujeita à disciplina.
Perguntar quanta emoção é demais – na expectativa de que a
resposta seja que nunca podemos dizer e, portanto, que nunca pode haver emoção
demais – presume uma teoria quase hidráulica. Isso equivale a dizer que uma
pessoa tem dentro de si certa quantidade de emoção, que se acumula (e a pessoa
não controla a quantidade), e que, no que diz respeito à expressão, ela deve
expressar-se de algum jeito – para dentro, ou, o que seria preferível segundo
as maneiras modernas de pensar, para fora.
Na medida em que os homens diferem biologicamente pelo
temperamento, seja pela operação da herança genética ou de alguma outra
variável biológica, a teoria hidráulica contém um elemento de verdade. Alguns,
sem dúvida, nascem fleumáticos, ao passo que outros nascem coléricos. Contudo,
a ideia de que homens são, na questão das emoções que sentem, meros
prisioneiros de seus dotes naturais é muito simplista e redutora. O apetite
cresce com a alimentação; a emoção também cresce com sua expressão. Em outras
palavras, o caráter de um homem é em parte obra dele mesmo, e aquilo que de
início demanda esforço e autocontrole acaba se tornando uma disposição. Nem a
emoção nem a expressão da emoção se justificam em si mesmas, ainda que às vezes
se creia que sim, crença essa que é simplisticamente sentimental.
Sem dúvida, todos nós caímos no sentimentalismo às vezes sem
que ninguém sofra nenhum grande mal. Talvez faça até bem. Mas aquilo que é
inofensivo em privado não é necessariamente inofensivo, muito menos benéfico,
em público; e aqueles que acham que sua conduta privada e pública deveria ser
sempre a mesma, por medo de na diferenciação introduzir a hipocrisia, têm uma
visão da existência humana que carece de sutiliza, de ironia e, sobretudo, de
realismo.
O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento.
Talvez ela seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento
de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e
ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial
da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e
indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo
tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade.
A necessidade de julgamento implica que nossa situação no
mundo, assim com a de outras pessoas, é quase sempre incerta e ambígua, e que
nunca se pode fugir da possibilidade de erro. Em nome de uma vida mental
quieta, portanto, queremos simplicidade, não complexidade: o bem deveria ser
inteiramente bom, o mal inteiramente mau; o belo inteiramente belo, e o feio
inteiramente feio; o imaculado inteiramente imaculado, e o estragado
inteiramente estragado; e assim por diante.
Hoje se considera que controlar a expressão das emoções para
não ser inconveniente nem causar constrangimentos aos outros, e em nome do
respeito próprio, é algo que está longe de ser admirável. Pelo contrário, é
algo considerado psicologicamente nocivo ao eu, e uma traição para com os
outros.
É psicologicamente nocivo ao eu porque a repressão
inevitavelmente resulta em efeitos prejudiciais depois: afinal, a emoção é um
fluido que, como todos os fluidos, não pode ser comprimido e, portanto, vai
manifestar-se de algum jeito. Por exemplo, aqueles que não fazemo devido luto
por um ente querido que se perdeu, isto é, que não se expressam com soluços,
lágrimas e choros, ficarão seriamente deprimidos um pouco depois na vida; e
aqueles que não expressam sua raiva têm mais chance de sofrer ataques do
coração ou de ter câncer. A agressão não expressada contra os outros
inevitavelmente se transforma em agressão direcionada para si mesmo.
Ocultar as próprias emoções é traiçoeiro com os outros
porque implica uma desconfiança deles, uma falta de confiança em sua capacidade
de compaixão. O ocultamento é furtivo, dissimulado, desonesto e culpado; o
homem bom nada tem a esconder, sua vida é um livro totalmente aberto. Na
verdade, quanto melhor ele for, mais aberto ele é: idealmente, devíamos viver
num mundo de pleno fluxo de consciência, em que dizemos sem reservas tudo
aquilo que pensamos.
A exigência de que a vida seja vivida assim abertamente é
impossível. A maioria de nós provavelmente seria linchada em minutos se
decidíssemos expressar em público cada ideia que nos vem à mente. Porém, só
porque uma demanda ou um ideal é impossível de ser posto em prática, isso não
significa que não tenha influência ou importância. A expectativa de que as
pessoas expressem suas emoções ou enfrentem o risco de que não acreditem que
elas têm emoções ou enfrentem o risco de que não acreditem que elas têm emoções
na verdade inibe o exercício da imaginação, e toda faculdade que não é usada
logo se atrofia. Por que fazer um esforço para imaginar quando se espera que
tudo seja explícito? Porém, como a vida não pode ser vivida com tudo
explicitado, isso significa que nossas simpatia e empatia por outras pessoas
diminuem com a expressão da emoção em vez de aumentar – ao menos quando ela se
torna excessivamente rotineira ou extravagante. Um homem que exclama “Caramba!”
uma vez na vida transmite mais com essa palavra do que um homem que use
continuamente expressões muito mais vulgares. Como todas as moedas, a da
expressão emocional pode ser inflada e depreciada; e, outra vez, como no caso
da moeda, o que é ruim afasta o bom.
É essencialmente tirânica a expectativa, que chega à
exigência histérica, de que as pessoas expressem suas emoções em público após
uma experiência traumática. Ela não reconhece que as pessoas são, por natureza,
diferentes umas das outras; de acordo com essa exigência, todos devem
conformar-se com um único padrão de conduta ou enfrentar o risco de serem considerados
desumanos, esnobes ou emproados.
A expressão pública de uma emoção profunda, ou de uma emoção
supostamente profunda, é intrinsecamente coercitiva. Isso não equivale a dizer
que ela nunca é adequada, mas apenas a dizer que há a questão da adequação.
Quando alguém expressa uma emoção profunda, ou quando uma emoção bem menos
forte é expressa en masse, espera-se
que todo observador tenha algum tipo de participação ou de reação. É isso que
se espera. Normalmente, tentamos consolar aquele que julgamos ter boas razões
para seu pesar manifesto; congratulamos aquele que está alegre por ter recebido
excelentes notícias. Quanto mais próxima for nossa relação com a pessoa que
expressa a emoção forte, mais próxima de sua emoção costuma ser nossa própria reação,
ainda que haja circunstâncias excepcionais em que não seja assim. Se permanecermos como pedra diante de uma
pessoa num estado de grande emoção que devidamente julgamos ser genuína, e não
damos absolutamente nenhum sinal de nos comovermos com ela, seremos suspeitos
de não ter coração.
É lugar-comum afirmar que o sofrimento é intrinsecamente
subjetivo. Em outras palavras, sua situação é abominável se você disser que é. À
primeira vista, essa doutrina pode parecer profundamente imaginativa e
compassiva, mas a realidade é bem diversa: ela é, ou pelo menos pode ser, uma
máscara para a mais completa indiferença para com o sofrimento alheio. Ela dá a
entender que todo sofrimento deve ser considerado a partir da própria estimativa
do sofredor, o que significa que sofre mais quem expressa o sofrimento com mais
força ou, pelo menos, com mais veemência. Não importa qual seja a origem do
sofrimento. Se não podemos julgar a afirmação de sofrimento de uma pessoa contrastando-a
com sua situação, comparando-a, por exemplo, com a situação de outra porção da
humanidade, então não deixamos nada para a imaginação e não precisamos dar um
salto de empatia: baseamo-nos puramente naquilo que é declarado. Não temos
qualquer noção do que seja sofrer em silêncio; e, ao mesmo tempo, somos
obrigados a tomar parte na autopiedade de todo mundo. Mal chegaria a surpreender
se, a fim de atrair a atenção de nossa simpatia, as pessoas se sintam obrigadas
a declarar sofrimentos inauditos, mesmo a partir das frustrações e
desapontamentos mais banais e ordinários – e, na verdade, inevitáveis, que são
a consequência da existência humana. Aqueles que em voz alta declaram sofrer
muito por razões triviais acabam sofrendo mesmo. A imaginação alinha a
realidade. Ademais, a apropriação do sofrimento alheio para ampliar a escala e
a importância do sofrimento próprio é hoje um lugar-comum. É uma tendência
internacional: a desonestidade emocional não conhece fronteiras.
Quando reivindicações falsas da condição de vítima se tornam
frequentes, elas acabam servindo para reduzir a simpatia por aqueles que
realmente sofreram e para induzir um estado de cinismo.
Por fim, cabe dizer que o desejo ou a ânsia de se
transformar numa vítima tornou-se tão grande que hoje as pessoas afirmam ser
vítimas de seu próprio mau comportamento. Como todo acontecimento é causado por
algo, segue-se que todo comportamento que leva a consequências infelizes ou
indesejadas deve ter uma causa; e, como uma escolha é também um acontecimento,
ela também deve ter uma causa. Porém, como ninguém sabe a origem de suas
próprias escolhas, todos são vítimas de circunstâncias além do próprio
controle. Não é preciso dizer que essa lógica se aplica apenas ao que precisa
ser justificado, e não apenas explicado. O sofrimento se tornou a marca da
condição de vítima, não importando sua origem. Não se faz qualquer distinção
entre o sofrimento que é autoinfligido e aquele que é inteiramente fortuito (e
muito menos entre todas as sutis gradações intervenientes). Fazer a distinção
seria julgar, o que se julga a pior
coisa que se pode fazer, e por isso ninguém faz julgamentos dessa natureza.
A sugestão de que vítimas de comportamentos maldosos às
vezes são cúmplices dele parece cruel a muitas pessoas, quando na verdade é
sentimental ou aviltante não reconhecer isso. Esse não reconhecimento
transforma adultos em bonecos, em meros simulacros de seres humanos, sem
pensamentos ou atos próprios, sugerindo que eles nada podem fazer para ajudar a
si mesmos, e dá poderes ilimitados àqueles que afirmam, no mais das vezes
falsamente, serem seus protetores e salvadores. E, estranhamente, a recusa de
ver o papel que as pessoas desempenham em sua própria ruína leva, na prática, a
uma total insensibilidade e indiferença a seu sofrimento. Contudo, o hábito de evitar
o juízo moral é, em todo caso, a máscara da indiferença e da insensibilidade. É
uma impossibilidade psicológica ser igualmente compassivo com todos os
sofredores do mundo, e a exigência de que o sejamos é, na verdade, a exigência
de que não o sejamos com ninguém.
A desonestidade
emocional na criação dos filhos
Será que há alguma razão inteligível para que as crianças e
seus pais, que, pelos padrões de todas as gerações anteriores, gozam de
excelentes condições de saúde física e de acesso a fontes jamais concebidas de
conhecimento e de entretenimento, estejam tão ansiosas, agressivas e violentas?
Há sim, e muitas delas têm sua origem no sentimentalismo, o culto do
sentimento.
Os românticos enfatizavam a inocência e a bondade intrínseca
das crianças, em contraste com a degradação moral dos adultos. Assim, o jeito
de criar adultos melhores, e de assegurar que essa degradação não acontecesse,
era encontrar o jeito certo de preservar sua inocência e sua bondade. Educar
corretamente passou a ser impedir a educação.
Junto com sua inocência e com sua bondade estavam – ou lhes
eram atribuídas – outras qualidades, como curiosidade inteligente, talento
natural, imaginação vívida, desejo de aprender e capacidade de fazer
descobertas por conta própria. Se a evidência de que as crianças não eram
iguais sob todos os aspectos era forte demais para ser absolutamente negada, em
seu lugar foi posta a ficção de que todas as crianças eram dotadas de ao menos
um talento especial, e que, assim, eram iguais – e claro que todos os talentos
seriam de igual importância.
A teoria educacional romântica, a que comprometidos
pesquisadores subsequentemente deram a aura de ciência, está repleta de
absurdos que seriam deliciosos momentos de riso caso não tivessem sido levados
a sério e usados como base de uma política educacional que empobreceu milhões
de vidas. A relutância daqueles que possuem inclinações românticas em
reconhecer que havia algo profundamente errado com um sistema educacional que
deixava uma grande proporção do povo incapaz de ler direito ou de fazer contas
simples provavelmente deriva de sua falta de vontade de abandonar sua
mentalidade pós-religiosa, a ideia de que, não fosse pelas deformações da
sociedade, o homem é bom e as crianças nascem em estado de graça.
Hoje em dia, é comum que se pense que ter uma opinião sobre
um assunto, algo que é ativo, é mais importante do que ter qualquer informação
sobre aquele assunto, que é passivo; e que a veemência (sentimento) com que se
sustenta uma opinião é mais importante do que os fatos (conhecimento) em que
ela se baseia. Claro que os fatos não são tudo. É comum que as pessoas mais bem
informadas sobre um assunto possam ignorar totalmente seu cerne, ao passo que
as pessoas menos informadas o apreendam imediatamente. Contudo, o
desenvolvimento do senso de proporções que possibilita esse feito demanda uma
mente bem fornida de conhecimento de mundo, tanto implícito quanto explícito.
Uma mente vazia de todos os fatos não está exatamente capacitada para enxergar
qualquer questão em perspectiva.
O triunfo da visão romântica da educação foi duplamente
desastroso por ter coincidido com o triunfo da visão romântica das relações
humanas, particularmente das relações familiares. Essa visão é mais ou menos
assim: sendo a felicidade o objetivo da vida humana, e sendo óbvio e patente o fato
de que muitos casamentos são infelizes, é hora de basear as relações humanas
não em bases extemporâneas e antirromânticas como a obrigação social, o
interesse financeiro e o dever, mas em nada além de amor, afeto e inclinação.
Todas as tentativas de estabilidade baseadas em qualquer coisa que não seja o
amor, o afeto e a inclinação são intrinsecamente opressoras e devem, portanto,
ser descartadas. Uma vez que as relações – especialmente aquelas entre os sexos
– se baseiem apenas no amor, toda a beleza da personalidade humana, até agora
tapada pelas nuvens do dever, da convenção, da vergonha social e afins surgiria
como uma coruscante libélula no verão.
Afirmando querer trazer um mundo só de alegrias, sem
tristezas, os intelectuais quase sistematicamente denegriram a família, tomando
seus piores aspectos pelo todo e usando a reforma (muitas vezes, deveras
necessária) como pretexto para a destruição.
O afrouxamento dos laços entre os pais dos filhos, não
importando como foram forjados, teve consequências desastrosas tanto para os
indivíduos quanto para a sociedade. Assim, obviamente, é preciso ser um
intelectual treinado para ser capaz de negá-los. Ninguém pode duvidas
seriamente de que sob aquilo que hoje pode ser chamado de ancien régime das relações sexuais – em que a normalidade era
considerada o casamento monogâmico – havia frustração, infelicidade e
hipocrisia. Muita coisa era varrida pra baixo do tapete; não apenas muita coisa
acontecia sem ser observada, como também havia uma disposição, muitas vezes
difícil de distinguir da necessidade, de passar por cima do óbvio. O divórcio e
a separação eram a exceção, não a regra.
Por outro lado, um realista, mas não um sentimental,
jamais ignoraria que o único modo de eliminar a hipocrisia da existência humana
é abandonar todo e qualquer princípio; e que para os seres humanos, com suas
mentes extremamente complexas, que mesmo assim não são capazes de compreender
(porque nenhuma explicação de nada chega a ser definitiva) uma única ação sua,
é impossível viver de maneira totalmente aberta. A crítica de uma prática
porque ela demanda hipocrisia e ocultação, portanto, não é de modo algum uma
crítica. A questão, na verdade, deveria ser: que prática e que tipos de
hipocrisia e de ocultação são menos nocivos ao bem-estar humano? A resposta ao
caos afetivo que a nova prática trouxe cai em dois padrões principais, que no
entanto não são de todo mutuamente excludentes, a saber, de um lado, a
indulgência excessiva e, de outro, a negligência e o abuso.
Obviamente, os pais estão aprisionados pela ideia romântica
de que, parafraseando Blake, é melhor matar uma criança no berço do que
permitir que ela cultive desejos sem tentar realizá-los. Essa ideia, parvamente
sentimental, com sua recusa cega de ver que a realização dos desejos às vezes
pode levar precisamente ao assassinato da criança no berço, para nem falar de
outros horrores, é hoje bastante disseminada. Os pais de crianças a quem nada
foi negado ficam sinceramente chocados quando elas se mostram egoístas,
exigentes e intolerantes com a mais mínima frustração.
O outro lado da moeda do excesso de indulgência são a
negligência agressiva e a violência. Aquele que promove pais e mães postiços na
sociedade promove a negligência com as crianças e a violências contra elas. Aqueles
adultos que formam e rompem casais como vidro sendo estilhaçado por uma pedra
estão eles mesmos agindo a partir da teoria sentimental de que desejos tolhidos
são excessivamente perigosos. A extrema fragilidade e friabilidade das relações
entre os sexos, combinada com o desejo persistente pela posse sexual exclusiva
do outro leva, não de maneira antinatural, a muito ciúme, que em si é a causa
mais comum e mais forte da violência entre os sexos.
A maioria dos homens acha que os outros homens são como
eles, e em qualquer ambiente social isso será provavelmente mais ou menos
verdadeiro; assim, se eles forem sexualmente predatórios e se, como costuma ser
o caso, eles “pegaram” a parceira sexual de seu melhor amigo, eles supõem que
todos à sua volta, incluindo os amigos ou supostos amigos, estão empenhados em
agir da mesma maneira.
Em suma, a visão sentimental da infância e das relações
entre os sexos tem as seguintes consequências: deixa muitas crianças incapazes
de ler adequadamente e de realizar cálculos simples. Isso, por sua vez, resulta
em encerrar essas crianças nas condições sociais em que nascem, porque a
incapacidade de ler, e uma educação básica de má qualidade, é quase (ainda que
talvez nem tanto) impossível de ser consertada posteriormente. Não apenas isso
significa que talentos possam ser desperdiçados e que crianças e adultos
inteligentes possam ficar profundamente frustrados, como também reduz o nível
geral de cultura na sociedade. A ideia de que as relações humanas devem ser
permanente e apaixonadamente felizes, e, portanto, que todo obstáculo social,
contratual, econômico e de costumes à consecução desse fim deve ser removido,
assim eliminando todas as fontes de frustração e de motivos para a hipocrisia,
leva ao excesso de indulgência, à negligência das crianças e à violência contra
elas, e também a um aumento nos níveis de ciúme, a mais forte de todas as
motivações para a violência entre os sexos.
A visão romântica e sentimental dos aspectos mais
importantes da existência humana está, portanto, intimamente conectada à
violência e à brutalidade da vida cotidiana. Ainda se deve observar que uma das
consequências da adoção geral da visão romântica e sentimental da existência
humana é a perda da clareza dos limites entre o permissível e o não permissível;
afinal, a própria vida decreta que nem tudo é ou pode ser permissível. Contudo,
a perda da clareza dos limites causada pela adoção de uma visão impossível como
se fosse verdadeira, e a consequente recusa dos indivíduos em aceitar
limitações a suas próprias vidas impostas por forças extemporâneas, isto é,
forças que independem de sua vontade ou de seus caprichos, como as convenções
sociais, os contratos e coisas afins, significa que a incerteza se torna não o
terreno da especulação intelectual, mas da maneira mesma como a vida deve ser
vivida. A incerteza, por meio da reação contra ela, gera intolerância e
violência.
Fonte: Theodore
Dalrymple, Podres de Mimados, É
Realizações Editora, São Paulo, 2015, trechos selecionados e adaptados.