Visão geral do ser
Ao versarmos sobre ontologia (isto é,
metafísica geral), é necessário antes entendermos que ontológico é tudo aquilo
que se refere ao ser em geral, ao seu logos, enquanto ôntico é aquilo
que se refere ao ente determinado, ao fato de ser. O ser ontologicamente é um
e ônticamente é múltiplo.
Uma das perguntas fundamentais da ontologia
é precisamente por que os seres que existem existem? Tudo muda, é
verdade, mas o que muda é algo que muda, algo firme, estável, fixo. O
ser não se explica, o ser não se define. O ser é nossa própria experiência,
está dentro e fora de nosso pensamento. É o conceito mais claro e límpido que
nos pode surgir.
O ente, por outro lado, é o que tem ser, o
que é. Do ente podemos dizer aquilo que é, o “fundo” do ser, o que logicamente
define o ser (a essência) e o fato de ser (a existência). Estão
ambos incluídos no ser, são os modos de ser. O conceito de ente é
transcendental porque podemos predicá-lo de qualquer coisa, seja
singularidade, seja particularidade, seja universalidade.
Esquecemos, no entanto, o mais importante: é que o ser não é apenas um conceito, e se dele, conceitualmente, há pouco a dizer, se dele silenciam os nossos esquemas intelectuais, dele fala, palpitante, expressiva, toda a nossa afetividade, toda a nossa consciência, tudo quanto em nós é ato, atividade, desejo, promessa e certeza. [...] Essa presença do ser nos cerca e nos inclui. Dele não podemos evadir-nos, nem o podemos negar, mesmo quando tentamos negá-lo. Antecede-nos e sucede-nos, e sentimo-nos como testemunhas afirmativas dele. [...] O ser é a voz do ser que fala em tudo.
Inevitável não se lembrar do verso bíblico Porque
nele vivemos, e nos movemos, e somos; como também alguns dos vossos poetas
disseram: Pois somos também sua geração. (Atos 17:28)
Curiosíssima os três modos de ser
apresentados por Mário Ferreira no tocante ao tempo. O devir, ou seja, o
vir-a-ser, é um modo de ser do presente, um ato híbrido. O modo de ser do
passado é epimeteico e o modo de ser do futuro é prometeico.
Ambos, epimeteico e prometeico, são. O tempo “está” no ser. Um trecho
críptico de Mário, que parece conferir ser, ou modo de ser, ao tempo. Em outras
palavras, parece que o tempo não é apenas uma medida do movimento (o tempo
relativo), mas é também absoluto como “presença no ser” [sic]. No mínimo
curioso.
As propriedades do ser
O que é próprio de uma coisa são seus acidentes
necessários, ou seja, acidentes que também podem ser encontrados em outros
entes, mas no caso do ser lhe são necessários, embora não lhe sejam essenciais.
E quais são os acidentes necessários do ser? A unidade, a verdade, o bem
(“valor”, como o chama Mário), a inteligibilidade e a similitude, entre outros.
Estas propriedades, ou transcendentais, são
convertíveis, ou seja, são análogos, pois ora são unívocas, ora equívocas, sem
ser exclusivamente nem uma nem outra. Veja-se, por exemplo, o caso do bem
(“valor”): a bondade em si todo ente tem, mas a bondade relativa, ou seja, a
bondade para outro, todo ente pode (i.e. tem potencial) para ter, segundo os
planos. Há uma “coerência da tensão” aqui, como diz Mário (para entender melhor
o conceito de “tensão” consulte sua Filosofia Concreta.
Quanto à inteligibilidade do ser, Mário a
justifica da seguinte forma, apoiando-se em Duns Scot:
Em primeiro lugar, o ser é verdadeiro, pois a sua falsidade seria o nada absoluto. Ora, o nada absoluto é ininteligível; portanto o ser é inteligível, pois é o seu contrário. Por ser inteligível o ser, não se conclui ainda que nós, homens, possamos inteligi-lo exaustivamente, mas apenas proporcionalmente à natureza humana.
A distinção formal em Duns Scot
O leitor deve se lembrar que Duns Scot, tal
como mencionado por Edward Feser aqui,
não se limita a apontar a existência apenas de distinções reais e lógicas, mas
também as distinções formais.
Considere, por exemplo, a distinção, no
homem, entre sua animalidade e sua racionalidade. O leitor verá que os
tomistas, tal como a expõe Feser, a consideram uma distinção lógica do tipo
virtual, ou seja, uma distinção lógica que tem algum fundamento na realidade. O
problema disso, explica Mário, é que considerá-la virtual significa que as
formalidades só podem ser elaboradas pela nossa mente (isto é, sem uma mente
que a elabore a formalidade não poderia existir).Isso é falso, e tanto é assim
que o realismo moderado, uma doutrina cara aos tomistas, cairia por terra. Sim,
pois se as formalidades existem apenas nas mentes humanas – mesmo que cum
fundamento in re como dizem os tomistas – forçosamente concluiríamos elas
são meros nomes: cairíamos no nominalismo. Os escotistas não negam, portanto, o
realismo e, pelo contrário, o fundamentam no paralelismo entre a ordem
gnosiológica e a ordem ontológica. Em outras palavras, o esquema concreto
é a existencialização da essência e, por isso mesmo, tem realidade, e dele se
constroem os esquemas noético-abstratos (em sua Filosofia Concreta, Mário a
chama de “eidético-noético”).
A univocidade do ser em Duns Scot
A analogia se justifica pelo fato do ser
finito ser tão dessemelhante ao Ser infinito. Dessa forma, caberia apenas falar
em analogia de proporção. É curiosa a relação que Mário estabelece entre
incomensurabilidade de Deus e o mundo com a incomensurabilidade entre o
diâmetro e a circunferência (π, ou seja, 3,141592653...).
Mas, segundo Duns Scot, o primeiro objeto
do conhecimento humano é o ser, ou seja, não é o ente nem a essência, “porque
tudo quanto conhecemos é, e por estar o ser presente em todo o nosso
conhecimento, dele partimos para a ele chegar”. O ser é sempre ser, e por isso
Scot afirma a univocidade do ser. Não existe isso de um ente ter “mais ser” ou
“menos ser” que outro porque isso implicaria que haveria uma “fonte de ser”
alternativa ao próprio ser.
No entanto, cabe aqui uma nuance. Para
Scot, o ser é unívoco, sim, mas quando se refere à essência. Não é unívoco
quanto às determinações do ser, nem quanto aos transcendentais. O que ele quer
dizer com isso é que as diferenças últimas do ser (ato, potência) são apenas determinações
do ser, enquanto os transcendentais (unidade, verdade etc.) são as propriedades
do ser. Ora, nas determinações e propriedades não cabe univocidade porque o
ser não pode diferenciar o ser enquanto ser. Explicando melhor: o ser ou está
em ato, ou está em potência; não posso dizer que o mesmo ser tem ser em ato e
ser em potência. Não faria sentido isso.
Para ser claro, a univocidade do ser de
Duns Scot não é univocidade assim. Ora, se nas determinações e transcendentais
não cabe atribuição de ser, se, por exemplo, este celular é também outro
que constitui o que Mário chamaria de “esquema de celular”, então cabe aí uma
síntese de diferenças e semelhanças. A síntese de diferenças e semelhanças
é...analogia.
Ora, então se o ser é unívoco, o ente é
análogo em suas determinações (modalidades).
Se nos colocamos do ângulo do esquema eidético, tem razão Duns Scot ao afirmar a univocidade; mas, fundando-nos no empirismo, de onde parte a análise tomista, tem Tomás de Aquino razão de afirmar a analogia.
Não há aí contradição que não permita uma coerência dialética entre os dois pensamentos, e a disputa entre tomistas e escotistas peca por nenhuma das partes considerar que o ponto de partida de cada uma é diferente, com consequências diferentes, mas que se harmonizam dialeticamente.
Partindo do ser concreto [este celular em potência e ato], temos que afirmar a analogia: partindo-se do esquema noético-eidético [ideia de celular], alcança a univocidade.
Em suma, Tomás parte da univocidade do ente
e chega à analogia do ser, enquanto Scot parte da univocidade do ser e chega à
analogia do ente.
O nosso cosmos não nos revela a ordem do ser, mas apenas aquela que nossos esquemas podem captar. Portanto, não nos admiremos de mistérios. O que nos cabe é construir esquemas que nos habilitem a penetrar e realizar a mistagogia, a penetrar nos mistérios (desenvolvimento do intellectus viatoris [intelecto do viajante] dos escolásticos), para obter a iluminação que melhor nos revele a verdade.
As relações
A relação é uma das categorias de
Aristóteles, e seu status ontológico é dos mais tênues, inferiores. Uma
relação, para que tenha realidade, depende da realidade do fundamento que a
sustenta. No entanto, uma vez que ganhe realidade (embora não “concretude”, à
moda de Mário Ferreira), a relação revela uma mudança qualitativa, que se não
se dá nos elementos componentes, certamente se dará na própria relação, que
leva ao surgimento de um novo estado, uma nova distinção, a da
totalidade, além de a totalidade das partes.
Note, por exemplo, o ângulo que se forma no
encontro de duas retas. Ou na molécula de água que se forma da conjunção de um
átomo de oxigênio e dois átomos de hidrogênio. A possibilidade da água foi
atualizada pela relação dos átomos.
A relação é, nas palavras de Mário, “um
estado com o germe do esquema”. Elas não se hipostasiam, mas elas se
concretizam com os elementos que as fundamentam. Em outras palavras, elas são
reais, embora, em si, não sejam concretas, muito menos hipóstases.
As ideias
E cabe observar que as ideias são também
uma relação. Leiamos o que diz Mário Ferreira:
As coisas, pertencentes ao mundo objetivo, têm posicionalidade no tempo e no espaço, e elas têm, por sua vez estrutura, a qual implica a primeira.
Os objetos ideais, enquanto ideais, têm posicionalidade no tempo psíquico, onde se estruturam como esquemas, num eu de posicionaliade tempo-espacial.
Os esquemas abstratos são sem existência no mundo exterior, enquanto tais, mas com referência ao objeto, pois, como já vimos, se nem o esquema abstrato de nada pode excluir a objetividade para ser pensado, muito menos as ideias de possíveis.
Mas esses objetos ideais não são subsistentes de per si, como separados na ordem universal, que os contém em potência ou em ato.
O mundo das ideias platônicas não é como frequentemente se julga, algo que se dê topicamente fora deste, em sentido espacial. As ideias não têm topicidade, mas têm a significabilidade das coisas que as apontam, como símbolos que são estas.
Por isso, uma ideia, a de bem, por exemplo, pode ser captada por vários atos de pensar, sendo ela sempre o mesmo pensamento, desde que não consideremos o que há de hilético, de empírico, de fático, que a ela se junta, na experiência individual.
Os objetos metafísicos não são entidades que se possam hipostasiar como subsistentes de per si, mas como subsistentes na ordem do ser (ontológico). Elas constituem a idealidade real do ser e são afirmadas pela realidade ideal deste.
Os modos
A exemplo das relações, os modos também são
seres mínimos, de intensidade mínima. São modos de ser, por exemplo, a dependência
do efeito à causa, a união das partes de um todo, o deslocamento da Terra em
torno do Sol etc. Qualquer modificação de um ente real é um modo, que é sempre
atual, ôntico, de consistência física. Os modos nos fazem lembrar a operação da
potência cogitativa: reagimos não apenas às coisas que se nos apresentam, mas a
“algo mais” que nelas está associado. Por intuição estimativa captamos o ser e
seus modos, embora, claro, tal potência possa ser educada e aperfeiçoável nos
homens a ponto de elevá-la de mera estimação à cogitação, mas isso é outro assunto.
O que importa aqui é que os modos são inseparáveis do ser que modifica e, embora
haja entidade neles, não há ensidade (termo de Mário), ou seja, são
seres “inalienados” porque têm subsistência em outro (in alius).
Aqui cabe não confundir modo com acidente.
Os acidentes têm consistência ontológica própria, ou seja, onticamente
independem da substância. Os modos, por sua vez, têm consistência meramente
ôntica. Isso significa que os modos revelam a imperfeição dos entes quanto
considerados onticamente, mas não revelam a imperfeição do ser ontologicamente.
Vimos em Edward Feser, na mesma postagem citada acima, que os tomistas consideram
os modos de ser como uma distinção real menor (união, dependência,
presença, inerência, determinação efetiva etc.).
Tomemos
como exemplo a água, cuja combinação decorre da união de partes. Esta união é
um modal substancial. Esta união estava em potência nas partes
(moléculas de oxigênio e hidrogênio) e agora está em ato no todo. Este todo tem
um novo esquema concreto, uma nova tensão, mas a união é em si não é esta nova
tensão. O esquema da água é uma coisa, o modo substancial da união é outra coisa.
Outro exemplo, mas de modal acidental, é a modificação da quantidade. Em
si mesma, a quantidade pode ser considerada abstratamente, mas na substância na
qual está “pendurada”, a quantidade está em estado de inerência (é um modal
acidental). Similarmente, a ação também é um modal acidental porque a ação não
é apenas um “efeito da causa”, mas o modo da causa (como que o “modificar próprio”
da causa). A dependência entre o efeito e a causa é o modo da ação.
A matéria para Duns Scot
A matéria, enquanto princípio, não tem ser próprio,
segundo os tomistas. Mas Duns Scot discorda porque, se a matéria não tem
nenhuma realidade, ela é nada. Se a matéria é nada, como poderia receber e
canalizar a “eficácia” das causas? Se a matéria é nada, como poderia receber a
forma? Para Scot, “a matéria não recebe seu esse da forma, mas ela, por
si mesma, tem o seu esse (ser). [...] Em suma, a matéria é o ser cujo
ato consiste estar em potência em relação aos outros atos”.
Mário entende que o ato criador é a criação
dos termos determinante (ato=forma) e determinável (potência=matéria), o que
equivaleria ao Yang e Yin chineses, pakriti e parusha dos Upanishads.
Fonte: Mário Ferreira dos Santos, Ontologia e cosmologia, Editora Logos, São Paulo, SP, Brasil, 1959.