30 de janeiro de 2023

A consciência segundo Julian Jaynes


O psicólogo americano Julian Jaynes tornou-se mundialmente famoso por suas pesquisas sobre a consciência, sua origem e seu funcionamento. E talvez na palavra "origem" esteja o núcleo de seu pensamento mais criativo: Jaynes não apenas trata da origem da consciência no sentido de quando, na vida humana, ela entra em ação e desempenha um papel central, mas sobretudo trata da origem da consciência na própria história da humanidade. Sim, isso mesmo: Jaynes acredita que os homens antes aproximadamente de 1000 a.C. viviam sem consciência -- não sem pensamento, não sem raciocínio, mas em consciência -- até que houvesse uma paulatina, mas decisiva, "ruptura da mente bicameral". Meu objetivo aqui não é rever o argumento de Jaynes a favor da existência da mente bicameral, de povos bicamerais, do desenvolvimento da consciência a partir de catástrofes naturais e sociais etc. Para isso o leitor poderá rever o conjunto de dados e argumentos que reuniu em seu famoso livro, ou mesmo em um artigo que resume bem sua posição. O que vamos fazer aqui é procurar entender o que Jaynes quer dizer por “consciência”.

1) A consciência não é um "estar desperto". Quando dizemos que "Fulano perdeu a consciência" o que ele perdeu, na verdade, foi a reatividade. Ora, quando falamos a alguém que está distraído e não nos responde não dizemos, pelos mesmos motivos, que esse alguém perdeu a consciência. Ele apenas não está reagindo, eis tudo. Por outro lado, há uma ideia popular de que estamos conscientes todo o tempo em que estamos acordados. Isso é terminantemente falso. Quantas vezes agimos, reagimos, pensamos, raciocinamos, sem ao menos nos dar a mínima conta do que fizemos ou estamos fazendo? Resulta que estamos conscientes somente quando "prestamos atenção" ao que fazemos e pensamos. Quando lemos, tocamos piano, dançamos etc. a consciência encontra-se perfeitamente desligada, e é bom, nesses casos, que seja assim.

2) A consciência não é uma coleção de imagens. A quantidade imensa de informações e imagens armazenada na memória em momento algum necessita da intervenção da consciência. Quantas vezes nos damos conta de que algo mudou no ambiente somente depois de nos depararmos com o ambiente novamente? Antes disso, quem é capaz de descrever o ambiente com precisão a ponto de recordar-se de todos os microdetalhes? O que há na memória não temos consciência alguma e, pior, o que há na memória é em grande parte inventado ou, como diz Jaynes, "narratizado".

3) A consciência não é uma coleção de conceitos. A consciência nunca se conscientiza de conceitos, mas de objetos reais, concretos, individuais, mesmo quando pensamos sobre um conceito. Jaynes explica que os conceitos são apenas "classes de coisas" que suscitam comportamentos equivalentes, e que existem antes da experiência e são a base, por exemplo, dos instintos.

4) A consciência não é necessária para a aprendizagem. Sim, a consciência pode ser útil para a aprendizagem, por vezes é contraproducente, mas não é necessária. Inúmeras pesquisas na área da psicologia demonstram que a aprendizagem ocorre na ausência da consciência.

5) A consciência não é pensamento. Nos diversos processos propelidos por imagens que versam "sobre" ou "de" alguma coisa -- aquilo que geralmente chamamos de "pensamento" -- a consciência não desempenha nenhum papel. Em primeiro lugar surge o pensamento, e só em seguida sabemos sobre o quê versará o pensamento.

6) A consciência não é raciocínio. A ideia de que para que o raciocínio lógico ocorra é necessária a condução da consciência é um mito. A velha imagem do cientista sentado em seu laboratório ou escritório sendo conduzido conscientemente pelas leis da indução e dedução é fruto da superstição popular. Inúmeros relatos e pesquisas comprovam que o raciocínio em si, até a preparação prévia do material pertinente, surge subitamente, por insights ou "estalos". O raciocínio é algo automático. Ademais, o raciocínio está para a lógica assim como a saúde está para a medicina ou o comportamento está para a moral. Isso significa dizer que nem todo raciocínio será necessariamente lógico assim como nem todo estado de saúde corresponde ao conhecimento médico atual, e assim como nem toda conduta está de acordo com as regras morais de uma sociedade.

7) A consciência não está na cabeça. O fato de o cérebro conter uma grande quantidade de neurônios tem feito muita gente pensar que é ali que "fica" a consciência. Aristóteles pensava que ela ficava logo acima do coração, por exemplo. Ora, quando andamos de bicicleta o cérebro se encontra altamente ativado. Alguém por acaso concluiria que andamos de bicicleta no cérebro? Tolice semelhante é acreditar que a consciência "está" no cérebro.

Em suma, a imensa maioria das atividades humanas dispensa completamente o uso da consciência.

A consciência, explica Jaynes, é um análogo do mundo real, ou seja, é um campo lexical (vocabular) cujo objetivo é curto-circuitar os processos comportamentais. A consciência tem uma estrutura interna. Eis suas características principais:

1) Espacialização. A consciência sempre cria no espaço mental os substratos metafóricos do que está pensando, ou seja, a consciência transforma o diacrônico em sincrônico no espaço mental.

2) Extrato. Pensamos em algo mediante extratos desse algo. São partes da coisa, nunca a natureza da coisa, de modo que o extrato depende de como a coisa nos afeta e vice-versa. A partir do extrato é que as memórias se aderem: são as reminiscências, ou seja, uma sucessão de extratos.

3) Eu análogo. Somos capazes de nos “mover” por aí, de “prever” vistas, panoramas, ambientes, cenários etc.

4) Eu metáfora. É a capacidade da autoscopia, ou seja, de nos vermos, nos observarmos.

5) Narratização. Criamos estórias em torno de nós e dos outro, atribuindo causas, motivos, sucessões etc. Tudo na consciência tem uma “estorinha”. Fatos soltos são amarrados a outros faltos soltos.

6) Conciliação. Assim como a narratização cria estorinhas (tempo) para as coisas, a conciliação cria objetos (espaço) para as coisas.

7) Concentração. É o análogo interior da atenção perceptual exterior.

8) Supressão. É o análogo interior da supressão de pensamentos perturbadores, da mesma forma que evitamos perturbações no mundo físico exterior.

Em suma:

“Deixe-me resumir como uma forma de "ver" onde estamos e a direção em que nossa discussão está indo. Dissemos que a consciência é uma operação e não uma coisa, um repositório ou uma função. Ela opera por meio de analogia, por meio da construção de um espaço análogo com um análogo que pode observar esse espaço e mover-se metaforicamente nele. Ele opera sobre qualquer reatividade, extrai aspectos relevantes, narratiza e concilia-os em um espaço metafórico onde tais significados podem ser manipulados como coisas no espaço. A mente consciente é um análogo espacial do mundo e os atos mentais são análogos aos atos corporais. A consciência opera apenas em coisas objetivamente observáveis. Ou, para dizer de uma maneira que ecoa a John Locke, não há nada na consciência que não seja um análogo de algo que já estava no comportamento antes. [...] A consciência é a invenção de um mundo análogo com base na linguagem, um mundo paralelo ao mundo comportamental assim como o mundo da matemática é um mundo paralelo ao mundo das quantidades das coisas”.

A linguagem é a base sobre a qual o mundo análogo é inventado. Essa invenção é a consciência. A linguagem, enquanto metáfora, é o que faz o trânsito entre o mundo real e o mundo consciente. A linguagem é, portanto, uma interface.

Cabe lembrar que a autoridade da voz do solilóquio, da “voz da consciência”, não é como a autoridade da voz das outras pessoas, que de alguma forma modulamos seja guardando alguma distância, seja sustentando alguma opinião a respeito do outro que fala. A autoridade da voz interior é muito mais desafiadora de controlar. A voz contém em si uma tendência para o comando, para a ordem. Não é à toa que obedecer etimologicamente vem de “ouvir voltado a”. 

O que Jaynes descreveu? Ele não descreveu a consciência, mas o ego, que é movido a linguagem. Tudo o que acessamos através da linguagem em nosso interior é o ego. O “eu análogo” ao qual Jaynes se refere é precisamente o ego em ação. Mas quem cria esse eu análogo? Quem o move? Quem o narratiza? Quem o alimenta? Ora, não pode ser ele mesmo. É o noûs, o eu, o “self”, o verdadeiro eu, a autoconsciência, o eu ontológico e hipostático. A origem dessa verdadeira consciência, eis o elemento fundamental que falta às investigações de Jaynes.

Fonte: Julian Jaynes, The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, Mariner Books, Boston, MA, EUA, 1976.

18 de janeiro de 2023

Albert Ellis vs. ego


Muito do que podemos chamar de “ego” humano é algo vago e indeterminado e, quando concebido e classificado de maneira abrangente, interfere na sobrevivência e na felicidade. Certos aspectos do “ego” parecem ser vitais e levam a resultados benéficos: pois as pessoas existem, ou têm vida, por vários anos, e também têm autoconsciência ou consciência de sua existência. Nesse sentido, elas têm singularidade, continuidade e “ego”. O que as pessoas chamam de “eu” ou “totalidade” ou “personalidade”, por outro lado, tem uma qualidade vaga, quase indefinível. As pessoas podem ter características “boas” ou “ruins” – características que as ajudam ou atrapalham em seus objetivos de sobrevivência ou felicidade – mas elas realmente não têm um “eu” que “seja” bom ou mau.

Para aumentar sua saúde e felicidade, a Terapia Racional Emotiva Comportamental (REBT) recomenda que as pessoas resistam à tendência de avaliar seu “eu” ou “essência” e é melhor que apenas avaliem suas ações, traços, atos, características e desempenhos. De certa forma, elas também podem avaliar a eficácia de como pensam, sentem e fazem. Depois de escolherem seus objetivos e propósitos, elas podem avaliar sua eficácia e eficiência na consecução desses objetivos. E, como uma série de experimentos de Albert Bandura e seus alunos mostraram, a crença delas em sua eficácia geralmente os ajuda a se tornarem mais produtivos e realizadores. Mas quando as pessoas dão uma classificação global e geral ao seu “eu” ou “ego”, elas quase sempre criam pensamentos, sentimentos e comportamentos neuróticos e autodestrutivos.

A grande maioria dos sistemas de psicoterapia parece empenhada em – na verdade, quase obcecada por – sustentar, reforçar e fortalecer a “autoestima” das pessoas. Isso inclui sistemas tão diversos como a psicanálise, a teoria da relação de objetos, a terapia gestalt e até mesmo algumas das principais terapias cognitivo-comportamentais. Pouquíssimos sistemas de mudança de personalidade, como o zen-budismo, assumem uma posição oposta e tentam ajudar os humanos a diminuir ou renunciar a alguns aspectos de seus egos; mas esses sistemas tendem a ter pouca popularidade e gerar muita disputa.

Carl Rogers ostensivamente tentou ajudar as pessoas a alcançarem uma “consideração positiva incondicional” e assim a se verem como “boas pessoas” apesar de sua falta de realização. Na verdade, porém, ele as induziu a se considerarem “bem” por terem um bom relacionamento com um psicoterapeuta. Mas isso, infelizmente, faz com que sua autoaceitação dependa da atuação acrítica do terapeuta em relação a eles. Se assim for, isso ainda é uma aceitação altamente condicional, em vez da autoaceitação incondicional que a REBT ensina.

A REBT (Terapia Racional Emotiva Comportamental) constitui uma das poucas escolas terapêuticas modernas que se posicionou contra a classificação do ego e continua a se posicionar ainda mais forte nessa direção à medida que cresce em sua teoria e suas aplicações. Este artigo descreve a posição atualizada da REBT sobre a avaliação do ego e explica por que a REBT ajuda as pessoas a diminuir suas propensões a avaliarem o ego.

ASPECTOS LEGÍTIMOS DO EGO HUMANO

A REBT primeiro tenta definir os vários aspectos do ego humano e endossar seus aspectos “legítimos”. Ela subentende que os principais objetivos ou propósitos de um indivíduo incluem: (1) permanecer vivo e saudável e (2) desfrutar da vida – experimentar muita felicidade e relativamente pouca dor ou insatisfação. Podemos, é claro, argumentar contra esses objetivos; e nem todos os aceitam como “bons”. Mas supondo que uma pessoa os valorize, então ele ou ela pode ter um "ego", "eu", "autoconsciência" ou "personalidade" válidos, que podemos conceber como algo nas seguintes linhas:

1. “Eu existo – tenho uma vitalidade contínua que dura talvez 80 anos ou mais e depois aparentemente chega ao fim, de modo que ‘eu’ não mais existo”.

2. “Eu existo separadamente, pelo menos em parte, de outros humanos e, portanto, posso conceber a mim mesmo como um indivíduo em meu ‘próprio’ direito”.

3. “Eu tenho características diferentes, pelo menos em muitos de seus detalhes, de outros humanos e, consequentemente, meu 'eu' ou minha 'vida' tem um certo tipo de singularidade. Nenhuma outra pessoa em todo o mundo parece ter exatamente as mesmas características que eu, nem se iguala a ‘eu’ ou constitui a mesma entidade que ‘eu’”.

4. “Tenho a capacidade de continuar existindo, se assim decidir, por um certo número de anos — de ter uma existência contínua e de ter algum grau de traços consistentes à medida que continuo existindo. Nesse sentido, permaneço ‘eu’ por muito tempo, mesmo que minhas características mudem em aspectos importantes”.

5. “Tenho consciência, ou consciência de minha continuidade, de minha existência, de meus comportamentos e características e de vários outros aspectos de minha vivência e experiência. Posso, portanto, dizer: ‘Tenho autoconsciência’”.

6. “Tenho algum poder para prever e planejar minha existência ou continuidade futura e para mudar algumas de minhas características e comportamentos de acordo com meus valores e objetivos básicos. Meu ‘comportamento racional’, como apontou Myles Friedman, consiste em grande parte em minha capacidade de prever e planejar meu futuro”.

7. “Devido à minha 'autoconsciência' e minha capacidade de prever e planejar meu futuro, posso mudar consideravelmente minhas características presentes e futuras (e, portanto, 'existência'). Em outras palavras, eu posso, pelo menos parcialmente, controlar-me a ‘mim mesmo’”.

8. “Da mesma forma, tenho a capacidade de lembrar, entender e aprender com minhas experiências passadas e presentes e usar essa lembrança, compreensão e aprendizado a serviço de prever e mudar meu comportamento futuro.”

9. “Posso escolher descobrir o que gosto (desfrutar) e do que não gosto (desgostar) e tentar experimentar mais do que gosto e menos do que não gosto. Eu também posso escolher sobreviver ou não sobreviver”.

10. “Posso escolher monitorar ou observar meus pensamentos, sentimentos e ações para me ajudar a sobreviver e levar uma existência mais satisfatória ou agradável”.

11. “Posso ter confiança (acreditar que existe uma alta probabilidade) de que posso permanecer vivo e me tornar relativamente feliz e livre de dor”.

12. “Posso escolher agir como um hedonista de curto prazo que busca principalmente os prazeres do momento e dá pouca consideração aos do futuro, ou como um hedonista de longo prazo que considera tanto os prazeres do momento quanto os de o futuro e que se esforça para alcançar um grau justo de ambos”.

13. “Posso escolher me ver como tendo valor ou dignidade por razões pragmáticas - porque então tenderei a agir de acordo com meus próprios interesses, buscar prazeres em vez de dor, sobreviver melhor e me sentir bem.”

14. “Posso escolher aceitar-me incondicionalmente – quer me saia bem ou não ou seja aprovado pelos outros. Posso, assim, me recusar a avaliar 'meu eu', 'minha totalidade', 'minha personalidade'. Em vez disso, posso avaliar minhas características, ações, atos e desempenhos - com o objetivo de sobreviver e aproveitar mais minha vida, e não com o objetivo de 'provar meu valor' ou ser 'egoísta' ou mostrar que tenho uma visão 'melhor' ou 'maior' valor do que outros”.

15. “Meu 'eu' e minha 'personalidade', embora, sob aspectos importantes, sejam individualistas e únicos para mim, também fazem parte da minha sociabilidade e da minha cultura. Uma parte extraordinariamente grande do meu "eu" e como "eu" penso, sinto e me comporto é significativamente influenciada - e até criada - por meu aprendizado social e por ser testado em vários grupos. Estou longe de ser apenas um indivíduo por direito próprio. Minha personalidade inclui socialidade. Além disso, estou longe de ser um eremita, mas decidi passar grande parte da minha vida em família, escola, trabalho, vizinhança, comunidade e outros grupos. Os “meus” modos de vida individuais, portanto, fundem-se com as regras “sociais” de vida. Meu “eu” é um produto pessoal e social – e um processo! Minha autoaceitação incondicional (USA) deveria incluir intrinsecamente a aceitação incondicional do outro (UOA). Eu posso – e vou! – aceitar outras pessoas, assim como a mim mesmo, com nossas virtudes e nossas falhas, com nossas realizações importantes e nossos fracassos, só porque estamos vivos e passando bem, só porque somos humanos! Vale a pena lutar pela minha sobrevivência e felicidade, assim como pelo resto da humanidade.

Estes, parece-me, são alguns aspectos “legítimos” da avaliação do ego. Por que legítimo? Porque eles parecem ter alguma “realidade” – isto é, têm alguns “fatos” por trás deles. E porque eles parecem ajudar as pessoas que os endossam a atingir seus valores básicos habituais de sobreviver e sentir-se felizes, em vez de miseráveis.

ASPECTOS AUTODESTRUTIVOS DO “EGO” HUMANO (AUTOAVALIAÇÃO)

Ao mesmo tempo, as pessoas subscrevem alguns aspectos “ilegítimos” do “ego” humano ou da autoavaliação, como estes:

1. “Eu não existo apenas como uma pessoa única, mas como uma pessoa especial. Sou uma pessoa melhor do que as outras pessoas por causa de minhas características marcantes”.

2. “Tenho uma qualidade sobre-humana e não meramente humana. Eu posso fazer coisas que outras pessoas não podem fazer e mereço ser endeusado por fazer essas coisas”.

3. “Se não possuo características marcantes, especiais ou sobre-humanas, sou sub-humano. Sempre que não tenho um desempenho notável, mereço ser demonizado e condenado”.

4. “O universo se preocupa especial e significativamente comigo. Tem um interesse pessoal em mim e quer que eu me saia muito bem e me sinta feliz”.

5. “Preciso que o universo se preocupe especialmente comigo. Se não, sou um indivíduo inferior, não posso cuidar de mim mesmo e devo me sentir desesperadamente miserável”.

6. “Porque eu existo, eu absolutamente tenho que ter sucesso na vida e devo obter amor e aprovação de todas as pessoas que considero importantes”.

7. “Porque eu existo, devo sobreviver e continuar a ter uma existência feliz”.

8. “Porque eu existo, devo existir para sempre e ter imortalidade”.

9. “Eu sou igual às minhas características. Se eu tiver características ruins significativas, eu me classifico como totalmente ruim; e se eu tiver boas características, eu me classifico como uma boa pessoa”-

10. “Eu especial, sou igual aos meus traços de caráter. Se eu trato bem os outros e, portanto, tenho um 'bom caráter', sou uma boa pessoa; e se trato mal os outros e, portanto, tenho um 'mau caráter', tenho a essência de uma pessoa má”.

11. “Para me aceitar e respeitar a mim mesmo, devo provar que tenho valor real - prová-lo mediante competência, destaque e aprovação alheios”.

12. “Para ter uma existência feliz, devo ter – é absolutamente necessário que eu tenha – as coisas que realmente desejo”.

Os aspectos de autoavaliação do ego, em outras palavras, tendem a acabar com você, a prejudicá-lo, a interferir em suas satisfações. Eles diferem enormemente dos aspectos autoindividualizantes do ego. Estes envolvem como ou quão bem você existe. Você permanece vivo como um indivíduo distinto, diferente e único porque possui vários traços e desempenhos e porque gosta de seus frutos. Mas você tem “ego” no sentido de autoavaliação porque pensa magicamente em termos de elevação ou rebaixamento, deificação ou demonização de si mesmo por como ou quão bem você existe. Ironicamente, você provavelmente pensa que avaliar a si mesmo ou ao seu “ego” o ajudará a viver como uma pessoa única e a desfrutar da vida. Bem, geralmente não! Na maioria das vezes, isso talvez permitirá que você sobreviva - mas miseravelmente!

VANTAGENS DO “EGO-ÍSMO” OU AUTOAVALIAÇÃO

O egoísmo, a autoavaliação ou a autoestima não têm vantagens? Certamente sim - e, portanto, provavelmente, sobrevive apesar de suas desvantagens. Que vantagens tem? Tende a motivá-lo a ter sucesso e a obter a aprovação dos outros. Fornece a você um jogo interessante e emocionante de comparar constantemente seus atos e seu “eu” com os de outras pessoas. Muitas vezes ajuda você a impressionar os outros - o que tem um valor prático, em muitos casos. Pode ajudar a preservar sua vida - como quando você se esforça para ganhar mais dinheiro, por motivos egoístas, e assim ajuda sua sobrevivência por meio desse dinheiro.

A autoavaliação serve como uma posição muito fácil e confortável de cair – os humanos parecem ter uma tendência biológica de se envolver nela. Também pode lhe dar um enorme prazer quando você se considera nobre, grande ou excepcional. Pode motivá-lo a produzir notáveis obras de arte, ciência ou invenção. Pode permitir que você se sinta superior aos outros — às vezes, até mesmo como um deus.

O egoísmo obviamente tem vantagens reais. Desistir completamente da autoavaliação equivaleria a um grande sacrifício. Não podemos dizer justificadamente que não traz ganhos, não produz nenhum bem social ou individual.

DESVANTAGENS DO “EGO-ÍSMO” OU AUTOAVALIAÇÃO

Estas são algumas das razões mais importantes pelas quais classificar-se como uma pessoa boa ou má tem imensos perigos e frequentemente o prejudica:

1. Para funcionar bem, a autoavaliação exige que você tenha habilidade e talento extraordinários, ou quase infalibilidade. Pois você só pode elevar seu ego quando se sai bem e, concomitantemente, deprimi-lo quando se sai mal. Que chance você tem de se sair bem ou sempre bem?

2. Ter, na linguagem comum, um ego “forte” ou uma autoestima “de verdade” realmente exige que você seja acima da média ou excepcional. Somente se você tiver um talento especial, provavelmente se aceitará e se avaliará bem. Mas, obviamente, muito poucos indivíduos podem ter habilidades incomuns e geniais. E você atingirá pessoalmente esse nível incomum? Eu duvido!

3. Mesmo que você tenha enormes talentos e habilidades, para aceitar a si mesmo ou estimar-se consistentemente, de uma forma egocêntrica, você tem que exibi-los virtualmente o tempo todo. Qualquer lapso significativo e você imediatamente tende a se rebaixar. E então, quando você se rebaixa, tende a cair mais — um verdadeiro círculo vicioso!

4. Quando você insiste em ganhar “autoestima”, basicamente o faz para impressionar os outros com seu grande “valor” ou “dignidade” como humano. Mas a necessidade de impressionar os outros e obter sua aprovação e, assim, ver a si mesmo como uma “boa pessoa” leva a uma obsessão que tende a dominar grande parte de sua vida. Você busca status em vez de buscar alegria. E você busca aceitação universal – o que você certamente não tem chance de obter!

5. Mesmo quando você impressiona os outros e supostamente ganha “valor” dessa forma, você tende a perceber que o faz em parte agindo e falsificando seus talentos. Conseqüentemente, você se considera um impostor. Ironicamente, então, primeiro você se rebaixa por não impressionar os outros; mas então você também se rebaixa por impressioná-los falsamente!

6. Quando você avalia a si mesmo e consegue dar a si mesmo uma classificação superior, você se ilude pensando que tem superioridade sobre os outros. Você pode realmente ter algumas características superiores; mas você sente devotamente que se tornou uma pessoa verdadeiramente superior - ou semideus. E essa ilusão lhe dá uma sensação artificial ou falsa de “autoestima”.

7. Quando você insiste em se classificar como bom ou mau, tende a se concentrar em seus defeitos, responsabilidades e falhas, pois tem certeza de que eles o transformam em uma "pessoa podre". Ao focar nesses defeitos, você os acentua, muitas vezes piorando-os; interferindo na mudança deles; e adquirindo uma visão negativa generalizada de si mesmo que frequentemente acaba em uma autodepreciação flagrante.

8. Ao avaliar a si mesmo, em vez de apenas avaliar a eficácia de seus pensamentos, sentimentos e ações, você sustenta uma filosofia de que tem que provar que é bom; e como sempre existe uma boa chance de que não seja bom, você tende a permanecer subjacente ou abertamente ansioso praticamente o tempo todo. Além disso, você pode estar continuamente à beira da depressão, desespero e sentimentos de intensa vergonha, culpa e inutilidade.

9. Quando você avalia a si mesmo com preocupação, mesmo que consiga obter uma boa classificação, você o faz à custa de ficar obcecado com o sucesso, a realização, a realização e a excelência. Mas esse tipo de concentração no sucesso o desvia de fazer o que você realmente deseja fazer e do objetivo de tentar ser feliz: algumas das pessoas mais bem-sucedidas, na verdade, permanecem bastante infelizes.

10. Da mesma forma, ao lutar fortemente pela excelência, sucesso e superioridade, você raramente para para se perguntar: "O que eu realmente quero - e quero para mim?" Então você não consegue encontrar o que realmente gosta na vida.

11. Aparentemente, seu foco em alcançar grandeza e superioridade sobre os outros e, assim, obter uma autoavaliação elevada serve para ajudá-lo a se sair melhor na vida. Na verdade, ajuda você a se concentrar em seu suposto valor e dignidade, e não em sua competência e felicidade; e, conseqüentemente, você falha em alcançar muitas coisas que de outra forma poderia alcançar. Como você precisa provar sua total competência, muitas vezes você tende a se tornar menos competente - e às vezes se retira da competição.

12. Embora a autoavaliação ocasionalmente possa ajudá-lo a realizar atividades criativas, ela frequentemente tem o resultado oposto. Por exemplo, você pode ficar tão preso ao sucesso e à superioridade que, de forma não criativa e obsessiva-compulsiva, busca esses objetivos, em vez da participação criativa em arte, música, ciência, invenção ou outras atividades.

13. Quando você avalia a si mesmo, tende a se tornar egocêntrico em vez de centrado no problema. Portanto, você não tenta resolver muitos dos problemas práticos e importantes da vida, mas concentra-se principalmente em seu próprio umbigo e no pseudoproblema de provar a si mesmo em vez de se encontrar.

14. A autoavaliação geralmente ajuda você a se sentir anormalmente autoconsciente. A autoconsciência, ou o conhecimento de que você tem uma qualidade contínua e pode desfrutar-se de si mesmo ou não, pode trazer grandes vantagens. Mas a autoconsciência extrema, ou espionar continuamente a si mesmo e avaliar o seu desempenho, leva essa boa característica a um extremo desagradável e pode interferir seriamente na sua felicidade.

15. A autoavaliação estimula muito o preconceito. Consiste em uma supergeneralização: “Porque um ou mais dos meus traços parecem inadequados, eu classifico como uma pessoa totalmente inadequada”. Isso significa, na verdade, que você se sente preconceituoso contra si mesmo por alguns de seus comportamentos. Ao fazer isso, você também tende a se sentir preconceituoso em relação aos outros por seu mau comportamento — ou pelo que considera seus traços inferiores. Assim, você pode se sentir fanático por negros, judeus, católicos, italianos e vários outros grupos que incluem algumas pessoas de quem você não gosta.

16. A autoavaliação leva à necessidade e à compulsão. Quando você acredita: “Devo me rebaixar quando tenho uma característica ruim ou um conjunto de características ruins”, geralmente também acredita que “tenho que ter boas características ou desempenhos” e se sente compelido a agir de certas maneiras “boas” - mesmo quando você tem poucas chances de fazê-lo consistentemente.

POR QUE “EGO-ÍSMO” E AUTOAVALIAÇÃO SÃO ILÓGICOS

Dessas e de outras maneiras, tentar ter “força do ego” ou “autoestima” leva a resultados nitidamente ruins: ou seja, interfere em sua vida e felicidade. Para piorar ainda mais as coisas, ego-classificações ou autoavaliações são infundadas, pois autoavaliações precisas ou “verdadeiras” ou classificações globais são virtualmente impossíveis de serem feitas. Pois uma classificação global ou total de um indivíduo envolve os seguintes tipos de contradições e pensamento mágico:

1. Como pessoa, você tem características quase inumeráveis — praticamente todas elas mudam de dia para outro ou de ano para outro. Como uma única classificação global de "você", portanto, pode ser significativamente aplicada a "todo você" - incluindo suas características em constante mudança?

2. Você existe como um processo contínuo — um indivíduo que tem passado, presente e futuro. Qualquer classificação de sua identidade, portanto, se aplicaria apenas a “você” em pontos únicos no tempo e dificilmente à sua continuidade.

3. Para dar uma classificação a “você” totalmente, teríamos que avaliar todas as suas características, ações, atos e desempenhos e, de alguma forma, adicioná-los ou multiplicá-los. Mas essas características são valorizadas de forma diferente em diferentes culturas e em diferentes épocas. E quem pode, portanto, avaliá-los ou ponderá-los legitimamente, exceto em uma determinada cultura em um determinado momento e em um grau muito limitado?

4. Se obtivermos classificações legítimas para cada uma de suas características passadas, presentes e futuras, que tipo de matemática empregaríamos para totalizá-las? Podemos dividir pelo número de características e obter uma classificação global “válida”? Poderíamos usar aritmética simples? Classificações algébricas? Classificações geométricas? Classificações logarítmicas? Qual?

5. Para avaliar “você” de forma completa e precisa, teríamos que conhecer todas as suas características, ou pelo menos as “importantes”, e incluí-las em nosso total. Mas como poderíamos conhecê-las todas? Todos os seus pensamentos? Suas emoções? Suas “boas” e “más” ações? Suas realizações? Seu estado psicológico?

6. Dizer que você não tem valor ou que não tem dignidade envolve várias hipóteses improváveis (e infalsificáveis): (1) que você tem, inatamente, uma essência de inutilidade; (2) que você nunca poderia ter qualquer valor; e (3) que você merece condenação ou punição eterna por ter o infortúnio da inutilidade. Da mesma forma, dizer que você tem grande valor envolve a hipótese improvável de que (1) você simplesmente tem um valor superior; (2) você sempre o terá, não importa o que faça; e (3) você merece a deificação ou recompensa eterna por ter essa dádiva de grande valor. Nenhum método científico que confirme ou falsifique essas hipóteses parece existir.

7. Quando você postula dignidade ou inutilidade global, você quase que inevitavelmente entra em um pensamento circular. Se você se vê como tendo valor intrínseco, tenderá a ver suas características como boas e terá um efeito de halo. Então você concluirá falsamente que, por ter essas boas características, você tem valor intrínseco. Da mesma forma, se você se considera sem valor, verá suas características “boas” como “ruins” e “provará” sua hipotética falta de valor.

8. Você pode acreditar pragmaticamente que “eu sou bom porque eu existo”. Mas isso permanece como uma hipótese tautológica e improvável, na mesma linha da declaração igualmente improvável (e indisprovável), “Eu sou mau porque existo”. Assumir que você tem valor intrínseco porque permanece vivo pode ajudá-lo a se sentir mais feliz do que se presumir o contrário. Mas filosoficamente, continua sendo uma proposição insustentável. Você também pode dizer: “Tenho valor porque Deus me ama” ou “Não tenho valor porque Deus (ou o Diabo) me odeia”. As suposições fazem com que você sinta e aja de certas maneiras; mas parecem essencialmente inverificáveis e infalsificáveis.

Por razões como as que acabamos de esboçar, podemos tirar as seguintes conclusões: (1) Você parece existir, ou ter vitalidade, por vários anos, e também parece ter consciência, ou percepção de sua existência. Nesse sentido, você tem uma singularidade humana, continuidade ou, se preferir, “ego”. (2) Mas o que você normalmente chama de seu “eu” ou sua “totalidade” ou sua “personalidade” tem uma qualidade vaga, quase indefinível; e você não pode legitimamente dar a ele uma classificação global ou uma "nota no boletim". Você pode ter traços ou características boas e ruins que o ajudam ou atrapalham em seus objetivos de sobrevivência e felicidade e que permitem que você viva de forma responsável ou irresponsável com os outros. Mas você ou seu “eu” realmente “não são” bons ou maus. (3) Quando você atribui a si mesmo uma classificação global, ou tem “ego” no sentido usual do termo, você pode se ajudar de várias maneiras; no geral, porém, você tende a fazer muito mais mal do que bem e se preocupa com objetivos tolos e laterais. Muito do que chamamos de “transtorno” emocional ou “sintomas” neuróticos resulta direta ou indiretamente da avaliação global de si mesmo e de outros humanos. (4) Portanto, é melhor você resistir à tendência de avaliar seu “eu” ou sua “essência” ou sua “totalidade” e é melhor que apenas avalie suas ações, traços, atos, características e desempenhos.

Em outras palavras, é melhor você reduzir muito do que normalmente chamamos de seu “ego” humano e reter as partes dele que podem ajudá-lo a experimentar a vida, escolher o que pensa provisoriamente que quer fazer ou evitar e aproveitar para descobrir o que é “bom” para você e para o grupo social no qual você escolheu viver.

Mais positivamente, as duas principais soluções para o problema da autoavaliação consistem em uma resposta elegante e outra deselegante. A solução deselegante envolve você fazer uma definição ou declaração arbitrária, mas prática, sobre si mesmo: “Eu me aceito como bom ou me avalio como bom porque existo”. Essa proposição, embora não absoluta e discutível, tenderá a fornecer a você sentimentos de autoaceitação ou autoconfiança e tem muitas vantagens e poucas desvantagens. Quase sempre funcionará; e impedirá que você tenha sentimentos de autodepreciação ou inutilidade enquanto você os mantiver.

Mais elegantemente, você pode aceitar esta proposição: “Eu não tenho valor intrínseco ou inutilidade, mas apenas vitalidade. É melhor avaliar minhas características e atos, mas não minha totalidade ou 'eu'. Eu me aceito totalmente, no sentido de que sei que tenho vitalidade e escolho sobreviver e viver o mais feliz possível e com o mínimo de dor desnecessária. Exijo apenas esse conhecimento e essa escolha — e nenhum outro tipo de autoavaliação”.

Em outras palavras, você pode decidir apenas classificar ou medir seus atos e desempenhos – seus pensamentos, sentimentos e comportamentos – vendo-os como “bons” quando auxiliam seus objetivos e valores e como “ruins” quando sabotam sua desejos e preferências sociais. Mas você pode simultaneamente decidir não avaliar seu “eu”, “essência” ou “totalidade”. Sim, de jeito nenhum!

A Terapia Racional Emotivo Comportamental (REBT) recomenda esta segunda solução, mais elegante, porque parece mais honesta, mais prática e leva a menos dificuldades filosóficas do que a deselegante. Mas se você insiste absolutamente em uma autoavaliação, recomendamos que se classifique como “bom” apenas porque está vivo. Esse tipo de “egoísmo” o colocará em poucos problemas!


Burns, D.D. (1993).  Ten Days to Self-Esteem.  New York: Morrow. 

Dryden, W. (1994).  Overcoming Guilt!  London: Sheldon Press. 

Dryden, W. (Ed.). (1995). Rational Emotive Behavior Therapy: A  Reader.  London: Sage. 

Dryden, W., & Gordon, J. (1991).  Think Your Way to Happiness.  London: Sheldon Press. 

Dryden, W. (1995). Brief Rational Emotive Behavior Therapy. London: Wiley. 

Ellis, A. (1962).  Reason and Emotion in Psychotherapy. Secaucus, N.J.: Citadel. 

Ellis, A. (1972).  Psychotherapy and the Value of a Human Being. New York: Institute for Rational-Emotive Therapy. Reprinted in  Ellis, A. & Dryden, W., The Essential Albert Ellis.  New York:  Springer, 1990. 

Ellis, A. (Speaker).  How to Stubbornly Refuse to Be Ashamed of  Anything. Cassette recording.  New York: Institute for Rational- Emotive Therapy. 

Ellis A. (1988).  How to Stubbornly Refuse to Make Yourself Miserable About Anything—Yes, Anything!  Secaucus, N.J.: Lyle Stuart. 

Ellis, A. (Speaker). (1989).  Unconditionally Accepting Yourself and  Others. Cassette recording.  New York: Institute for Rational- Emotive Therapy. 

Ellis, A. (1994).  Reason and Emotion in Psychotherapy.

Fonte: Albert Ellis, REBT Diminishes Much of the Human Ego, Albert Ellis Institute, Nova York, NY, EUA, 1996.

13 de janeiro de 2023

Para uma metafísica renovada


Um dos mais criativos pensadores da atualidade, o filósofo e teólogo grego Christos Yannaras faz o que poucos ousam fazer: criticar duramente a redução do evento eclesial cristão em uma religião, seja ela o catolicismo romano, as várias "denominações" protestantes ou o "ortodoxismo", como chama aquilo que é normalmente pregado pela Igreja Ortodoxa. A partir de seus estudos de Heidegger, Yannaras se deu conta do erro crasso cometido no Ocidente, mas não só, ao descrever a estrutura da realidade (a "metafísica") com base em uma "onticidade ôntica", ou seja, com base no ser atomizado, isolado, seja na forma do Ser, do Ser Supremo, do Sobre-Ser, do Não-Ser etc. cuja suposta verdade autoevidente, em vez de servir de refutação à ideia mesma, levou-nos a todos nós ao beco sem saída do niilismo existencial e metafísico que nos encontramos. É sua tentativa intelectual, e por que não dizer hercúlea, de apontar esse erro e estimular um retorno à metafísica helênica da polis grega, qual seja, em que o pressuposto epistemológico de qualquer investigação e descrição metafísica deva ser a "relação", não o "ser", conforme evidenciado por exemplo pelas alcunhas Pai, Filho e Espírito, cuja relação de amor absolutamente voluntário e livre de quaisquer necessidades ou determinações deve ser a base mesma para a hermenêutica cristã. Os impactos práticos desse desvio metafísico são brutais, seja no campo das organizações eclesiásticas, seja na política, seja obviamente na teologia, seja na espiritualidade. A desumanidade, literalmente falando, atinge inclusive a sexualidade e a metafísica do corpo, com consequências psicológicas desastrosas.

Esses e outros temas são tratados em entrevista conduzida por Norman Russell, seu principal tradutor no Ocidente. Selecionei alguns trechos de interesse.

* * * 

Um pressuposto do pensar filosoficamente (um pressuposto real, não um a priori metodológico-intelectual) é que deve haver um sujeito do ato de pensar filosoficamente, um sujeito racional capaz de pensamento filosófico. Devo existir para poder pensar filosoficamente. 

A diferença entre o Ocidente e a tradição eclesial helênica reside no seguinte: o Ocidente diferencia o "existir" do "ser relacionado", e toma a relação como uma propriedade-capacidade que caracteriza apenas certos existentes (uma marca de reconhecimento dos seres racionais), enquanto o helenismo eclesial reconhece a existência como um evento de relações ativas – identifica "existência" com "relação". A compreensão que tiro pessoalmente do testemunho da experiência eclesial é que o existir em si constitui um ato de relação. Eu não existo primeiro e depois entro em relação; Eu existo porque tenho relação. 

No caso do Princípio Causal do existir e dos existentes, a linguagem da experiência eclesial é clara. O Princípio Causal não é uma divindade individual, um ser em si mesmo, "um ser que é supremamente divino, um gênero mantido na mais alta honra" (como Zeus, Uranos e Cronos). O que vem primeiro existencialmente e definitivamente não é a Divindade e, na sequência, seu triplo caráter como uma propriedade ou marca de reconhecimento. O Princípio Causal do que existe não é o que é porque é "Deus", mas porque é o Pai: aquele que constitui a existência como relação (isto é, como a liberdade do amor), aquele que "gera" o Filho e faz com que o Espírito "proceda". Seu ser não é Divindade; é triplicidade, relação -- "Deus é amor". 

O sujeito humano corresponde a isso. Nós não existimos primeiro e depois entramos em relação, mas existimos porque estamos relacionados; nossa existência é a realização hipostática (existencialmente real) de uma resposta a um chamado-à-relação, à convocação pela qual a Causa da existência nos chamou do não-ser para o ser. O chamado de Deus me constitui como existência, e o modo de minha existência é a liberdade de dar substância ao meu sim ou ao meu não a um chamado-à-relação erótico-amoroso com meu Criador; é a liberdade de perceber minha existência como uma afirmação ou negação em desenvolvimento do amor divino por minha "pessoa". 

Mesmo se examinarmos a existência humana do ponto de vista biológico, ela também é um evento de relações dinâmicas. Os seres humanos não existem se não respiram; se não forem alimentados com comida; e se não têm relação com os materiais que garantem vestimentas, instrumentos e abrigo. Um sujeito racional não é constituído pela linguagem (isto é, pelo pensamento) exceto por meio de uma relação com sua mãe – Lacan nos mostrou que “o primeiro significante se manifesta no lugar do Outro (no seio da mãe)”; é aí, na relação, que nasce a linguagem, isto é, o sujeito racional. 

A teoria da relatividade, o princípio da incerteza e o estudo do campo quântico também mudaram nossa percepção das existências inanimadas.

Percebemos que o universo sensível, o macrocosmo e o microcosmo, não é uma totalidade de entes dados, mas uma totalidade de relações ativas. Não há “algo” no universo “antes” do acontecimento ativo das relações que o constituem. Se distinguirmos o ser da relação, à maneira dos principais pensadores da tradição ocidental (Agostinho, Tomás de Aquino, Kant), surge inevitavelmente a pergunta: o que é o ser? Perguntamos sobre ser como "alguma coisa", não como algum tipo de como (não como um modo). O impasse a que nos conduz esse questionamento "ôntico" do ser é brilhantemente resolvido por Heidegger: a questão "o que é o ser?" necessariamente nos liga a um a priori dogmático ou a um niilismo consistente (logicamente e empiricamente).

* * *

O agnosticismo é uma tese (thesis); apofatismo é uma atitude (stasis). A tese expressa uma certeza estanque que funciona como uma convicção ideológica, atômica: "Estou convencido de que não posso saber se alguma realidade metafísica realmente existe; não tenho nem o poder nem os meios para chegar a tal conhecimento". Assim, o sujeito da realidade metafísica ou de sua inexistência deixa de se apresentar como um problema. Não há margem para fazer perguntas ou fazer uma investigação. A adoção de uma certeza tão impermeável e fechada é o que chamamos de agnosticismo.

O apofatismo é uma atitude: "Estou aberto à possibilidade de que aquilo que desejo saber possa existir ou não. Mas identifico esse conhecimento possível (da experiência) com a verificação empírica, não com a compreensão dos significantes linguísticos do que é buscado". O apofatismo não se refere simplesmente aos significantes linguísticos da metafísica; é um princípio epistemológico geral. Ela insiste na diferença [na descontinuidade, diria eu] entre os significantes e o que eles significam, na diferença entre a forma de conhecimento veiculada pela compreensão dos significantes e o conhecimento experiencial das coisas significadas.

Gosto de dar o seguinte exemplo: uma criança que perdeu a mãe no momento do nascimento compreende o conteúdo intelectual do termo "amor materno", mas não conhece o amor materno. Alguém pode ter aprendido as regras de natação de cor, mas pode nunca ter mergulhado no mar. Essa pessoa não sabe o que é nadar.

A atitude de apofatismo, como mostrei em meus livros, é um princípio epistemológico que desde a antiguidade caracteriza a tradição grega. Essa atitude pressupunha a verificação social do conhecimento, o ditado heraclitiano "o que compartilhamos, verificamos; o que possuímos em particular, falsificamos" - o conhecimento é verificado "quando todos compartilham a mesma opinião e cada um a testemunha experimentalmente" (Aristóteles). O sentido etimológico da palavra grega para "verdade", a-lethia, é característico. A palavra é formada a partir do alfa privativo e lethe ("ocultação"). A-lethia é non-lethe, "desocultação". Conseqüentemente, "aparição" (emphaneia) ou "manifestação" (phanereisis) é um "vir à luz". Pela faculdade da visão, temos nossa experiência mais direta de participação na realidade. Não é por acaso que as antigas palavras gregas sobre o funcionamento do conhecimento se referem ao sentido da visão: falamos de ideias, e de forma ou eidos (de idein, "ver"), de teoria (de theeirein, "observar"), de fenômenos (de phainein, "trazer à luz") -- e até mesmo o verbo phemi ("eu digo") vem de piphauskei ("eu torno manifesto").

As expressões gêmeas "apofatismo" e "verificação social do conhecimento" diferenciam a epistemologia grega da epistemologia que moldou o Ocidente pós-romano (bárbaro). E porque a diferença entre modos de vida, isto é, entre culturas, é moldada pela epistemologia predominante em qualquer sociedade (não por sua ontologia), toda a civilização do Ocidente pós-romano foi moldada em linhas bem diferentes do modo grego.

Um exemplo característico é este: enquanto para um grego a verdade é uma experiência de visão, uma participação na aparência/manifestação, para um ocidental a verdade é a "coincidência da coisa pensada com o conceito" (adaequatio rei et intellectus). A coincidência do objeto com sua concepção intelectual em meu entendimento definiria e esgotaria a verdade. O intelecto sozinho seria suficiente para o conhecimento e apropriação da verdade; a concepção intelectual é o real existente, não sua verificação sensorial (daí o axioma cartesiano: cogito ergo sum).

* * *

A verificação comunitária é algo diferente da aceitação coletiva ou em massa. A primeira é uma conquista da libertação da necessidade instintiva egocêntrica da posse da "verdade", uma conquista da relação (de recepção/comunhão) com a afirmação empírica também de nossos semelhantes. Este último é um abandono da liberdade, um escoramento da exigência egocêntrica de revestir a "verdade" com garantias "objetivas" (de autoridade, prova sistemática, utilidade manifesta, etc.).

A experiência comum confirma que a afirmação empírica atômica desliza facilmente para a ilusão -- é facilmente influenciada pelo que é desejado psicologicamente, pelo que satisfaz o apetite de prazer e assim por diante. A verificação comunitária das afirmações atômicas, no entanto, não é uma receita fácil: como todo evento de relações de comunhão, é o produto de uma luta pela libertação da tendência instintiva de autoafirmação e autossuficiência egoísta, uma conquista de nos libertarmos do individualismo existencial, com o objetivo de nos acolhermos e nos coordenarmos empiricamente com o testemunho do testemunho experiencial dos outros. A luta pela verificação é existencial; o campo de verificação é a linguagem.

* * *

Lembro-me de uma conhecida jornalista que me entrevistou uma noite na televisão grega. Estávamos discutindo a crise social na Grécia atual e suas consequências culturais e antropológicas. De repente, e sem nenhuma conexão real com o fluxo lógico de nossa discussão, a jornalista me perguntou em tom de brincadeira, de maneira bastante direta: "Você realmente acredita em Deus?"

Reagindo espontaneamente, eu disse imediatamente: "Você acredita em Mozart?" E expliquei: conheço Mozart porque conheço e amo sua obra. Em sua obra, descubro a alteridade da existência pessoal de Mozart – o caráter único, diferente e irrepetível de sua pessoa. Eu o conheço com muito mais imediatismo e realidade do que, digamos, algum vizinho contemporâneo dele que o encontrava todos os dias na rua, mas não conhecia suas composições musicais.

A fé (confiança) em Deus é uma experiência de relação, não uma certeza intelectual. A relação começa com a descoberta de sua alteridade pessoal na beleza e na sabedoria da realidade sensível – da mesma forma que descobrimos um pintor por meio de sua pintura e um compositor por meio de sua música. E esse conhecimento que é transmitido pela relação tem a dinâmica constantemente aperfeiçoada, e nunca totalmente realizada, do amor erótico. A pergunta "Você acredita em Deus?" significa (pelo menos na língua grega): "Você confia nele?" E para confiar nele, você deve conhecê-lo, pelo menos por seu obra, no grau necessário para ganhar sua confiança. A partir daí, o conhecimento da sua pessoa é tão ilimitado como o conhecimento da pessoa humana: aperfeiçoa-se constantemente sem nunca atingir o seu limite.

Argumentos a favor e contra a existência de Deus referem-se a "convicções" individuais, pontos de vista ideológicos e escolhas psicológicas, não ao conhecimento de Deus. Eles nos mantêm presos a um nível infantil - eu me aventuraria a dizer que a "filosofia da religião", se ela coloca tal problema de argumentos a favor e contra, é pura infantilidade.

* * *

A menos que eu esteja enganado, o que chamamos de teologia da Igreja é um testemunho de sua experiência. Começa com o testemunho dos apóstolos sobre a pessoa histórica de Cristo. Seus discípulos e apóstolos testemunham que, no caso dessa pessoa, "os limites da natureza foram superados": as leis/necessidades que regem a vida animada criada foram revogadas/aniquiladas. Cristo não é um indivíduo natural dotado de poderes sobrenaturais (um "faquir" que opera "milagres"), mas uma existência livre de qualquer determinação de natureza ou essência. Ele é um ser humano livre (e capaz de libertar seus semelhantes) da sujeição ao peso da natureza, à decadência da natureza e à finitude da natureza (por exemplo, no caso dos cinco pães e dois peixes), e finalmente está livre da morte. Esta sua liberdade existencial é confirmada por "sinais" específicos, por manifestações práticas de liberdade.

Cristo diz de si mesmo que é o Filho Logos (manifestação) de Deus Pai; que foi "enviado" para manifestar Deus à humanidade como Pai, Filho e Espírito consolador. Estas três palavras, "Pai", "Filho" e "Espírito", aparecem no "kerygma" cristão desde o início. Eles (e apenas estes três) constituem a "boa nova" da Igreja, o anúncio da alegria que trazem ao mundo aqueles que experimentaram a presença histórica de Cristo.

Que "alegria" essas três palavras trazem? A proclamação, sujeita à confirmação experiencial, de que o Princípio Causal da existência e daquilo que existe não é uma "divindade" inexplicável dada, uma entidade predeterminada por necessidade axiomática para ser aquilo que é (Ser em sentido último, divino, poder transcendente, etc.) -- não é o Princípio Causal daquilo que existe no sentido de uma necessidade cega. É uma existência autoconsciente, racional (comunicante), livre de qualquer pré-determinação, autodeterminada existencialmente como liberdade de amor. Existe porque quer existir, e realiza seu livre arbítrio em hipóstases que existem porque amam e somente para amar. É por isso que eles podem ser significados na linguagem humana não pelos significantes de entidades individuais (Zeus, Apolo ou Hefesto), mas por nomes que revelam relação: paternidade, filiação, unidade e diferença.

O Jesus histórico, o ungido de Deus, confirma por sua existência que Deus é livre de sua divindade, e por isso pode também existir sem mudança ou alteração como ser humano, livre também das limitações da humanidade, como sua ressurreição dentre os mortos testifica. Sua liberdade de limitações existenciais não é uma propriedade necessária; é um fato do livre arbítrio, o modo do amor, um modo da liberdade existencial divina “enxertada” (Romanos 11:17) na natureza humana, dada como uma potencialidade para a existência da humanidade.

A Igreja – ecclesia – é a realização deste dom divino constituído pela encarnação de Deus: é o modo da Trindade, o modo da libertação de toda necessidade existencial, tornada realidade a partir das existências humanas criadas -- é a existência como relação; existência como amor, ressurreição e imortalidade; a existência como dom de Deus recebida livre e ativamente pela humanidade. Tanto no Deus triádico quanto no ser humano eclesial, a vontade ou liberdade não é uma propriedade individual, algo exercido ou conquistado, mas um fato e realização da autotranscendência da relação –- é o amor como modo de existência.

Consequentemente, o Evangelho da Igreja, testemunho da experiência eclesial, não tem elementos dependentes do seu “contexto” histórico numa cultura específica, de modo que quando a cultura muda, é inevitavelmente necessário que o significado da experiência eclesial mude também. A Igreja através dos séculos não tem idéias, proposições ou visões hermenêuticas sobre Deus e a metafísica. A Igreja apenas registra sua experiência de que, se muda o modo de existência -- se a humanidade quer existir e luta por isso apenas para amar e porque ama, se luta para se libertar do ego -- então sua vida se torna uma celebração, antecipação da liberdade que Cristo concedeu à natureza humana.

O único elemento mutável neste depósito de testemunho eclesial é a linguagem. Somente a linguagem da relação, a expressão do amor, pode ser constantemente alterada e renovada sem que o poder da nova expressão jamais se esgote. A humanidade continua a produzir literatura erótica, poesia de amor, porque continuam existindo seres humanos que vivem ativamente o amor e o testemunham –- ninguém pensou em exigir que a poesia de amor tenha um “contexto histórico” com condições tópicas histórico-sociais (mutáveis).

Há dois grupos distintos que guardam absolutamente o mesmo sentido pueril do "evangelho" como ideologia: (1) os chamados "conservadores" que fazem da letra das formulações patrísticas um ídolo porque precisam revestir seu ego de "certezas" (os "fanáticos", "ultraortodoxos", "integristas" e "defensores do dogma e dos cânones"); e (2) os chamados "progressistas" ou "modernistas", que se engajam em "diálogos" ou "aberturas" para cada "cultura" e cada "nova tendência". Os membros de ambos os grupos são vítimas da mesma religiosidade individualista do fato eclesial.

* * *

A theosis do ser humano de que fala a experiência eclesial é, portanto, sinônimo de sua salvação. Os seres humanos são "salvos" (tornam-se seguros/íntegros, e mesmo sendo criados, atingem a totalidade/integridade da existência e da vida); eles alcançam a "semelhança" com Deus que era o objetivo potencial de sua criação à imagem de Deus. Nas palavras de Gregório de Nissa, "o homem sai de sua própria natureza, tornando-se imortal da mortalidade, puro da impureza, eterno da impermanência e totalmente deus de seu estado humano" (On the Beatitudes 7 [PG 44:1280C-D]). Ou como Máximo, o Confessor, expressa: "Que devemos ser totalmente de Deus somente, refletindo o brilho divino em todos os movimentos de nossa alma e corpo. E, para simplificar, tornemo-nos receptivos a Deus inteiro e completamente totalmente deuses pela graça, sem se tornar idêntico a ele com respeito à essência" (Carta 1 [PG 91:376A-B]).

O que salva os seres humanos e os deifica não são suas conquistas éticas individuais, seus feitos de virtude individual, seu ascetismo heróico ou sua preeminência na luta contra a carne. O que os salva e deifica é a participação na Igreja, no modo da Igreja (a comunidade eclesial). O modo da Igreja é o modo de Cristo, que encarnou (fez o modo da humanidade) o modo do amor triádico: que também os seres humanos devem existir extraindo sua existência não de sua natureza, que está sujeita às necessidades, mas devem existir porque amam e são amados. A salvação/deificação de um ser humano não é uma conquista do indivíduo; é um dom eclesial. Com a Igreja, o ser humano realiza o modo de Cristo, a encarnação do modo do amor triádico.

Somos salvos porque somos amados por Cristo, nosso esposo amante; pela santíssima mãe de Deus; e pelos santos da Igreja - esta tempestade concentrada de amor hipostasia (torna uma existência real de) todos os seres humanos que livremente e ativamente dão seu consentimento, o "amém" de seu auto-abandono, à amorosa comunidade eclesial de pessoas do mesmo tipo.

Consequentemente, a salvação/teose que buscamos não é a sobrevivência ilimitada como indivíduos, mas a totalidade (o pleroma, ou plenitude) de toda relação amorosa que, no modo do criado, vivemos de forma fragmentária, deficiente. Se mesmo na terra, ligados como estamos à necessidade, sentimos algo da maravilha do amor; o esplendor da beleza; a euforia da criação e inovação; a alegria de ter filhos; o deleite de compartilhar nossa existência com outro, de entregar nosso corpo em casamento, de saborear o ilimitado da alteridade pessoal na expressividade da arte -- se todas essas coisas tornam a existência arrebatadora, mesmo sujeita à decadência e à morte, o que aguardamos "em esperança" é a sua conclusão e cumprimento: "As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu,e não subiram ao coração do homem,são as que Deus preparou para os que o amam". (1 Cor 2:9).

* * *

Gostaria de vos recordar a admirável frase de São Máximo, o Confessor: "Sem desejo não há anseio, cujo fim é o amor".

São Máximo nos diz, se o estou interpretando corretamente, que o objetivo, a meta (o "fim") do anseio é o amor (agape). Amar significa sair do meu eu egoísta, libertar-me do autointeresse natural do impulso, para admitir o outro como participante da minha vida e existência, para compartilhar a vida e a existência com o "outro", o que significa minha vontade, minhas perspectivas e meus impulsos e desejos naturais. Significa que o “outro” deve tornar-se para mim o pressuposto e a potencialidade da minha renúncia à minha atomicidade existencial e ao meu interesse próprio. Significa que toda a minha existência deve ser amor "à semelhança" da existência de Deus. E esse milagre deve ser realizado "imperceptivelmente", sem a menor consciência de que estamos almejando uma recompensa. A liberdade deve ser alcançada pelo modo da criação através da aceitação humilde das necessidades da criação. Assim, o desejo e o anseio se manifestam como elementos da criação da humanidade "à imagem de Deus", elementos de que foi dotada a natureza da humanidade, de cada ser humano. O "poder de amar", o principal elemento de ser "à imagem", é semeado na natureza humana -- "como se um homem lançasse semente à terra; e dormisse, e se levantasse de noite ou de dia, e a semente brotasse e crescesse, não sabendo ele como" (Mc 4.26-28).

É claro que o amor não deixa de ser uma potencialidade, não uma necessidade como o são o desejo e o anseio, mas uma potencialidade que (eu seria ousado em dizer) a natureza "oferece" à pessoa, através do desejo e do anseio. A liberdade explora o desejo e o anseio para alcançar o amor kenótico, para realizar pelo eros para os corpos o eros de Cristo para a Igreja. 

A frase de São Máximo subverte radicalmente o medo da sexualidade que (de modo silencioso mas atormentador) é inato na pessoa religiosa. Eu diria que Máximo completa a tese de Paulo sobre a realização, através das relações sexuais, da recíproca doação e auto-oferta que faz do matrimônio um "mistério" (ou "sacramento"), isto é, uma manifestação da Igreja, do modo do reino. Infelizmente, a religiosidade do evento eclesial tornou a sexualidade culpada por definição na consciência de grande parte da população cristã e não cristã. A incompatibilidade do sacerdócio com a sexualidade no catolicismo romano e a proibição de um segundo casamento para clérigos viúvos no "ortodoxismo" estão entre as manifestações mais desumanas da versão religiosa da sexualidade como "poluição" e "impureza".

E essa perversão continua até hoje. Deixe-me lhe dar um exemplo. Pelo que você mesmo diz, de acordo comigo, conforme deduzo de nossas discussões, a grande maioria dos cristãos na Europa hoje, independentemente a qual "confissão" pertençam (sem excetuar os "ortodoxos") estão absolutamente certos de que o a salvação que a Igreja prega é individual, que cada um de nós será salvo ou punido eternamente de acordo com nossas virtudes individuais ou nossos pecados individuais, com nossos muitos ou inexistentes méritos. E o que exatamente significa "salvação" parece muito confuso. Geralmente é considerado uma extensão da existência individual, do ego, na eternidade, ou seja, no tempo linear sem fim. Mas mesmo a simples concepção intelectual de uma existência que nunca termina gera pânico na humanidade; é um pesadelo - e especialmente quando esta existência sem fim é definida como um "repouso abençoado", uma aposentadoria definitiva, uma alegria que brota da inatividade.

Como podem os homens considerar como uma "boa nova" a promessa de uma passividade tão terminal, quando nesta terra experimentaram a alegria da criação, a euforia da pesquisa, a embriaguez da constante descoberta da beleza, o êxtase do amor, a maravilha da trazer filhos ao mundo?

Fonte: Christos Yannaras e Norman Russell, Metaphysics as a Personal Adventure, St Vladimir's Seminary Press, Yonkers, NY, EUA, 2017.