26 de abril de 2023

Viktor Frankl e a logoterapia - II


Parte I

A logoterapia se parece a uma psicoterapia convencional, mas procura diferenciar-se desta mediante o tratamento a partir do lado “especificamente humano”, como dizia Frankl, ou seja, tratar as questões que surgem, ou se manifestam, no espírito humano, e não meramente no corpo humano ou na psique humano. Daí tais questões serem chamadas de “noogênicas”, ou seja, engendradas no noûs (espírito).

Frankl apela para duas capacidades humanas no âmbito da logoterapia: a autotranscedência (capacidade para apontar para algo/alguém/sentido que está fora do próprio ser humano) e o autodistanciamento (capacidade para observar seu corpo e psique com certa impessoalidade). Ambas as capacidades surgem, ou se pronunciam, em meio ao sofrimento. Assim como me dou conta melhor da capacidade da visão quando tenho um glaucoma, assim também me dou conta melhor da capacidade da autotranscedência e do autodistanciamento quando tenho um problema existencial. Ao contrário dos animais, os instintos e pulsões não nos dizem o que temos de fazer.  Ou seguimos a manada (conformismo), ou seguimos o líder ou grupo (totalitarismo), ou encontramos um sentido que preencha nosso vazio existencial. Esse sentido nunca é dado pelo terapeuta: é o próprio paciente o responsável por encontrá-lo.

O sentido é encontrado quando, nos “bastidores da realidade”, entrevemos uma possibilidade para mudá-la. Não importa se o sujeito é “simples” ou “sofisticado”: graças à sua autocompreensão ontológica pré-reflexiva (compreensão intuitiva de sua humanidade), o homem é capaz de ajustar sua postura e sua atitude ante os inevitáveis golpes do destino, ante os incontornáveis fatos da vida, e a partir deles criar uma axiologia (escala de valores).

As duas principais técnicas da logoterapia para tratar as neuroses psicogênicas são a intenção paradoxal (mobilização do autodistanciamento mediante desejar aquilo que teme ou fazer aquilo que teme; humor é a essência da técnica) e a derreflexão (mobilização da autotranscedência).

Na intenção paradoxal, o paciente aprende a permitir a intenção (paradoxal) irônica no lugar do medo, o que resulta no corte do combustível que move seus temores.


Enquanto a intenção paradoxal faz com que o paciente fique apto a ironizar as neuroses, com a ajuda da derreflexão ele é capaz de ignorar os sintomas. O paciente ignora a si mesmo. O neurótico quer “fazer” tudo com conhecimento e vontade.  Uma educação para a confiança em relação ao inconsciente seria necessária nos casos de neurose obsessiva, uma confiança em relação à espiritualidade inconsciente, à superioridade cognitiva e determinante das coisas do ânimo e do sentimento no ser humano em relação às coisas da razão e do conhecimento. Resumindo: aquilo que temos de ensinar ao neurótico obsessivo, devolver-lhe, deixar que ele reencontre, é sua confiança na espiritualidade irrefletida.

O psicoterapeuta só deve alcançar uma conscientização total de maneira temporária. Ele deve tornar o inconsciente (e também o inconsciente espiritual) consciente para depois permitir que ele se torne inconsciente de novo: ele deve conduzir uma potentia inconsciente a um actus consciente, com o único objetivo de criar novamente um habitus inconsciente. O psicoterapeuta precisa restabelecer o caráter espontâneo de operações inconscientes.

Por sua vez, há três padrões de reações patogênicos: (1) neuroses de angústia (agorafobia, medo de sentir medo, “ansiedade antecipatória”, fuga da situação), (2) neuroses obsessivas (medo de si mesmo, luta contra ideias obsessivas), (3) neuroses sexuais (medo da impotência, hiperintenção do prazer, hiper-reflexão, incapacidade de se entregar, de se esquecer).

* * *

A tabela acima mostra a causa (corpórea ou anímica) e o efeito (no corpo ou na psique) das psicopatologias. Alguns dados: a psicose tem origem somática, as neuroses podem ter efeito na psique (neurose) ou no corpo (neurose orgânica). As “doenças comuns” são aquelas tratadas pela medicina convencional, de causa e efeito corpóreos.

Evidentemente a etiologia nem sempre é rígida e tão bem delineada como sugere a tabela. Eis um gráfico que ilustra bem a proporcionalidade da primariedade da etiologia das patogêneses.


Há outra interessante maneira, muitíssimo utilizada por Frankl em seus livros, de classificar as patologias de acordo com seu efeito. Veja:


No eixo vertical encontram-se as três partes do composto humano e no eixo horizontal o tipo sintomatológico: simples efeito psicogênico ou noogênico, desencadeamento psicossomático cerebral-neurológico (ou seja, como um “gatilho” psíquico de uma doença corpórea, tal como nas psicoses), doença funcional somática (do tipo vegetativo ou endócrino) ou efeito retroativo (iatrogênica, ou seja, causada por erros médicos, ou outras reações).

Psicoses

Embora ditas “psicossomáticas”, as psicoses endógenas são claramente somatogênicas, embora haja uma psicogênese parcial. Em função de sua somatogênese, as psicoses são frequentemente racionalizadas, ou seja, os traumas, complexos e conflitos sofridos pelos psicóticos são tratados como patogênicos, e eis a confusão: são, na verdade, patognomônicos, ou seja, fazem parte da sintomatologia e denotam a presença da psicose, mas não são eles mesmos a causa da psicose. Como diz Frankl, assim como a maré vazante não é causada pelo recife que surge, a psicose também não é causada por um trauma psíquico, um complexo ou um conflito. Ademais, como já disse acima, a psicose é desencadeada (gatilho, condição) por fatores psíquicos, mas não é causada por eles.

Quanto à patoplástica (a maneira como se apresenta a patologia) temática e individual das psicoses, nota-se claramente a presença de ideias delirantes que se repetem “como a agulha que fica presa no sulco de um disco”. Assim, é mérito da psicanálise investigar a temática desses pensamentos delirantes, perseguindo-os até a infância. Em termos coletivos, pode-se falar de uma sociogênese, ou seja, o espírito da época também desempenha papel importante na temática do delírio. Ademais, em termos de patoplástica pessoal (humana), não devemos nos esquecer que o indivíduo acometido por essa patologia não é um simples animal selvagem ferido, mas um ser humano. Isso parece óbvio, mas não é: o paciente vivencia sua insuficiência como culpa perante sua consciência e/ou a Deus, e a pessoa, que é espírito, está além de ser saudável ou doente. Ora a análise existencial deve entrar aqui como um elemento que evidenciará o aspecto pessoal da psicose e eventualmente evidenciará algum elemento de religiosidade inconsciente. Quanto a isso, diz Frankl muito acertadamente:

No geral, porém, continua tão evidente quanto antes que um organismo psicofísico de bom funcionamento seja a condição para que a espiritualidade humana se desenvolva. Não podemos esquecer que o psicofísico, independentemente de quanto possa condicionar o espiritual, não tem qualquer efeito, não consegue criar tal espiritualidade. Também não deveríamos esquecer que é sempre unicamente o organismo psicofísico que é afetado – por exemplo, no sentido da doença psicótica. De qualquer maneira, um distúrbio funcional psicofísico pode fazer com que a pessoa espiritual que está por trás desse organismo psicofísico (e de alguma maneira também acima dele) não consiga mais se expressar, se manifestar: é esse – e não mais nem menos – o significado da psicose para a pessoa. A doença impede a pessoa em sua automanifestação. O espírito humano está condicionado à funcionalidade de seu corpo.

A logoterapia só é adequado no caso de psicoses leves a moderadas. Mais grave que isso, torna-se contraproducente.

A análise existencial almeja descobrir e despertar a humanidade intacta e invulnerável do indivíduo. São três “existenciais” a serem descobertos: a espiritualidade, a liberdade e a responsabilidade. Para a logoterapia, um fato biológico como a psicose está longe de ser, apesar dos pesares, um fato biográfico. Em suma, o paciente deve aprender a enfrentar e rir na cara de coisas como a angústia e a obsessão (método da intenção paradoxal). Em outras palavras, temos de garantir que os debates entre o humano na doença e o doentio no homem aconteçam. Temos de nos lembrar que um animal não tem alternativa, ou seja, ele se rende à afetividade patológica; o homem, por outro lado, pode se ocupar com tudo isso: não estou falando de reações psíquicas, mas de atos espirituais. Mas esse feito não acontece de maneira reflexiva, acontece de maneira muito mais implícita, sutil, silenciosa.

Doenças psicossomáticas

Como disse acima, são as doenças desencadeadas, e não causadas, pelo anímico. O fato de um asmático ou de alguém que sofre de crises de angina só ter ataques quando está nervoso é uma trivialidade e apresenta nada de novo. No mais, isso não quer dizer que a asma ou a angina como tais, em seu todo – ou seja, não no episódio singular da crise, mas como doenças de base –, sejam psicossomáticas ou psicogênicas. A angina ou asma podem acontecer por meio de um resfriado, mas também pode ser causada por uma excitação, ou seja, desencadeada pelo psíquico. Em suma, o nível de imunidade depende, entre outros, do estado afetivo.

Doenças funcionais

Elas são “funcionais” porque não há uma alteração estrutural em órgãos ou sistemas orgânicos, e sim meros distúrbios de suas funções, motivo pelo qual podemos classificar essas doenças como funcionais. Estamos falando dos sistemas vegetativo (respiração, circulação sanguínea, controle de temperatura, digestão etc.) e endócrino (produção de hormônios). São, portanto, na opinião de Frankl, “pseudoneuroses” enquanto as psicoses são cerebrais e neurológicas.

Neuroses reativas

Os efeitos psíquicos de causas somáticas das doenças funcionais (pseudoneuroses) produzem, por sua vez, efeitos psíquicos reativos, ou seja, reações neuróticas (neuroses reativas). O denominador comum dessas reações é a ansiedade antecipatória (medo do medo, como a colapsofobia, a infartofobia e a insultofobia). O círculo vicioso tem de ser quebrado em ambos os polos (somático e psíquico). O medo do medo é um medo secundário que tem um motivo (ou seja, motivo psíquico, que se acopla ao primário), enquanto o primário tem uma causa (ou seja, causa somática, a disposição vegetativa de angústia).

Há tipicamente dois padrões de neuroses reativas: (a) neurose obsessiva: o medo de si mesmo se expressa em ocorrências obsessivas e a partir daí o paciente exerce uma pressão contra elas, o que naturalmente reforça a pressão original; em particular, a obsessão de repetição é causada por uma insuficiência da sensação de evidência, enquanto a obsessão de checagem se deve a uma insuficiência de segurança dos instintos; há uma vontade pelos cem por cento, pelo absoluto, pela totalidade do conhecimento; o tratamento passa pela condução do paciente do mundo do absoluto para o mundo do pseudoabsoluto, convencendo-o que o mais razoável e não querer ser razoável; (b) neurose sexual: a ansiedade antecipatória se estabelece a partir da promoção do fracasso sexual único como sendo o primeiro; o caráter de exigência de potência tem um efeito patogênico e o paciente se sente inferiorizado, foge de situações em que a potência sexual poderá apresentar-se, como motéis, encontros de fim-de-semana etc. e foca muito no prazer em si (carpe horam, e não carpe diem) e acaba se perdendo; o prazer não é um efeito que pode ser agarrado, exatamente como o sono, e não pode ser colocado como intenção; a sexualidade não pode ser considerada um simples meio para um fim (prazer, orgasmo), mas uma expressão da aspiração amorosa (a emoção do sexo sem amor é inferior, como apontam inúmeras pesquisas); a sexualidade tem de desenvolver-se em três estágios: (1) mera masturbação (com ou sem parceiro, tanto faz), (2) o parceiro é abarcado em sua humanidade, (3) o amor vivenciado também envolve singularidade e unicidade.

Neuroses iatrogênicas

O médico é o fator patogênico mediante sua incompetência para uma anamnese minimamente aceitável (não deixa o paciente falar, por exemplo) e uma diagnose minimamente detalhada (banalizar o que diz o paciente e realizar um diagnóstico a todo custo para mostrar que algo foi feito, por exemplo).

Neuroses psicogênicas

Diz Frankl que o fato de um trauma anímico, ou seja, uma experiência grave, ter sobre alguém um efeito danoso e prejudicial a longo prazo, depende da pessoa, de toda a estrutura do seu caráter, e não da vivência em si pela qual ela teve de passar. A imensa maioria das vidas humanas passa por traumas e, curiosamente, essas situações são acompanhadas por uma diminuição de doenças neuróticas e uma melhora na saúde mental. Por isso uma liberação de uma carga psicológica longa e intensa são perigosas do ponto de vista da higiene mental, exigindo-se assim uma espécie de “ortopedia psíquica”. De qualquer forma, as neuroses psicogênicas orbitam em torno de dois polos: medo e culpa, cujas origens encontram-se respectivamente em duas condições ontológicas: liberdade e responsabilidade.

Doenças noogênicas

Refere-se a doenças da terceira dimensão humana, ou seja, a espiritual. É a dimensão verdadeiramente humana, e precisamente aquela que o psicologismo não quer aceitar. Caracteriza-se pelas chamadas “crises existenciais”, isto é, crises engendradas pela tensão de um conflito de consciência ou pela pressão de um problema espiritual. Nota-se claramente a necessidade metafísica, ou seja, a necessidade do ser humano de perguntar-se sobre o sentido de sua existência. O médico e psicólogo, que hoje é levado a assumir a função que anteriormente cabia ao sacerdote e ao filósofo, podem chegar a um diagnóstico errôneo de uma doença mental, julgando-a psicogênica quando a noogênese já está aí instalado muito antes.

As neuroses noogênicas exigem uma terapia que comece onde a neurose está enraizada: uma logoterapia. Trata-se de uma terapia essencialmente orientada à educação para a responsabilidade. O paciente precisa avançar de maneira autônoma a partir dessa responsabilidade e alcançar o sentido concreto de sua existência pessoal. Enquanto a psicanálise deu voz à vontade de prazer, a psicologia individual apresentou a vontade de poder e a logoterapia evidencia a vontade de sentido.

Enquanto o somatologismo ignora o espiritual, o psicologismo projeta o noético no puramente psíquico, procurando apenas pelos motivos emocionais do desespero, tentando “desmascará-los”. Os problemas e conflitos em si não são doentios. Mesmo conflitos insolúveis. Segundo Frankl, “assim como há verdade apesar da doença, há sofrimento apesar da saúde”.  O desespero humano em relação à sua falta de sentido não tem nada de patológico, nem necessariamente patogênico. Nem mesmo o suicídio é patológico.

Não existe “doença espiritual”, mas apenas um engate da afecção somática à frustração existencial. Falamos, portanto, de neuroses noogênicas, mas nunca de neuroses noéticas. E, evidentemente, há o erro do noologismo, ou seja, afirmar que toda neurose é noogênica. Dessa maneira, a logoterapia representa uma complementação noética da terapia somatopsíquica.

Neuroses coletivas

Frankl entende que não há propriamente um aumento das doenças neuróticas, mas um aumento da necessidade de tratamento psicoterápico. Isso está claro na velocidade aumentada da vida moderna, que em si representa uma tentativa de autocura, de autoentorpecimento: a pessoa está fugindo da monotonia interior e, nessa fuga, acaba caindo num turbilhão. O homem de hoje mal sabe de onde veio – muito menos para onde vai. E seria possível acrescentar: quanto menos ele conhecer seu objetivo, mais vai aumentar sua velocidade ao percorrer esse caminho.

Quando a vontade de sentido permanece insatisfeita, a vontade do prazer serve para anestesiar a insatisfação existencial do ser humano, ao menos para sua consciência. A líbio sexual prolifera, populariza-se o entorpecimento sexual. Similarmente, entre os executivos, a vontade de poder (e sua versão mais banal, a “vontade de dinheiro”) reprime a vontade de sentido. O homem existencialmente frustrado não sabe como ele pode preencher esse tempo livre. O tédio se tornou causa de primeira ordem da doença mental, ainda mais nos locais onde as questões sociais estão resolvidas.

Fonte: Viktor Frankl, Teoria e Terapia das Neuroses, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2016.