19 de setembro de 2023
A potência cogitativa na TCC
16 de setembro de 2023
Abstração e projeção
Podemos ser
levados a crer que quanto mais naturalista, detalhada e fiel à realidade
pictórica for uma obra de arte tanto mais desenvolvida e superior ela será em relação
às representações abstratas e de inspiração geométrica. Inspirado pela obra e
ensinos de Alois Riegl, o historiador alemão Wilhelm Worringer chega a
conclusões não só divergentes como de certa forma contrárias a tal senso comum.
Worringer
parte da ideia de que o gozo estético
é um autogozo objetivado. Em outras palavras, a beleza extraída de uma obra
de arte é resultado do contraste, ou mesmo fusão, da ampliação do olhar interno até o ponto que abarque toda a obra com
a delimitação da imaginação para que
a isole de seu ambiente originário. Se posso abandonar-me sem antagonismo interior à tal atividade de ampliação/delimitação, então
disso resultará um sentimento de liberdade e prazer. O objeto estará como que
compenetrado por minha atividade, por minha vida interior. Eis o “autogozo
objetivado”. O “belo” seria uma projeção positiva, enquanto o “feio” uma projeção
negativa.
Concomitantemente, identifica dois polos estilísticos claramente distintos
encontrados na estética das obras de arte: (1) o afã de projeção sentimental (Einfühlung, ou “empatia”), cuja satisfação
se encontra na beleza do orgânico, e (2) o afã de abstração, cuja satisfação se
encontra na beleza do inorgânico, do que nega a vida, do cristalino.
Ora, se o
autogozo objetivado é a definição mesma de gozo estético, então Worringer
rejeita a ideia de que somente a projeção sentimental possa cumprir com louvor
os critérios para extrair tal gozo da criação artística. Isso porque, com base
no método criado por Riegl, a vontade
artística absoluta, ou seja, a vontade artística desligada de quaisquer
objetos, sendo uma exigência interior latente nos homens, se manifesta como
vontade de forma. Toda obra de arte é,
em seu mais intimo ser, tão-somente uma objetivação dessa vontade de forma.
Observe que
a arte genuína é uma satisfação profunda de uma necessidade psíquica. Não cabe,
portanto, confundir “arte” com “imitação”. Trata-se de um erro muito comum: a imitação
é mera habilidade manual (um “gosto brincalhão pela reprodução de modelos
naturais”) e carece de importância estética. A arte genuína é a expressão estilística
da vontade artística absoluta.
O estilo
resultante do afã de abstração – como nas formas de uma pirâmide ou nos
mosaicos bizantinos – se trata de um impulso diametralmente oposto ao afã de projeção.
A tendência abstrata se revela na vontade de arte dos povos em estado de
natureza, na vontade de arte de todas as épocas primitivas e de certos povos
orientais de cultura superior. Trata-se de uma tendência resultante de uma
intensa inquietação interior ante os fenômenos do mundo circundante. Worringer
lança mão da expressão agorafobia
espiritual para designar tal impulso: algo como uma ansiedade em ficar em situações
ou locais sem uma maneira de escapar facilmente ou em que a ajuda pode não
estar disponível no caso de a ansiedade intensa se desenvolver. Há uma intensa
necessidade por quietude, por desprender cada coisa individual pertencente ao
mundo exterior de sua condição arbitrária e de sua aparente casualidade e
eternizá-la mediante a aproximação a formas abstratas e em encontrar dessa
maneira um ponto de repouso na fuga dos fenômenos. Observe: não há intromissão do
intelecto no estilo abstrato, ou seja, não há nenhum tipo de aspiração a
conformar-se a supostas leis de regularidade geométrica, mas sim uma
necessidade interior elementar.
Os dois
polos – projeção e abstração – são, ao fim e ao cabo, diferentes níveis de
uma necessidade comum: a ânsia de alienar-se do próprio ego. Tal ânsia de alienação
é incomparavelmente mais intensa e mais consequente no afã de abstração.
Worringer não deixa de notar que a ânsia de alienação do ego é a essência suprema
do gozo estético e, por que não, da felicidade humana mesmo.
Concluo
portanto que a arte abstrata, embora primitiva em termos cronológicos, é
primordial em termos ontológicos, pois é ela que retrata melhor o anseio dos
homens em escapar da escravidão ao ego e alçar novos e maiores voos no plano
sobrenatural. Os povos que não aposentaram sua arte abstrata mas, pelo
contrário, a sofisticaram e aprofundaram, são provavelmente aqueles que melhor
combinaram gozo estético e elevação espiritual.
Fonte: Wilhelm Worringer, Abstracción y naturaleza, Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, México, 1953.
14 de setembro de 2023
A educação da espontaneidade
É possível
educar os sentimentos? Ou, pelo contrário, os sentimentos devem ser o guia em
torno do qual devem orbitar nossos pensamentos, condutas e juízos? Vejamos o
que diz o filósofo espanhol Julián Marías.
O homem tem um caráter convivial, social e histórico. Em outras palavras, se imagina e se projeta dentro de uma forma histórico-social. Mas é necessário acrescentar que é possível sair dessa forma, que é algo que muitas vezes tem sido negado com notória falsidade. Mais ainda: sempre se sai dessa forma porque toda situação é instável, e justamente por isso existe a história.
É um grave erro portanto a “programação”, a fixação das formas, que nunca podem ser mais do que um ponto de partida. Isso elimina algo decisivo: a espontaneidade. Na vida é essencial o aporte dos impulsos, dos desejos, da imaginação – realidades sobre as quais pesa certo “descrédito”. É fundamental a reação viva, imediata, direta aos elementos da circunstância, especialmente às pessoas. É preciso que reivindiquemos a importância e a validade do “gosto”, que não coincide necessariamente com o prazer.
É preciso dar o devido valor à atração pessoal imediata, que costuma ser muito mais ampla e completa que a atração deliberada ou “racional” (aquela é mais racional, mas da razão vital).
Alguém poderia pensar que esta insistência na espontaneidade, esta preferência por ela, exclui a educação ou a relega a uma posição secundária. Acredito que, pelo contrário, ela a exige: é preciso educar a espontaneidade. Ela se nutre de experiências, imaginações, ensaios, explorações do desconhecido. Ora, a espontaneidade deseducada é pobre, limitada à herança, não somente biológica, mas sobretudo social. Entendo a educação como cultivo e incremento à espontaneidade.
É evidente a enorme influência que a ficção tem aqui: poesia, teatro, literatura, cinema; e não menos importante, a conversação. Aliada às vivências e experiências reais, as virtuais que se recebem do outro – do próximo presente com quem se conversa ou do criador, talvez falecido há séculos – são ótimos instrumentos de dilatação e intensificação da vida.
A diversidade de idades, a convivência com várias gerações, é essencial. Isso permite a libertação da circunstância temporal, a ampliação do horizonte.
[...]
O “estar” carrega em si o conceito de instalação, que é a maneira como o homem “se encontra” na vida, fazendo já algo e sendo alguém. Poderíamos definir temperamento como a modulação dessa instalação. O temperamento portanto é uma modulação essencial daquilo em que se está quando se está vivendo. [...] Alegria e tristeza, austeridade e jovialidade, severidade e piada, secura e afetuosidade; eis alguns exemplos possíveis de temperamento, que contêm incontáveis variedades e matizes. Existem temperamentos habituais que poderíamos chamar de vigentes. E existe a possibilidade de sua alteração estimulada ou artificial, como festas, orgias, álcool, drogas.
A afetividade, o mundo dos sentimentos, é o envolvente da vida. [...] A vida apresenta certos sintomas de grosseria, de pobreza, de monotonia, de instabilidade; e, mais ainda, de secura, de prosaísmo (achatamento, insipidez). Será que não nos falta uma educação sentimental adequada?
Fonte: Julián Marías, La educación sentimental, Alianza Editorial, Madrid, Espanha, 1992.
5 de setembro de 2023
A metafísica do amor
Frederick
Wilhelmsen acredita que o amor é algo que reside no coração de todo ser humano,
e a melhor forma de abordar o tema, para aqueles que são mais voltados à
meditação filosófica, é por meio da ontologia da existência. Aqueles que seguem o Cristo sabem que a lei final é a
lei do amor e que a cidade a que estamos destinados é a Cidade de Deus. Como
inspiração da importância do tema, eis alguns ensinamentos de Jesus Cristo e do
Apóstolo:
E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o
primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os
profetas. Mateus
22:37-40
E no Sermão
da Montanha disse Jesus: Ouvistes que foi
dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos,
bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que
vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos
céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça
sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis?
Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos
irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois
perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus. Mateus 5:43-48
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é
invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com
indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não
folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo
espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão
aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque,
em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; mas, quando vier o que é
perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. 1 Coríntios 13:4-10.
É
importante que antes o leitor tome contato com as descobertas de Wilhelmsen
quanto à estrutura paradoxal da existência. Em suma, a existência não existe, ou seja, a existência não é
um ente existente como um homem, uma árvore, um cachorro, um anjo, uma montanha, um planeta etc. Estes entes singulares actualizam a estrutura contida em seus universais,
ou seja, em suas essências, mas a existência, em si mesma, não se manifesta
como ente, ela é desprovida de estrutura.
As dimensões da existência humana: trágica e
extática
Com base
nesse entendimento, Wilhelmsen identifica duas ordens, ou dimensões, da
existência humana.
Uma é a dimensão trágica, na qual o homem se vê como ser contingente, finito, sem
fundamento em si mesmo, sem apoio do mundo (que supostamente é seu); em outras
palavras, como se estivesse perpetuamente caminhando à beira de um abismo que
leva ao nada. Enfrentar a morte e dar-lhe sentido é uma realidade da qual
nenhum homem tem o direito de querer escapar. Que terrível estado de
insegurança vive o homem: embora ameaçado pelo não-ser, o homem continua sendo.
Outra é a dimensão extática, na qual o homem se vê
obrigado a entregar-se ao mundo das coisas e especialmente ao mundo das
pessoas. O ser do homem é estruturalmente um ser com outros: (1) na comunicação,
ou seja, na exigência por compartilhar sentido com outra pessoa, (2) no cuidado, ou seja, quando o contingente
zela por outro contingente; e (3) no amor,
o ápice do êxtase, ou seja, quando o ser do homem se torna ser-para-o-outro, isto é, o ser autenticamente humano. O homem
inautêntico é, portanto, aquele que não se doa ao outro, mas, pelo contrário,
se apropria do ser do outro para si próprio. Em vez de superar sua pobreza
ontológica abrindo-se para amar o outro, o homem inautêntico acentua essa
pobreza preenchendo seu ser com o ser do outro: ao invés de ser-para-o-outro,
se transforma no ser-para-o-apropriado.
Que
profundo paradoxo vive o homem: extaticamente deseja dar, tragicamente deseja
ser preenchido; extaticamente precisa jogar-se fora, tragicamente precisa ser
acolhido. Não há nada no homem, nem em suas partes, nem no todo, sobre o qual
possa assentar-se e declarar candidamente que encontrou sua identidade. A
personalidade do homem, ou seja, o aperfeiçoamento de sua pessoa, não é
constituído por um “eu”, mas por um “nós”.
Este
entendimento começou a romper-se na Renascença, quando pouco a pouco o
desenvolvimento de uma pessoa (i.e. personalidade) foi sendo entendido como o
cultivo de um ego. Note que o homem medieval desconhecia a dicotomia
sujeito-objeto. Para ele, sujeito é
aquilo que há de supremo, de eminente, no ser, enquanto objeto é o conhecimento desse sujeito. O homem conhecedor era
apenas mais um sujeito dentre tantos outros sujeitos no cosmos. Para o homem
moderno, no entanto, o sujeito é somente o ego pensante, enquanto objeto é o
conteúdo desse sujeito pensante.
Este
rompimento foi posteriormente, ou concomitantemente, potencializado pela
palavra escrita. Enquanto o homem antigo e medieval filosofava com coisas e
pessoas diante de si, o homem da modernidade clássica filosofava com folhas de
papel diante de si. Homens solitários como Descartes, Spinoza, e mesmo Leibniz,
estavam envoltos em uma cultura livresca na qual as imagens sensoriais eram
eminentemente espaciais, carentes de movimento, posteriormente congeladas em
abstrações transformadas em absolutos ontológicos. Observe como na psique da
filosofia moderna o ego pensante torna-se o centro da existência, o juiz do
mundo, em oposição aos objetos “lá fora”. O ego pensante eleva-se à categoria
de personalidade abstrata, a qual toda a realidade curva-se ante sua validação
e racionalidade. O ego pensante ganha pois ares de divindade.
Mas talvez
o motivo mais importante esteja no seio mesmo da Idade Média. Wilhelmsen nota
que se abateu na Europa do começo do século XIV uma espécie de “ansiedade
coletiva”. O bom combate ao qual o Apóstolo havia chamado os seguidores do
Cristo, a civilização de camponeses, soldados e monges, começou a cansar em
meio ao nada e à falta de sentido do mundo natural. Pouco a pouco essa
civilização começou a buscar alívio desse fardo da contingência. O homem
renascentista começou a enxergar na natureza uma excelência e uma beleza antes despercebidas.
O corpo humano bem formado e estético, uma racionalidade baseada na moderação
moral da Ética a Nicômaco; a Renascença começou a negar insistentemente a
trágica situação humana e o mistério da contingência de sua existência
temporal. A abertura do ser no homem foi fechada e selada.
A pessoa humana é aquele todo no ser que, experimentando-se como finito e contingente, sem qualquer domínio sobre o seu próprio ser, existe, no entanto, dentro de uma ordem de ser à qual o seu próprio ser está aberto e na qual deve procurar o seu destino, a ponto de almejar a superação do mundo e a doação de si mesmo a um Ser que, não necessitando dele em nenhum sentido, no entanto se dá e cura assim as feridas da contingência.
Wilhelmsen
nota, no entanto, que o ser não deve ser reduzido a um mero “ser-para”, ou
seja, o ser não é apenas a relação que estabelece. O ser é, em suas palavras
paradoxais, “simplesmente ser, mas todo ser está aberto de si mesmo”.
Observe como
a metafísica do ser pode nos ajudar a entender como, e por que, o homem tende a
distanciar-se do todo que é em favor
de seu ego. Por exemplo, quando
estamos doentes sentimos que nosso
ser está como que se dissolvendo, se despedaçando, se estilhaçando. É como se o
corpo doente de repente estivesse “aí”, flutuando diante do espírito
observador, como se o corpo fosse uma peça adjacente, um elemento meramente
contíguo à alma. Em termos morais
algo semelhante acontece. Observamos nosso passado com certo assombro e
mesquinhez, e nos perguntamos como, afinal, desperdiçamos tanto tempo com bobagens
e negligenciamos o desenvolvimento de nossas qualidades, de nossos
relacionamentos, de nossas carreiras, de nosso crescimento espiritual. Uma vida
reduzida às cinzas da esperança. Ou mesmo em nossas experiências filosóficas que, por meio da
introspecção típica da meditação cognitiva, termina por concluir de maneira
afobada que o homem é seu ego e que
apenas tem um corpo. Quando estou
morrendo, não devo concluir que meu ser permanece no ego, mas, pelo contrário,
a angústia da morte é sinal de que o corpo também é meu ser. Aqui chama a
atenção que Montserrat Calvo Artes chegará à mesma conclusão: sou meu corpo,
não tenho um corpo.
Sim, claro,
é evidente que há um senso de distância entre corpo, alma e espirito. É
evidente que o corpo não participa do ser da mesma forma que o espírito
participa do ser. Mas é evidente também que somos um ser, que somos uma unidade,
e não vários seres meramente aglutinados. Somos um ser (um esse), que na verdade é um ente
(um ens), um “está sendo”. Este é
o ponto: somos inseparáveis de nossa existência. Sou meu corpo, minhas
operações, minhas faculdades: o esse
não é a alma nem o corpo, mas o esse
toca a alma, a parte formal do corpo. Como demonstrou Santo Tomás de Aquino,
por participação, o corpo também faz parte do ser do participante. É notável o
que acontece quando o homem divorcia o corpo da alma. Quando o exercício do
poder é divorciado do corpo, o homem perde o senso de responsabilidade sobre
seus efeitos. Bernanos comenta sobre o piloto que, embora capaz de apertar um
botão e matar milhares de pessoas, é incapaz de matar uma borboleta com as
mãos.
Modernamente,
o humanismo em suas diversas formas é
uma maneira de tentar escapar da dimensão trágica da existência humana. O
humanismo é incapaz de entender que, temporalmente falando, o homem não está
acima do cosmos das coisas e valores. O homem é um ser relacionado a, e não um ser que se
relaciona. O efeito de abafar a dimensão trágica é bloquear o chamado ao
êxtase. Desde a psicologia de Jung à educação liberal de Mortimer Adler, todo
humanismo está convicto de que o homem contém em si (mesmo que admita a
existência de Deus) a fonte e o fundamento de sua própria perfeição: o
humanismo veda, sela, isola a pessoa em seu ego e busca dentro da pessoa selada a sua personalidade, negligenciando a
abertura do ser, a finalidade mesma do homem. O humanismo se esquece de que a
pobreza do homem é sua glória.
A filosofia espanhola
Para melhor
esclarecer como se dá a relação do homem com essas dimensões da existência,
Wilhelmsen lança mão de dois filósofos espanhóis: José Ortega y Gasset e Xavier
Zubiri. O fato de ter vivido alguns anos na Espanha e ensinado na Universidade
de Pamplona lhe garantiu um extenso contato com a filosofia deste país.
Ademais, a filosofia nunca se divorcia dos temas e problemas típicos do local
onde se desenvolve, e no caso da Espanha, após a queda do império espanhol e
certo complexo de inferioridade perante os países do norte europeu, Wilhelmsen
não deixa de notar como os filósofos espanhóis do século XX procuraram entender
a relação do passado e do futuro da Espanha no contexto da Cristandade
ocidental, permitindo assim que se concentrassem mais na dimensão histórico/temporal
da existência humana, precisamente o que Wilhelmsen busca para, a partir desse
patamar histórico, elucidar a dimensão aberta (“extática”) da existência
humana.
É notável
portanto que a especulação metafísica espanhola se recuse em aceitar uma teoria
do ser que o veja de maneira estática, isolada, fechada. Pelo contrário, os
grandes filósofos espanhóis sempre admitiram, a despeito das orientações
religiosas que defendam, que a existência humana possui uma estrutura histórica
e aberta. É precisamente acerca desse ponto que Ortega cunhou sua hoje famosa
máxima da razão vital: Yo soy yo y mi
circunstancia. O ser humano, para Ortega, não é propriamente um ser, mas um
“vai sendo” (va siendo), ou seja, se
por um lado uma realidade físico-matemática é regida e expressa por uma lei,
uma realidade humana é expressa por uma história. Observe que para Ortega a
vida é maior do que o ser porque a vida humana se lança não para aquilo que não foi, mas para aquilo que pode ser à luz do que foi. Em outras
palavras, o passado está aqui em mim. Eu sou o passado, mas eu também sou maior
do que meu passado e, portanto, mais amplo que meu ser. O ser estático,
isolado, fechado, é um mero cenário, mas o ser dinâmico, relacional, aberto, é um
drama. Tal ser estático é paralítico assim como são paralíticos os corpos
geométricos. O ser dinâmico é ao mesmo tempo história e tradição porque o ser
dinâmico é ao mesmo tempo um progresso para o eu e um engendramento desse mesmo
eu.
Zubiri
concorda que o ser estático, aquele que provém do “é” subsistente às coisas,
tem de ser corrigido à luz do ser quando aplicado à inteligência. O ser do
homem é um “ser-aberto-às-coisas”, um “ser-é-outro”. Ao mesmo tempo, este
“ser-outro” é um retorno da inteligência a si mesma: quanto mais me estendo ao
próximo, tanto mais me torno o eu que sou. Ao ponderar sobre o ser das coisas,
o ser do homem e o ser de Deus, Zubiri alcança um entendimento do ser que, a
exemplo de Ortega, é aberto, extenso, descerrado, destapado. Além disso, Zubiri
também nota a diferença entre a concepção de amor entre cristãos latinos e
cristãos gregos. Para o Padres gregos, o amor (agape) tão reiteradamente mencionado por São Paulo e São João deve
ser entendido em um sentido estritamente metafísico. Não se trata de um amor
moral, mas de um amor ontológico.
Ao mesmo
tempo, Zubiri também nota que a energeia
aristotélica, própria dos seres vivos (ver post anterior sobre Wilhelmsen) -- ao contrário da enteléquia, própria das
coisas, que era designada como atualidade --, é melhor designada
como atividade, ou seja, como algo
que está sendo, que se está
desenvolvendo, que é “ec-stático” (extático), que se difunde a si mesmo
dinamicamente. Zubiri sustenta que o ser estático – fixo e completo – sempre recebe enquanto o ser dinâmico – ação
primitiva e radical – sempre executa.
Para os gregos, essência não é o correlativo de uma definição, como entendiam
os latinos, mas uma atividade radical constituinte do próprio ser, a própria
raiz de toda sua manifestação. A essência é algo ativo, é como se a essência
fosse uma “para-essência” manifestada numa dinâmica que é a própria verdade da ousia, pois é esta essência dinâmica que
torna a ousia cognoscível. Zubiri
sagazmente diz que Deus não é Ato Puro, mas Ação Pura. E tal atualidade, no
caso do homem, é dada, segundo Zubiri, por sua origem. É assim, portanto, que
se dá a personalidade: ela tende para a origem e fundamento de seu ser e, ao
mesmo tempo, àqueles que compartilham da mesma natureza. Estamos falando,
claro, de uma abertura, de uma doação, à Deus e aos demais homens. Estamos
falando não de um simples eros, mas
de um agape, de um amor místico. Eis
também por que Zubiri concorda com os Padres gregos sobre o primado da
personalidade sobre a natureza, e, por extensão, sobre o primado da Trindade
sobre a Unidade divina, ao contrário do que entendiam os latinos.
Mais bela
ainda é a meditação empreendida por Wilhelmsen quando nota que algo de agape está presente em eros também. Quando nos dedicamos à
manufatura de algo, à decoração de um aposento, por exemplo, algo dele retorna
a nós. Em outras palavras, obtemos aperfeiçoamento mediante o eros que nos ligou à construção e uso
daquele objeto. No caso dos seres humanos, algo mais amplo ocorre: quando nos
relacionamos em amor (agape) a outros
seres humanos, não só este amor se difunde de nós a eles, mas deles a nós
também. É o típico caso do amor de uma homem por uma mulher, por exemplo. No
caso das coisas, o aperfeiçoamento é uma certeza;
no caso dos homens, o aperfeiçoamento é uma esperança.
Ser, não-ser e amor
No entanto,
ao longo da história da filosofia, alguns pensadores concluíram que o amor não é
o aspecto eminente do ser, mas sim o poder. Isso é compreensível porque
precisamente em função da dimensão trágica da existência, isto é, a tentativa
de escapar da aniquilação, do “não-ser”, da inexistência, o ser tem de afirmar-se
na existência, arraigar-se no real. Observe que há aí uma dupla negação: o ser
é a negação da negação do ser, ou seja, a negação do não-ser. É o “poder do ser”:
a autoafirmação do ser sem o não-ser não seria autoafirmação, mas uma mera
autoidentidade imóvel. É o não-ser que impele o ser a abandonar sua reclusão e
o força a afirmar-se dinamicamente.
Assim
pensava o filósofo alemão Paul Tillich, que influenciou grandemente o
Protestantismo. Se ser é poder, então esse poder tem de ser exercido contra
alguma coisa. Essa alguma coisa é o não-ser. É o poder que melhor representa o
ser, eis o aspecto mais eminente da existência.
Mas
Wilhelmsen não aceita esse entendimento. A exemplo do que fará em sua obra
sobre a estrutura paradoxal da existência, o filósofo americano não deixa de
notar que o não-ser simplesmente não pode ser articulado intelectualmente e nem
mesmo experienciado imaginativamente. Se cremos que o fizemos é porque transformamos
o não-ser em algo que ele não é, em
algo extravagante e evanescente, sem duvida, mas ainda assim algo. Esse algo, que evidentemente não é o não-ser, é precisamente o veículo
do caos, o arauto da destruição da personalidade humana. É precisamente a contemplação,
a consideração, que um individuo ou sociedade faça do seu “ser” que determinará
como manejará a ansiedade ante o “não-ser”. Para os antigos gregos, por
exemplo, ser é estrutura, forma, autoconsistência, identidade, ordem. O não-ser
então é o devir, a mudança, a corrupção, a desordem. Antonio Millan Puelles
resumiu brilhantemente a coisificação do não-ser em uma frase genial: El no ser es aqui, no la falta de forma,
sino la forma del faltar. A ansiedade grega é conquistada pelo amor grego à
ordem. Os gregos nunca questionaram o ser enquanto tal porque nunca lhes havia
ocorrido a ideia de que o cosmos fosse uma dádiva de Deus e que, portanto,
poderia o ser não ser.
Wilhelmsen
acredita refutar, ou ao menos responder, à ideia do não-ser com um raciocínio simples.
O universo do ser é simplesmente porque
Deus o causou. Por que Deus o causou? Porque Ele quis. Por que Ele quis? A
pergunta não admite resposta porque se perde no mistério da liberdade divina. Não
há uma “razão” para Deus querer, mas algo que transcende todas as razões: o amor.
Há o ser e não o nada porque há o amor. O amor não é uma razão, mas é uma
causa. A criação não é uma dádiva de Deus para nós; nós somos a dádiva.
A pergunta não
é, portanto, por que há o ser e não antes o nada, mas por que todos esses “nadas”
ontológicos estão exercendo o ato de ser? Somos ontologicamente pobres, somos
radicalmente insuficientes. A alternativa à ansiedade do “não-ser” de um mundo
criado por Jesus Cristo é uma só: gratidão.
O
fundamento do poder do ser contra as forças da corrupção e do nada é o amor a
si mesmo. Quando amo a mim mesmo eu amo todo o ser do qual eu sou uma parte. Ao
amar o todo eu amo a mim mesmo. O homem é, e ao mesmo tempo não é, o todo no
qual participa – esse todo é evidentemente o ser –, mas o homem somente
participa no ser ao abrir-se à realidade de sua totalidade. Amar a si mesmo é
amar o próximo porque o amor a si mesmo é o próprio ser do homem. Um ato cujo
término é o próximo ama seu término ao amar a si mesmo e ama a si mesmo ao amar
seu término. Em suma, amar a si mesmo é
amar o próximo.
Abrir-se de
si mesmo e acolher o próximo. Que tolo paradoxo: ganhamos nossa alma ao tirá-la
fora. O verdadeiro amor é tolo, afinal, mas eis a herança que compete à raça
humana. Ao invés de fugir dela, melhor abraçá-la.
Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Metaphysics of Love, Angelico Press, Brooklyn, NY, EUA, 2022.