Questões comportamentais
É preciso dizer algo a respeito do termo “depressão”, que
eliminou quase por completo o termo “infelicidade” ou mesmo o seu conceito na
vida moderna. Dos milhares de pacientes que tratei, apenas dois ou três
disseram que eram infelizes, todos os outros alegaram estar deprimidos. Essa
mudança semântica é altamente significativa, pois implica que a insatisfação
com a vida é em si patológica, uma condição médica, e que seria
responsabilidade do médico aliviá-la por meios médicos. Dentro dessa lógica,
todos têm direito à saúde; depressão é falta de saúde; portanto, todos têm
direito de ser feliz (oposto de ficar deprimido). Essa ideia, por sua vez,
implica que o estado mental de alguém – ou o humor de um sujeito – atua de
forma independente do modo com esse sujeito leva a vida, uma crença que
necessariamente priva a existência de todo o seu significado humano,
desconectando, de forma radical, a recompensa da conduta.
A recusa das pessoas em considerar e agir seriamente a
partir dos sinais que veem e do conhecimento que têm não foi consequência de
uma espécie de cegueira e ignorância. Foi fundamentalmente deliberado. Elas
sabem, por experiência própria, como também observando o que acontecia com
muitas pessoas em torno delas, que suas escolhas, baseadas no prazer ou no
desejo do momento, forjariam a miséria e o sofrimento de si mesmas.
Na verdade isso não é apenas a banalidade, mas também a
frivolidade do mal: a elevação do prazer efêmero que se sobrepõe à miséria de
longo prazo.
Aqui, entramos no reino da cultura e das ideias. Não basta
acreditar que é economicamente viável comportar-se de forma irresponsável e
egoísta, mas também acreditar que é moralmente admissível viver assim. Essa
ideia vem sendo vendida pela elite intelectual há muitos anos, chegando ao
ponto de ser, hoje em dia, considerada natural. Houve uma grande marcha que não
devastou apenas as instituições, mas sobretudo as mentes dos jovens. Os jovens
querem louvar a si mesmos, descrevem a si mesmos como “tolerantes”. Para eles, a
forma mais alta de moralidade é a amoralidade.
Existe uma aliança ímpia entre a esquerda, que acredita que
o homem é dotado de direitos sem deveres, e os libertários da direita, os quais
acreditam que a escolha do consumidor é a resposta para todas as questões.
Dessa forma, as pessoas se veem no direito de gerar crianças da forma como bem
entenderem, e as crianças, certamente, têm o direito de não serem privadas de
nada, ao menos nada no plano material. Já que homens e mulheres se associam e
têm filhos, a criação destes últimos torna-se apenas uma questão de direito do
consumidor, sem quaisquer grandes implicações morais, semelhante ao ato de
escolher entre chocolate branco ou preto.
Assim, embora as pessoas tenham ciência de que estão
cometendo um grande equívoco, elas se sentem encorajadas a continuar agindo
dessa forma por acreditarem que têm o direito de agir assim, já que tudo é
apenas uma questão de escolha. Hoje em dia, quase ninguém desafia publicamente
essa crença.
Meus pacientes, com raras exceções, conseguem enxergar a
verdade: que eles não são deprimidos; estão infelizes – e são infelizes porque
escolheram viver de uma forma que não deveriam viver, na qual é impossível ser
feliz.
As elites não conseguem sequer reconhecer o que aconteceu,
muito embora seja óbvio, uma vez que tal reconhecimento solicitaria admitir a
pretérita irresponsabilidade em relação à questão, e isso seria muito incômodo
para elas. Melhor que milhões vivam desgraçadamente e na imundície do que as
elites se sentirem mal sobre si mesmas – outro aspecto da frivolidade do mal.
Inúmeras pacientes meus, com toda a oportunidade que têm
para levarem vidas pacatas, úteis, equilibradas e prósperas, escolhem, em vez
disso, a senda da complicação. Se não exatamente perigo físico e violência, ao
menos drama e constante adrenalina, que leva a noites sem sono e perdas
financeiras. Eles rompem casamentos, criam ligações desastrosas, perseguem
quimeras e se comportam de maneira que previsivelmente terminarão em desastre.
Como mariposas em volta da chama, eles cortejam a catástrofe.
Aquelas pessoas que não estão satisfeitas com o próprio
trabalho, ou que não têm quaisquer interesses intelectuais ou culturais e cujas
grosseiras emoções não foram refinadas nem pela educação nem por uma introdução
aos hábitos civilizados, encontram-se particularmente sujeitas a buscar as
complicações compensatórias das desordens e dos transtornos domésticos.
O bebê não é socializado pela enfermeira, mas ele a agride
toda vez que se percebe contrariado em seu desejo, que na infância só pode ser
instintivo. É somente ao ter o desejo contrariado, e dessa forma aprendendo a
controla-lo – em outras palavras, sendo civilizado – que os homens se tornam
inteiramente humanos.
Devemos reconhecer tanto as limitações a nós impostas pela
nossa natureza como, ao mesmo tempo, não podemos desistir de nosso esforço em
controlar os impulsos. Caso fracassemos em quaisquer dos dois, inevitavelmente
sucumbiremos a uma bestialidade ideológica ou instintiva – ou cairemos na
curiosa realização de nossa época, que sucumbe a ambas.
Na visão de mundo psicoterapêutica adotada por todo bom
progressista, o mal simplesmente não existe; temos apenas vitimização. O ladrão
e o roubado, o assassino e o assassinado, são todos vítimas das circunstâncias,
subjugados e unidos pelos acontecimentos. As futuras gerações (espero) acharão
curioso como, justamente no século de Stálin e Hitler, pudemos ser tão
veementes em nossa obstinada negação quanto à capacidade do homem para o mal.
A lascívia escancarada da imprensa ao tratar das vidas
privadas das personalidades públicas tem um objetivo ideológico: subverter o
próprio conceito de virtude e negar a possibilidade de sua existência.
Portanto, negar a necessidade de um comportamento contido. Segundo essa lógica
maliciosa, se cada pessoa que visa defender a virtude for pega com as mãos
sujas (quem de nós as teria?), ou se fosse descoberto que ela se entregou em
algum momento de sua vida a um vício que se opõe à virtude defendida por ela,
então, a virtude, em si mesma, será exposta como nada mais do que pura
hipocrisia; por consequência, poderemos nos comportar exatamente como bem
entendermos. A atual falta de compreensão religiosa sobre a condição humana –
que o homem é uma criatura caída para o qual a virtude é necessária, embora
nunca completamente alcançável – representa uma perda, e não um ganho, para uma
verdadeira sofisticação da vida. Seu substituto secular – a crença na perfeição
da vida na Terra por meio da extensão sem limites do leque dos prazeres – não é
apenas imaturo por comparação, mas muito menos realista em sua compreensão da
natureza humana.
A primeira requisição para a vida civilizada é que o homem
esteja disposto a reprimir seus instintos e apetites mais ferozes. O fracasso
no estabelecimento desse primeiro requisito tornará o homem, devido à faculdade
da razão, um ser muito pior do que as feras da natureza.
Por exemplo: o consumo de drogas tem o efeito de reduzir a
liberdade das pessoas, ao reduzir drasticamente o âmbito de seus interesses. O
consumo prejudica a busca de objetivos humanos mais importantes, tais como
constituir uma família e cumprir obrigações públicas. Muito frequentemente
prejudica a habilidade de construir uma vida profissional e promove o
parasitismo. Além do mais, longe de expandir a consciência, a maior parte das
drogas a limita. Uma das características mais universais dos drogados é a forma
intensa e tediosa como ficam absortos em si mesmos, e as jornadas que
empreendem ao espaço interior são geralmente incursões a vácuos internos.
Consumir droga é uma forma preguiçosa de buscar felicidade e sabedoria, e esse
atalho acaba se tornando a mais sem saída das ruas sem saída. Perdemos
realmente muito pouco com a proibição do consumo de drogas.
A ideia de que a liberdade é uma mera habilidade de um
sujeito fazer valer os seus caprichos é um tanto quanto rasa, e mal consegue
capturar as complexidades da existência humana; um homem cujos apetites são sua
lei nos chama a atenção não como alguém liberto, porém escravizado. E quanto
uma liberdade tão estreitamente concebida transforma-se no critério das
políticas públicas, a dissolução da sociedade estará próxima. Nenhuma cultura
que tenha na autoindulgência publicamente sancionada o seu mais alto bem pode
sobreviver por muito tempo, e um egotismo radical será desencadeado, no qual
quaisquer limites sobre o comportamento pessoal serão experimentados como
infrações contra os direitos básicos. Perceber as distinções entre o importante
e o trivial, entre a liberdade de criticar ideias recebidas e a liberdade para
se consumir LSD, por exemplo, é o tipo de discernimento que mantém as
sociedades livres do barbarismo.
Arte e cultura
Existe um tipo de consolação azeda para a ideia de que
vivemos nos piores dos tempos, de que os horrores que enfrentamos – ou ao menos
ouvimos ou lemos a respeito – são de natureza sem precedentes na história
humana. Mas, seria fato que as duas Guerras Mundiais, as fomes implantadas, o
Gulag e os campos de extermínio do século XX foram de uma natureza
completamente distinta de todos os outros horrores da história, tornando o
esforço artístico tradicional não apenas redundante, mas uma traição positiva
da humanidade? Seria o caso de o florescimento de uma árvore não poder mais ser
visto por uma pessoa decente e sensível sem uma sombra de horror a recair sobre
ela? Alguns de meus pacientes dizem que nunca bateriam numa mulher porque viram
seus pais bater na mãe, ao passo que outros dizem que batem nas mulheres porque
viram seus pais fazerem o mesmo com suas mães. Além disso, poderia muito bem
ser dito que, diante da catástrofe, a apreciação lírica da beleza da vida se
torna ainda mais importante. Sir Ernst Gombrich, o historiador da arte, conta a
história de alguns amigos seus em sua Viena natal, os quais, depois do Anschluss, esperavam ser imediatamente
presos pela Gestapo. Eles gastaram aquilo que pensavam ser as últimas horas
vivos, tocando quartetos de Beethoven.
A ideia de que, depois de um fato como a Grande Guerra, uma
celebração artística do mundo não seja mais possível não faz o menor sentido,
na verdade trata-se de uma mistura de romantismo deformado com sentimentalismo
invertido. Isso nada mais é do que pura encenação. A baboseira de tudo isso
fica evidente de imediato. A arte é precisamente o meio pelo qual o homem dá
sentido a suas próprias limitações e defeitos, transcendendo-os. Sem arte – ou
sem as artes – existe apenas fluxo.
A segunda grande causa da dissolução total da tradição
artística está intimamente ligada ao tipo de baboseira política que Miró
incorporou. Falo do culto romântico do artista original, divorciado de seus
predecessores. Segundo o diretor da Fundación Pilar I Joan Miró: “Seguindo a
mesma lei que rege a própria natureza, nova vida, novas e vibrantes formas
podiam nascer a partir da destruição”. De fato, alguém poderia, a não ser um
bruto, realmente acreditar sinceramente nessas palavras, em seu sentido
literal? Quem, a não ser um completo bárbaro, não é capaz de perceber que um
homem não pode estar só, caso ele deseje criar, que a tradição é a precondição
da criação, não a sua antítese? O problema, ao se anunciar esse tipo de lixo
pomposo, é que milhares – não, milhões – de tolos sempre estarão prontos para
acreditar nessas coisas.
Alguém inevitavelmente dirá: por que só os artistas podem
quebrar tabus? Por que não o resto de nós? Um tabu só faz sentido se funciona
para todo mundo, e aquilo que é simbolicamente quebrado na arte será, em breve,
quebrado na realidade.
Que a vida civilizada não seja possível sem determinados
tabus – que alguns deles são de fato justificáveis e, portanto, nem todo tabu é
em si um mal a ser derrotado – é um pensamento demasiado sutil para os estetas
do niilismo. O homem sábio e inteligente examina os seus preconceitos não para
rejeitá-los a rodo só por serem preconceitos, mas para avaliar quais devem ser
preservados e quais não devem. A sofisticação moderna exige uma sensibilidade
absolutamente resistente a qualquer tipo de ofensa ou surpresa, absolutamente
blindada contra oposições e sensibilidades morais. Hoje em dia, para mostrar-se
como homem de gosto artístico, é preciso se abster de quaisquer padrões e
acolher todas as violações, o que, como
disse Ortega y Gasset, caracteriza o vestíbulo do barbarismo. Uma petulante
brutalidade intelectualizada é a marca registrada da cultura moderna.
O homem autêntico, na concepção romântica, é aquele que se
libertou por completo de toda convenção, que não reconhece qualquer restrição
no livre exercício de sua vontade. Isso se aplica tanto à moral quanto à
estética, e o gênio artístico se torna sinônimo de imprevisibilidade. Mas um
ser dependente de sua herança cultura, como é o caso do ser humano, não
consegue escapar tão facilmente da convenção, e o desejo de conseguir tal
façanha já se tornou um clichê.
A grosseria da qual reclamo resulta da combinação venenosa
entre uma admiração ideologicamente inspirada por tudo o que é demótico e uma
boa dose de esnobismo intelectual. Numa época democrática, vox Populi, vox dei: a multidão não pode se enganar; e sugerir que
existam ou que devam existir certas atividades culturais em relação às quais
grandes quantidades de pessoas poderão ficar excluídas, por causa de sua falta
de cultura e despreparo mental, é tido como inaceitavelmente elitista e, por
definição, uma postura repreensível. A obscenidade é o tributo que os
intelectuais pagam, não aos proletários exatamente, mas a sua esquemática,
imprecisa e condescendente ideia de proletariado. Os intelectuais provam a
pureza de seu sentimento político por meio da sordidez daquilo que produzem.
Em relação ao esnobismo, o intelectual se eleva acima do
cidadão comum, que ainda se agarra quixotescamente aos padrões, preconceitos e
tabus. O intelectual, no entanto, rejeita-os de modo categórico. Diferentemente
dos outros, ele não é mais um prisioneiro de seu passado e de sua herança
cultural; e, dessa forma, ele prova a medida da liberdade de seu espírito em
função da amoralidade de suas concepções.
Não é de estranhar que os artistas envolvidos nessa
atmosfera mental sintam-se obrigados a habitar somente universos visualmente
revoltantes, pois de que outra forma, num mundo repleto de violência, injustiça
e imundice, um sujeito consegue provar sua democrática originalidade, a não ser
residindo no âmbito do violento, injusto e imundo? Qualquer retorno ao
convencionalmente belo significaria uma fuga elitista. No universo mental do
multiculturalismo, no qual os selvagens são sempre nobres, não há critério algum
pelo qual seja possível distinguir a boa arte do simples lixo. E se os
intelectuais – altamente treinados na tradição ocidental – estão preparados
para elogiar uma pornografia brutal e degradada como o rap, como exigir daqueles
que não receberam o mesmo treinamento uma reverência pela boa arte? Os rappers e
seus admiradores com certeza vão pensar que não há nada de valor nessa
tradição. Assim sendo, de forma covarde, o multiculturalismo abre as portas
para formas extremistas de antiocidentalismo.
Hoje em dia, o termo civilização
raramente aparece em textos acadêmicos, ou no jornalismo, sem o devido uso de
irônicas aspas, como se a civilização fosse uma criatura mítica, como o Monstro
do Lago Ness ou o Abominável Homem das Neves, e acreditar nela demonstrasse um
sinal de ingenuidade filosófica. Episódios brutais, pelo fato de serem muito
frequentes na história, são tratados como demonstrações de que tanto a civilização
quanto a cultura são uma farsa, uma mera máscara a dissimular crassos
interesses materiais. Ao mesmo tempo, as realizações são percebidas como
garantias invioláveis, como se fossem estar indefinidamente à disposição, como
se o estado natural do homem fosse o conhecimento e não a ignorância, a riqueza
e não a pobreza, a tranquilidade, e não a anarquia. Por conseguinte, temos a
ideia de que não vale a pena proteger ou preservar essas realizações, pois tudo
seria uma livre dádiva da natureza.
Parafraseando Burke quando disse que, para ter êxito, basta
ao barbarismo esperar que a humanidade civilizada não faça nada, eu diria mais:
de fato, nas últimas décadas, não foi o caso de a humanidade civilizada ficar
imobilizada, mas de ela se alinhar ativamente aos bárbaros, negando a distinção
entre superior e inferior, o que favorece, invariavelmente, o último. Os homens
e mulheres civilizados têm negado a superioridade das grandes realizações
culturais, em nome das formas mais efêmeras e vulgares de entretenimento; negam
os esforços científicos de pessoas brilhantes que resultaram numa compreensão
objetiva da natureza e, como fez Pilatos, tratam a questão da verdade com
zombaria; acima de tudo, negam a importância de como as pessoas se comportam em
suas vidas pessoais, desde que deem consentimento a sua própria depravação. O
objetivo final do furor desconstrucionista, que varreu a academia como uma
epidemia, é a própria civilização, enquanto os narcísicos dentro da academia
tentam encontrar justificativas teóricas para sua própria revolta contra as
restrições civilizacionais. Assim sendo, chegamos à verdade óbvia, de que é
necessário conter, seja pela lei ou pelos costumes, a possibilidade permanente
de brutalidade ou de barbarismo na natureza humana. Mas essa verdade nunca
encontra espaço na imprensa ou na mídia da comunicação de massa. Os nossos
intelectuais têm de perceber que a civilização é algo que vale a pena ser
defendido, e que um posicionamento hostil diante da tradição não representa o
alfa e o ômega da sabedoria e da virtude. Temos mais a perder do que pensam.
Por exemplo, a preservação da qualidade estética da vida
exerce profundas consequências sociais e econômicas. Em lugares onde tudo é
feio e esteticamente indiferente, é fácil ao comportamento se modelar a esse
padrão, tornando-se vulgar e grosseiro, fazendo evaporar o orgulho coletivo.
Temos um universo onde a conduta das pessoas parece não importar, pois não há
mais nada para estragar. Atenção aos detalhes, importante tanto na produção de
bens quanto na provisão de serviços, é rebaixada num ambiente de generalizada feiura.
Qual o sentido de limpar uma mesa se o ambiente em volta é irremediavelmente
asqueroso?
Outro exemplo é a existência de desnutrição em meio à
abundância de alimentos. Como de costume, nem os analistas tampouco suas
pesquisas estatísticas desejam olhar o problema de frente, ou mesmo estabelecer
as conexões óbvias. Para eles, a mais real e inadiável questão que se levanta é
a seguinte: “Como faço para parecer que estou preocupado e que sou bom diante
dos amigos e colegas?”. É desnecessário afirmar que, diante desse quadro
mental, o primeiro imperativo é evitar qualquer insinuação de imputar
responsabilidade à suposta vítima ao se avaliar as más escolhas que ela fez.
Não é permitido sequer olhar para as motivações por detrás dessas escolhas, uma
vez que, por definição, vítimas são vítimas e, portanto, não podem ser
responsabilizadas por seus atos, ao contrário da pequena e relativamente
diminuta classe de seres humanos que não são vítimas. Pode-se, talvez, estender
a famosa máxima de La Rochefoucauld de que não se pode olhar fixamente, por
muito tempo, para um problema social. Esse intelectual sentirá uma
incontrolável necessidade de escapar para as divagações impessoais e abstratas,
referindo-se às estruturas ou alegadas estruturas sobre as quais a vítima não
tem qualquer controle. E a partir dessa necessidade de evitar a dureza da
realidade ele fiará esquemas utópicos de engenharia social.
Ao não querer enxergar a conexão entre mazela e modo de
vida, a intelligentsia progressista
tem muitas razões para não querer perceber ou mesmo admitir as dimensões
culturais da sociedade. A primeira razão para isso é a necessidade de evitar o
confronto com as consequências provenientes das mudanças na ordem moral, dos
costumes e das políticas sociais que essa intelligentsia
tem constantemente apoiado. A segunda é evitar imputar qualquer
responsabilidade às pessoas pobres cujas vidas são pouco invejáveis. Que essa
abordagem leve a uma visão dessas pessoas como irrecuperáveis autômatos,
enredados por forças que não podem influenciar muito menos controlar – e que,
portanto, não podem assumir sua completa condição humana – não preocupa nem um
pouco os membros da intelligentsia.
Pelo contrário, aumenta a importância do suposto papel providencial dessa elite
na sociedade.
A questão do sexo também serve de exemplo de degradação
civilizacional. Semelhante a todas as outras funções naturais no ser humano, é
precisamente o envolvimento do sexo com uma aura de significados mais profundos
que confere humanidade ao homem, distinguindo-o do resto da natureza animal.
Remover esse significado, reduzir o sexo a uma função biológica, como todos os
revolucionários sexuais fazem na prática, é retroceder ao nível do
comportamento primitivo, do qual não temos registro na história humana. Todos
os animais fazem sexo, mas só os seres humanos fazem amor. Quando o sexo fica
privado dos significados que apenas as convenções sociais, tabus religiosos e
contenções pessoais, tão desprezados pelos revolucionários sexuais, podem
infundir, tudo o que resta é a incessante busca – fundamentalmente enfadonha e
sem sentido – pelo orgasmo transcendente. Ao ser afetado pela falsa perspectiva
de felicidade por meio do sexo ilimitado, o homem moderno conclui, quando não
está feliz com sua vida, que sua vida sexual não foi suficientemente explorada.
Logo, se o bem-estar social não elimina a miséria, precisamos de mais
bem-estar; se o sexo não gera felicidade, necessitamos de mais sexo.
É curioso notar que um disparate tão pueril como esse viesse
a ser confundido como pensamento sério; mas o fato é que as visões dos
revolucionários sexuais, sobre as quais seriam erigidas as bases apropriadas
para um perfeito relacionamento entre homens e mulheres, são, agora, comumente
aceitas, ou seja, tornaram-se uma ortodoxia. A possibilidade de que a união
entre homens e mulheres pudesse servir a outros propósitos, ligeiramente mais
mundanos e fraternos, nunca lhes ocorre. Que a profundidade do sentimento seja,
no mínimo, tão importante quanto a intensidade (e a longo prazo mais
importante) é um pensamento estranho a eles. Livres de pressões sociais que os
mantenham juntos, fundamentalmente desprovidos de crenças religiosas para guiar
suas vidas, e com o Estado por meio de suas leis e provisões de bem-estar a
encorajar positivamente a fragmentação da família, os relacionamentos se tornam
caleidoscópicos, tanto em seu ininterrupto estado de alteração como em sua
esdrúxula uniformidade repetitiva.
Fonte: Theodore Dalrymple, Nossa cultura...ou o que restou dela,
É Realizações Editora, trechos selecionados, São Paulo, 2015.