17 de julho de 2023

Mais insights estoicos


Aprender a morrer, de acordo com os estoicos, é desaprender a ser escravo.

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Sócrates costumava dizer que a morte é como alguém que brinca usando uma máscara assustadora, vestida de bicho-papão para assustar as crianças pequenas. O sábio remove cuidadosamente a máscara e, olhando-a de frente, não encontra nada que valha a pena temer.

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Uma vez que realmente aceitamos nosso próprio fim como um fato inevitável da vida, faz tão pouco sentido desejar a imortalidade como desejar corpos tão duros quanto diamante ou poder voar nas asas de um pássaro. [...] Como a morte está entre as coisas mais certas da vida, para um homem sábio, ela deve estar entre as menos temidas.

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Os estudos abrangentes de Zenão o convenceram de que disciplinas intelectuais como lógica e metafísica poderiam contribuir potencialmente para o desenvolvimento de nosso caráter moral. Zenão estabeleceu um currículo para o estoicismo dividido em três tópicos abrangentes: ética, lógica e física (que inclui metafísica e teologia).

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Os estoicos adotaram a divisão socrática das virtudes cardeais em sabedoria, justiça, coragem e moderação. As outras três virtudes podem ser entendidas como a sabedoria sendo aplicada às nossas ações em diferentes áreas da vida. A justiça é a sabedoria aplicada à esfera social, no nosso relacionamento com outras pessoas. Mostrar coragem e moderação significa dominar nossos medos e desejos, respectivamente, superando o que os estoicos chamavam de “paixões”. [...] Como Sócrates havia dito anteriormente, as vantagens externas na vida só são boas se soubermos usá-las com sabedoria. No entanto, se algo pode ser usado para o bem ou para o mal, não pode ser realmente bom em si mesmo, portanto, deve ser classificado como “indiferente” ou neutro. Os estoicos diriam que coisas como saúde, riqueza e reputação são, no máximo, vantagens ou oportunidades, em vez de serem coisas boas por si sós. As vantagens sociais, materiais e físicas, na verdade, trazem aos indivíduos tolos mais oportunidades de prejudicar a si mesmos e aos outros. [...] O sábio estoico, ou o homem sensato, não precisa de nada, mas usa tudo para o bem; o tolo acredita que “precisa” de inúmeras coisas, mas as utiliza para o mal.

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Marco aprendeu que os estoicos acreditavam que havia um relacionamento entre o verdadeiro amor à sabedoria e uma maior capacidade de resiliência emocional. Sua filosofia continha em si uma terapia moral e psicológica (therapeia) para mentes perturbadas pela raiva, medo, tristeza e desejos doentios. Eles chamaram o objetivo dessa terapia de apatheia, que não significa apatia, mas liberdade em relação aos desejos e emoções prejudiciais (paixões). Dizer que Apolônio ensinou a filosofia estoica a Marco é, portanto, também dizer que o treinou para desenvolver resiliência mental por meio de uma forma antiga de psicoterapia e autoaperfeiçoamento, às vezes descrita como a “terapia das paixões”.

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Epicteto dizia a seus alunos que os fundadores do estoicismo distinguiam entre dois estágios de resposta a qualquer evento, incluindo situações ameaçadoras. Primeiro vêm as impressões inicias (fantasia), que são impostas involuntariamente à nossas mentes pelo que nos cerca, quando somos inicialmente expostos a um evento como a tempestade no mar. [...] Até mesmo a mente de um perfeito sábio estoico será inicialmente abalada por choques abruptos desse tipo, e ele se afastará instintivamente, tomado pelo medo. Essa reação é fruto não de um julgamento de valor incorreto a respeito dos perigos enfrentados, mas de um reflexo emocional que surge em seu corpo, que ignora temporariamente a razão. [...] Por outro lado, a capacidade humana de pensar pode fazer com que perpetuemos nossas preocupações além desses limites naturais. A razão, nossa maior bênção, também é a nossa maior maldição. No segundo estágio de resposta, os estoicos dizem que geralmente adicionamos julgamentos voluntários de “consentimento” (sunkatatheseis) a essas primeiras impressões automáticas. Aqui, a resposta do sábio estoico difere daquela apresentada pela maioria das pessoas. Ele não se deixa levar pelas reações emocionais iniciais a uma situação que tenha invadido sua mente. Epicteto afirma que o estoico não deve consentir ou confirmar essas primeiras impressões, tais como a ansiedade diante do perigo. Em vez disso, ele as rejeita como sendo um engano, analisa-as com indiferença, abandonando-as.

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Sêneca também observou que certos infortúnios atingem o homem sábio sem incapacita-lo, como a dor física, as doenças, a perda de amigos ou filhos ou catástrofes infligidas por derrota na guerra. Esse tipo de coisa pode arranhá-lo, mas jamais feri-lo.

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O Hamlet de Shakespeare exclama: “Não existe nada bom ou ruim, mas pensar faz com que seja assim”. Os estoicos concordariam que não há nada de bom ou ruim no mundo externo. Somente o que depende de nós pode ser considerado verdadeiramente “bom” ou “ruim”, o que torna esses termos sinônimos de virtude e vício.

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A catastrofização geralmente envolve o pensamento “E se?”. E se o pior cenário possível vier a acontecer? Isso seria insuportável. Por outro lado, descatastrofizar tem sido descrito como sair do “E se?” para o “E daí?”: Então, e se tal coisa acontecer? Não é o fim do mundo; eu posso lidar com isso. [...] Lembrar-seda transitoriedade dos eventos é uma das estratégias favoritas de Marco. Uma maneira de fazer isso é se perguntar: “Realisticamente, o que provavelmente acontecerá a seguir? E depois? E então, o que mais?”. E assim por diante.

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Uma das lendas mais famosas sobre Diógenes, o Cínico, conta como Alexandre, o Grande, procurou o filósofo. É uma justaposição de opostos: Diógenes viva como um mendigo, e Alexandre era o homem mais poderoso de todo o mundo conhecido. No entanto, quando Alexandre perguntou a Diógenes se havia algo que poderia fazer por ele, o Cínico teria respondido que Alexandre poderia sair da frente, pois estava bloqueando o sol. Diógenes podia falar com Alexandre como se fossem iguais porque era indiferente à riqueza e ao poder. Diz-se que Alexandre se afastou e retornou às suas conquistas, aparentemente sem ter adquirido muita sabedoria.

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Outra técnica útil de esclarecimento de valores para estudantes de estoicismo envolve a criação de duas listas curtas em colunas lado a lado intituladas “Desejado” e “Admirado”:

1. Desejado. As coisas que você mais deseja para si na vida.

2. Admirado. As qualidades que você considera mais louváveis e admiráveis em outras pessoas.

A princípio, essas duas listas quase nunca são idênticas. Por que elas são diferentes e como sua vida mudaria se você desejasse as qualidades que considera admiráveis em outras pessoas? Como os estoicos poderiam dizer, o que aconteceria se você tornasse a virtude sua prioridade número um na vida? O aspecto mais importante desse exercício de esclarecimento de valores, para os estoicos, seria compreender a verdadeira natureza do bem maior do homem, elucidar nosso objetivo mais fundamental e viver de acordo com ele. Tudo no estoicismo remete a um objetivo final de apreender a verdadeira natureza do bem e viver de acordo com isso.

Depois de esclarecer seus valores fundamentais, você pode compará-los às virtudes cardeais estoicas da sabedoria, justiça, coragem e moderação.

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Lúcio estruturou toda a vida em torna da busca por prazeres vazios como forma de evitar entrar em contato com suas emoções. Os psicólogos sabem que as pessoas geralmente adotam hábitos que consideram prazerosos – das redes sociais ao crack – como uma maneira de se distrair ou reprimir sentimentos desagradáveis. No caso de Lúcio, o álcool e outras diversões talvez lhe oferecessem uma maneira de escapar da preocupação com suas responsabilidades como imperador. Como veremos, não há nada de errado com o prazer, a menos que comecemos tanto a desejá-los que negligenciemos nossas responsabilidades ou substituamos atividades saudáveis e gratificantes por atividades que não o são.

Buscar prazeres vazios e transitórios nunca levará à verdadeira felicidade em longo prazo. Entretanto, o prazer pode ser complexo – pode nos atrair se passando por algo que não é. O que todos nós realmente procuramos na vida é o sentimento de autêntica felicidade e satisfação que os estoicos chamavam eudaimonia. [...] As pessoas ainda confundem prazer com felicidade e frequentemente acham difícil imaginar outra perspectiva de vida.

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Contudo, o valor de um homem pode ser medido pelas coisas que ele estima. Gostar do sofrimento dos outros é ruim. Sentir prazer em ver homens arriscando perder a vida ou sofrer ferimentos graves seria, portanto, considerado um vício pelos estoicos. Por outro lado, é bom gostar de ver as pessoas florescerem. Você pode pensar que isso seja óbvio; no entanto, o prazer pode nos cegar até o ponto de não vermos as consequências para os outros e para nós mesmos.

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Há mais dois pontos-chaves sobre alegria estoica que devem ser enfatizados:

1. Os estoicos tendiam a ver a alegria não como o objetivo da vida, que é a sabedoria, mas como um subproduto dela, portanto, acreditavam que tentar encontra-la diretamente poderia nos levar ao caminho errado se a busca fosse à custa da sabedoria.

2. A alegria no sentido estoico é fundamentalmente ativa, e não passiva; vem da percepção da qualidade virtuosa de nossas próprias ações, das coisas que fazemos, enquanto os prazeres corporais surgem de experiências que acontecem conosco, mesmo que sejam consequência de ações como comer, beber ou fazer sexo.

Marco diz, portanto, que não é nos sentimentos, mas nas ações, que reside o seu bem supremo.

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Em outras palavras, os estoicos não eram desmancha-prazeres. Marco estava convencido de que poderia obter tanta satisfação saudável com as coisas simples que aconteciam em sua vida quanto os que buscava prazer, como seu irmão, satisfazendo vorazmente seus desejos doentios. Sócrates também alegou, paradoxalmente, que aqueles que praticam o controle realmente obtêm mais prazer com coisas como comida e bebida do que aqueles que se entregam a elas em excesso. A fome é o melhor sabor, disse ele, enquanto, se comermos demais, estragamos nosso apetite. [...] No entanto, um paradoxo ainda mais profundo reside na noção de que, em última análise, a virtude da autodisciplina pode se tornar uma fonte maior de “prazer” do que comida ou outros objetos externos de nosso desejo.

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Pensando bem, poucos afirmariam que essa é a maneira mais gratificante de passar a vida. Ninguém nunca teve as frases “Eu gostaria de ter visto mais televisão” ou “Eu gostaria de ter passado mais tempo no Facebook” gravadas na lápide.

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Devemos nos lembrar de que a dor é sempre suportável, pois é sempre aguda ou crônica, mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo. Um dos pais da igreja, Tertuliano, resumiu a ideia dizendo que Epicuro cunhou a máxima “um pouco de dor é desprezível, e uma grande dor não é duradoura”. Portanto, você pode aprender a suportar dizendo a si mesmo que a dor não durará muito se for intensa ou que será capaz de suportar algo muito pior se a dor for crônica. As pessoas frequentemente se opõem a isso afirmando que a dor que sentem é ao mesmo tempo crônica e aguda. [...] O ponto é que uma dor crônica além da nossa capacidade de suportar teria nos matado, então, o fato de ainda estarmos de pé prova que somos capazes de suportar algo muito pior. Embora isso possa ser difícil de aceitar para algumas pessoas, os participantes dos meus cursos online que sofreram muitos anos com dor crônica relataram que essa máxima epicurista foi de grande ajuda para eles, assim como para muitas pessoas ao longo dos séculos anteriores. [...] Por que os antigos consideravam essa estratégia específica uma maneira útil de lidar com a dor? Quando as pessoas estão realmente em dificuldade, elas se concentram em sua incapacidade de lidar com o problema e na sensação de que o problema está ficando fora de controle. “Eu simplesmente não aguento mais isso!”. No entanto, Epicuro afirma que, concentrando-se nos limites de sua dor, em termos de duração ou gravidade, é possível desenvolver uma mentalidade mais voltada para o enfrentamento e menos sobrecarregada por preocupações ou emoções negativas a respeito de sua condição. Marco também acreditava ser útil pensar em sua dor como confinada a uma parte específica do corpo, em vez de se deixar consumir por ela, imaginando-a mais difundida. A dor quer dominar sua mente, tornando-se a história toda.

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Então, como Marco pôde superar sua total falta de experiência e se tornar um líder militar tão talentoso? Como permaneceu calmo diante de situações incertas e contra inimigos tão formidáveis? Uma das técnicas estoica mais importantes empregadas por ele foi a de agir “com uma cláusula de reserva” (hupexhaire sis). [...] Essencialmente, significa realizar qualquer ação enquanto aceita com tranquilidade que o resultado não está inteiramente sob seu controle. Aprendemos com Sêneca e outros que isso pode assumir a forma de uma advertência, como “Se o destino permitir”, “Se Deus quiser” ou “Se nada me impedir”. [...] Estamos perseguindo um resultado eterno “com a reserva” de que o resultado não depende inteiramente de nós. [...] De fato, Marco chega ao ponto de dizer que, se você não age com a cláusula de reserva em mente, qualquer falha imediatamente se tornará um mal para você, ou uma fonte potencial de sofrimento.

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Enquanto a psicoterapia moderna geralmente se concentra na ansiedade e na depressão, os estoicos se debruçavam mais sobre o problema da raiva. [...] Eles acreditavam que a raiva é uma forma de desejo. [...] A raiva geralmente consiste no desejo de prejudicar alguém, porque achamos que fez algo errado e merece ser punido. [...] A raiva decorre da ideia de que uma injustiça foi cometida ou de que alguém fez algo que não deveria ser feito. A raiva está frequentemente associada à impressão de que você, de alguma forma, foi ameaçado por outra pessoa, tornando a raiva uma companheira intima do medo. [...] Não devemos responder a pessoas desagradáveis e inimigos com raiva, mas tratar isso como uma oportunidade de exercitar nossa própria sabedoria e virtude. Os estoicos veem as pessoas problemáticas como se fossem uma receita de um médico ou de um parceiro de treinamento designado por um treinador de luta livre. [...] Apolônio é retratado dizendo: “Existem homens maus – eles são uteis para ti; sem eles, que necessidade haveria de se ter virtudes?”.

A próxima estratégia envolve imaginar a pessoa de quem você está com raiva de uma maneira mais completa e abrangente – não se concentre apenas nos aspectos de seu caráter ou comportamento que você considera mais irritantes. Marco diz a si mesmo para considerar com cuidado o tipo de pessoa que costuma ofendê-lo. Então, imagina-os pacientemente em suas vidas diárias: comendo em suas mesas de jantar, dormindo sem suas camas, fazendo sexo, descansando, e assim por diante.

[...]

Nenhum homem faz o mal conscientemente, o que também implica que ninguém o faz de propósito. [...] Se está fazendo o que é errado, você deve assumir que é porque não sabe agir de uma maneira melhor. Como Sócrates indicou, ninguém quer cometer erros ou ser enganado; toda as criaturas racionais desejam inerentemente a verdade. [...] Todos se ressentem de ser chamados de cruéis ou desonrosos. Em certo sentido, acreditam que o que estão fazendo é certo ou pelo menos aceitável. Não importa quão perversa aquela conclusão possa parecer, ela é justificada na própria mente de quem a formulou. Se pensarmos constantemente nas outras pessoas como estando enganadas, e não simplesmente sendo maldosas, como privadas de sabedoria para encarar seus desejos, inevitavelmente lidaremos de maneira mais gentil com elas. [...] Da mesma forma, não julgamos as crianças com severidade quando elas cometem erros, pois não sabem o que estão fazendo. No entanto, os adultos ainda cometem os mesmos erros morais que as crianças. Eles não desejam ser ignorantes, mas agem como tal sem ter essa intenção.

Lembrar que as outras pessoas são humanas, e imperfeitas, pode ajuda-lo a receber críticas (ou elogios) delas de uma maneira mais equilibrada e menos emocional.

[...]

As ações dos outros são externas a nós e não podem danificar nosso caráter, mas nossa própria raiva nos transforma em um tipo diferente de pessoa, quase como um animal, e, para os estoicos, esse é o maior dano. “Outra pessoa me fez mal? Isso é problema dela, não meu”.

Fonte: Donald Robertson, Pense como um imperador, CDG Edições, Porto Alegre, Brasil, 2022.

Veja também: A estupidez inteligente e outros insights estoicos

14 de julho de 2023

Adão, Eva e a Queda


A FORMAÇÃO ONTOLÓGICA

1) Se nem o NT pode ser lido instintivamente, imagine o VT.

2) Adão e Eva não podem ser os nomes desses arquétipos porque o hebraico só surgiu depois de Moisés.

3) Pó, argila, sangue, saliva, lágrima: são nomes mencionados nas antigas culturas do Oriente Próximo para indicar a formação de arquétipos ("identidade", "imagem"), não a formação biológica de seres singulares.

4) Em especial, "pó" indica mortalidade, enquanto a áravore da vida é o antídoto dessa mortalidade. Por uma má tradução, Deus não fez o homem "do" pó da terra, mas o homem é pó da terra, simplesmente.

5) Se Deus fala de nossa natureza arquetípica, e não de uma suposta origem químico-corporal, então Adão pode muito bem ter nascido de uma mulher. Da mesma forma, Eva não "vem" de Adão no sentido corporal, mas tem a mesma natureza arquetípica de Adão, ou seja, a mesma identidade. O sono profudo de Adão é na verdade uma visão, e nela lhe é mostrado que ele (e ela) é apenas o par da mesma identidade. Vê-se portanto que a história do gênesis não é uma história científica, mas uma história ontológica.

6) Gênesis deixa claro que já havia muitos outros habitantes quando Caim começou a fundar cidades. Adão e Eva não foram portanto os primeiros seres humanos singulares, o que seria uma forma de diminuir, e não de enaltecer, sua importância na história do mundo.

7) Sua importância está no fato de que foram criados para serem sacerdotes (mediadores) para servirem e guardarem (preservarem) o Jardim do Éden, que é parte do espaço sagrado onde Deus habita. Neste caso, Adão e Eva não são o arquétipo da humanidade, mas representantes da humanidade no Éden.

A QUEDA

8) Há duas árvores no Éden: a árvare da vida e a árvore da sabedoria (ou "do conhecimento do bem e do mal"). Ambos -- vida e sabedoria -- são frutos de Deus. A vida os livra da mortalidade, e a sabedoria tem a ver com ordem, pois Deus pretende que a humanidade expanda a ordem instaurada por Ele no cosmos.

9) Adão e Eva comem do fruto da árvore da sabedoria, ou seja, procuram eles mesmos serem o fundamento da ordem no mundo. Deus consequentemente os aparta do acesso à árvore da vida, ou seja, da imortalidade.

10) A serpente não é Satanás, mas um símbolo de rompimento da ordem e catalisador da desordem.

11) A punição de Deus não é expulsá-los a um ambiente de desordem, mas a um ambiente apenas fora de ordem ("non-order"). É a humanidade que trouxe a desordem ao mundo e o dilúvio é uma maneira de Deus para tirar a humandade da desordem e reestabelecê-la ao estado de fora de ordem ("non-order").

CONCLUSÕES

12) Por seu desinteresse em questões científicas, o VT não pode atestar nem refutar o modelo darwinista.

13) O VT está centrado na criação enquanto ação operativa, não enquanto mecanismo biológico.

Fonte: John Walton, Understanding Adam and Eve and the Fall, YouTube.

10 de julho de 2023

Elementos de filosofia da linguagem


A tarefa da filosofia da linguagem é construir uma teoria que tente explicar o fenômeno da comunicação. Adler entende que há duas limitações que precisam constar em uma filosofia da linguagem digna do nome: (1) eliminar toda e qualquer preocupação com “verdadeiro” e “falso” e (2) excluir de seu alcance as expressões emotivas, sentimentais e de caráter imperativo. Isso significa, quanto ao ponto (1), que uma filosofia da linguagem não pode depender de limitações previamente impostas por questões ontológicas, epistemológicas e psicológicas pelo simples motivo que para dirimir tais questões prévias à filosofia da linguagem se exigiria, pois, o emprego da linguagem. Similarmente, a filosofia da linguagem deve ser formulada de tal forma que se situe completamente à margem da enorme variedade de teorias gramaticais e sistemas linguísticos.

A filosofia da linguagem deve ser capaz de resolver dois problemas:

(a) quais as circunstâncias necessárias para a transformação de notações em significado em notações com significado, ou seja, em palavras categoremáticas (ou seja, excluindo-se preposições, partículas, conjunções etc.) propriamente;

(b) o que é uma palavra afinal.

A teoria de que as notações adquirem significado a partir de palavras existentes é absurda porque a relação das palavras é um círculo fechado. Para uma criança, por exemplo, conseguir mover-se no círculo de palavras é necessário antes, obviamente, que sinais sem significado algum se transformem em palavras (notações com significado). Lembrando que um sinal pode ser um signo (algo que sugere, indica ou implica em outra coisa, como uma nuvem no céu sugere, indica ou implica em chuva) ou um designador (algo que nomeia, designa ou refere outra coisa, como a notação NUVEM no papel ou os fonemas “nuvem” pronunciados de maneira audível nomeiam, designam ou referem a nuvem). Somente palavras podem ser designadores.

Os significados das palavras vêm das ideias. Mas ideia, aqui, não é uma teoria ou um conceito, nem tampouco uma noção de algo. A ideia, conforme aqui usada por Adler, é um produto de um ato da mente. Então, por exemplo, a percepção produz preceitos, a imaginação produz imagens, a recordação produz memórias, a compreensão produz conceitos (embora o sentir produza sensações, neste caso, como não há participação da mente, não se consideram as sensações como ideias). Ao conjunto desses atos da mente chamamos de apreensão, enquanto ao conjunto dos produtos desses atos da mete chamamos de ideia. É claro que há mais atos cognitivos da mente além da apreensão, que são o juízo e o razoamento, que envolvem questões de verdade e falsidade, e cujos produtos são o julgamento e o raciocínio.

As ideias são aquelas coisas pelas quais apreendemos o que apreendemos, mas nunca os objetos da apreensão, ou seja, nunca aquilo que apreendemos. E eis o ponto crucial da filosofia da linguagem de Adler: o objeto das ideias não pode ser puramente subjetivo, pois senão a comunicação seria impossível. Tampouco pode ser puramente objetivo, pois sabemos que as ideias não tem existência independente da mente humana. Portanto, os objetos das ideias situam-se entre esses dois extremos: trata-se de objetos pertencentes ao campo da intersubjetividade, ou seja, são objetos idênticos para dois ou mais indivíduos, apesar de cada individuo apreendê-los por meio de suas próprias ideias, por meio de seus próprios atos mentais. Esses dois indivíduos têm ideias existencialmente distintas, mas essas ideias podem ter uma única intenção, ou seja, elas podem pleitear um mesmo objeto e fazê-lo presente na mente de ambos os indivíduos.

O significado da ideia é intrínseco a ela, ou seja, a ideia é nada mais que um significado. A ideia dá significado ao objeto que essa ideia apresenta para a mente. Mas aqui cabe uma observação crucial: a ideia não apenas tem um significado, mas ela é um significado. Ela é o significado que apresenta o objeto para a mente. Em outras palavras, é como se a ideia contivesse em si ambos os elementos, significante e significado, mas que se distingue do objeto que significa. É o único ente no mundo que se apresenta dessa forma. Eis como, portanto, uma notação sem significado adquire seu significado: por meio da imposição voluntária a um objeto apreendido (“idealizado”, digamos). O indivíduo faz a imposição do objeto sendo apreendido, ou seja, do objeto sedo apresentado à mente, a uma notação ainda sem significado. A partir daí, o uso da palavra evoca a ideia, ou seja, o significador natural, a ela associada.

A simples distinção entre aquilo que apreendemos e aquilo pelo qual apreendemos corrige o erro de Descarte e de Locke. É preciso notar mais uma vez que aqui estamos nos referindo apenas ao primeiro ato da mente, o ato de simples apreensão, e não os seus produtos — seus preceitos, suas memórias, suas imagens e seus conceitos; não estamos nos referindo aos atos subsequentes da mente, seus atos de juízo e razão. O simples ato de apreensão, no qual o sentido e o intelecto cooperam enquanto permanecem distintos, não é um ato de juízo. É apenas quando afirmamos saber, por juízo ou razão, que sabemos e fazemos juízos verdadeiros, ou falhamos cm saber e fazemos juízos falsos. A simples apreensão não envolve juízo e não é nem verdadeiro nem falso. Não basta ver que a distinção, no âmbito da simples apreensão, entre aquilo que apreendemos e aquilo pelo qual apreendemos, afasta o erro cometido por Descartes e por Locke, que viam as ideias como objetos apreendidos e também como representações das existências reais, sobre as quais procuramos fazer juízos verdadeiros e, então, vir a conhecer de fato. Também é necessário entender o que está envolvido na adesão rigorosa à visão de que ideias (preceitos, memórias, imagens e conceitos) são sempre e somente aquilo pelo qual apreendemos, nunca aquilo o que apreendemos. A primeira coisa que deve ser compreendida é que os produtos dos primeiros atos da nossa mente — seus preceitos, suas memórias, suas imagens e seus conceitos — são totalmente inexperienciáveis, ininspecionáveis e inexamináveis.

Jamais podemos experimentá-los, inspecioná-los ou examiná-los; pois são sempre e somente aquilo pelo qual apreendemos, seja o que for que apreendemos, e nunca aquilo que apreendemos. A segunda coisa que deve ser compreendida é que, através de nossas ideias como instrumentos de apreensão, apreendemos uma variedade de objetos — os percebidos, os lembrados, os imaginados e imaginários, e os objetos concebidos ou objetos de pensamento. A terceira coisa que deve ser entendida é que esses objetos apreendidos não são representações de coisas, ou existências reais de qualquer tipo. Os objetos da nossa apreensão são entes que sempre têm existência intencional. Além disso, eles podem ser entes que também têm existência real, mas que nem sempre é o caso. Todos esses pontos foram completamente elaborados nos capítulos anteriores e não precisam mais ser discutidos. Só estão sendo mencionados aqui para resumir o que envolve um novo caminho, aderindo rigorosamente à distinção entre aquilo que apreendemos (objetos) e aquilo pelo qual apreendemos (ideias); a distinção entre a existência intencional dos objetos e a real existência das coisas; a distinção entre apreensão e juízo; e a distinção entre pensamento perceptual e pensamento conceitual. Todas essas distinções foram perdidas ou obscurecidas na tradição da filosofia moderna iniciada com Descartes e com Locke. É apenas porque foram recuperadas e colocadas em funcionamento que o presente livro pode afirmar que produziu os rudimentos de uma filosofia da linguagem sólida e adequada.

Fonte: Mortimer J. Adler, Como pensar a linguagem em algumas questões, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2021.

1 de julho de 2023

Um tributo à alta monogamia


O escritor americano George Leonard, extensamente citado pela psicóloga espanhola Montserrat Calvo Artes, defende a ideia de que tanto o moralismo vitoriano quanto a revolução sexual, embora ambos pareçam contradizer-se mutuamente, na verdade são produto de uma mesma mentalidade: a ideia de que o sexo é uma atividade que possa ser dissecada dos demais aspectos da vida humana e, pior, que possa ser reduzida a dogmas e preceitos definidos.

Quando nos damos conta que o homem enquanto tal não é um mero agregado material, nem um boneco ou um fantasma, mas um ser muitíssimo mais complexo, amplo e profundo, que a união entre duas pessoas não é a mera união de dois personagens, então podemos vislumbrar a ideia central de Leonard: o amor erótico, se consumado e comprometido, tem poderes imortais. O amor erótico e o amor criador são notavelmente semelhantes e a maneira como fazemos amor influi na maneira como fazemos o mundo, e vice-versa.

O problema com as posturas ideológicas vitoriana e revolucionária é que ambas almejam reduzir e “concretizar” a vida, seja impondo ditames de recato e castidade, como no caso da moral vitoriana, seja impondo ditames de exuberância e liberdade, como no caso da moral revolucionária. Observe que em ambas há a oferta de soluções e caminhos simplificados. E o que foi “simplificado” aqui é precisamente a condição humana: quando duas pessoas fazem amor isso seria “só sexo”, seria mero alívio prazeroso de pulsões e a realização de desejos voluptuosos.

Foi o moralismo vitoriano do século XIX o principal responsável por reduzir o sexo a algo polêmico e isolado, por romper a relação do sexo com a matriz das relações sociais, por transformar o sexo em algo sensacional. O sexo passou a ser uma ideia, uma abstração, um objeto sobre o qual podemos versar, manipular, ensaiar em laboratório. A abstração e a generalização que supõe o pensamento moderno sobre o sexo toma a experiência erótica e a converte em algo concreto e útil, paralisando-a. A expressão “sexualidade humana” não mais descreve a vida, mas a morte. Segundo Leonard, embora aparentemente não haja relação entre sexo e genocídio, é precisamente a abstração do corpo e do sexo em relação ao composto humano total levada a cabo na era moderna que permite que pessoas sejam tratadas como coisas, que assim como as árvores de um terreno são derrubadas para posterior terraplanagem, assim também homens são assassinados para posterior “terraplanagem”. Daí Leonard dizer com muita eloquência: “A paralisia da percepção precede o genocídio”. Nossa capacidade de abstrair é também nossa incapacidade. Uma ideia pode se tornar tão premente que a confundimos com a realidade: confundimos o mapa com o território. É quando a ideia se converte em ideologia.

Ao contrário, as fantasias formam a cultura erótica interior e, portanto, enriquecer a vida imaginária é ampliar as perspectivas da vida erótica. A criatividade, seja no amor ou em qualquer outro campo, exige a distinção entre a fantasia e o dogma: ora, criar significa experimentar novos elementos ou configurações da realidade sentindo-me seguro com isso. O dogma circunscreve e congela a realidade ao mesmo tempo em que proíbe a fantasia.

O que Leonard tem em mente está para muito além do controle, dos cálculos e das manipulações. Trata-se de entrar em um mundo no qual o ato sexual não seja considerado como uma mercadoria, mas como uma expressão espontânea e incondicional do amor. Em outras palavras, em criar um lugar magnífico apesar dos riscos, no qual as correntes do passado se rompem e a importância da luta pelo poder é mínima.

Se minha amante e eu somos campos de energia, únicos e irredutíveis, que expressamos o cosmos desde um ponto de vista especifico, então nossa união não é casual. Quando nos unimos no amor criamos um novo campo de energia, maior e diferente do que a soma de suas partes. As intenções e o compromisso bastam para criar uma nova forma, para engendrar a ordem onde antes havia o caos e o nada, para produzir novos dados. Se minha amante é o cosmos, é impossível que a trate como um objeto. Ela é como uma janela para o cosmos.

É por isso que Leonard propõe a monogamia. Não por escrúpulos legais, morais ou religiosos, nem por timidez ou inércia, mas porque ambos buscam um desafio e uma aventura. A exclusividade erótica é portanto algo voluntário, livremente escolhido. Para isso, Leonard recomenda: (1) que ambos tenham interesses em comum em quanto a objetivos de vida, (2) que demonstrem genuíno entusiasmo, lealdade, cortesia, paciência, (3) que se considerem verdadeiramente como pessoas de altíssimo valor.

O objetivo da relação monogâmica é atingir uma profundidade tal que desencadeie uma mudança em ambos. É precisamente a partir do momento em que ambos já contaram a historia de suas vidas e empregaram todos os truques eróticos que começa a aventura da transformação e do erotismo mais profundo. É a partir desse momento que começamos a ver com clareza e começamos a mudar. E é precisamente isso que a sexualidade recreativa e fugaz evita: a intimidade profunda, a aventura, a imprevisibilidade, a transformação. A monogamia é para aqueles que se comprometem a viver de uma forma profundamente pessoal, entregando tudo sem reprimir nada. A relação monogâmica voluntária (não aquela motivada por escrúpulos morais) tem seus prêmios: uma ternura muito particular, sensações intensas, um ambiente erótico emocionante, surpresas cotidianas, mudanças. 

Tudo isso sem apólice de seguro. Sim, pois há riscos, e são enormes. A sabedoria do cínico tem um longo pedigree. Mas o desperdício do potencial da relação monogâmica autêntica também causa terror.

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A "matéria" é a origem dos campos de energia ou são eles que engendram a matéria? Na realidade, a matéria é o campo de energia, como demonstrou Einstein em sua equação E = mc 2, sem que a causa intervenha em nada. Basta dizer que o padrão rítmico é o aspecto mais fundamental e irredutível de cada ser humano e que podemos considerar todos os sinais de individualidade como diferentes manifestações de um mesmo ritmo fundamental ou pulsação interior. Por exemplo, as impressões digitais são ondas rítmicas imobilizadas no espaço. As ondas cerebrais são ondas no tempo. Reconhecemos nosso cantor favorito - não importa quão ruim seja a gravação e não importa que música ele cante - não apenas pela maneira como ele interpreta a música, mas também por essa profunda essência rítmica, esse pulso interior.

Portanto, cada um de nós pode ser considerado um campo rítmico completamente diferente, um complexo de ondas e ressonâncias. Este conceito de identidade pessoal anula a velha dicotomia mente-corpo, visto que a mente é vista como uma manifestação da pulsação interior, e o corpo como outra manifestação da mesma. Podemos ir ainda mais longe e afirmar que a obra de uma pessoa, a marca deixada no tempo pela passagem dessa pessoa, é uma manifestação dessa pulsação particular e fundamental. A alma ou espírito é outra dessas manifestações. A ideia de uma pulsação interna da identidade pessoal poderia explicar a possibilidade da sobrevivência da autoidentidade após a morte do corpo.

Fonte: George Leonard, El fín del sexo, Integral Editorial, Barcelona, Espanha, 1986.