26 de janeiro de 2015

A subclasse


Um espectro assombra o mundo ocidental: a “subclasse”.

Essa subclasse não é pobre, ao menos pelos padrões que prevaleceram ao longo de grande parte da história humana. Existe, em graus variados, em todas as sociedades ocidentais. Como todas as outras classes sociais, beneficiou-se enormemente do grande aumento geral da riqueza dos últimos cem anos. Em certos aspectos, de fato, desfruta de comodidades e confortos que dariam inveja a um imperador romano ou a um monarca absolutista. Também não é politicamente oprimida: não teme dizer o que pensa nem tem medo de ser surpreendida por forças de segurança durante a madrugada. Sua existência, no entanto, é miserável, de um modo especial de miserabilidade que lhe é próprio.

Por ter trabalhado anteriormente como médico em alguns dos países mais pobres da África, bem como em comunidades pobres do Pacífico e na América Latina, não hesito em dizer que o empobrecimento mental, cultural, emocional e espiritual da subclasse pobre ocidental é maior que o de qualquer outro grande grupo de pessoas que já tenha conhecido em qualquer outro lugar.

O comportamento humano não pode ser explicado sem fazer referência ao significado e às intenções que as pessoas dão aos próprios atos e omissões; e todos possuem um Weltanschauung, uma visão de mundo, saibam ou não disso.

A ideia de que a pessoa não é agente, mas uma vitima indefesa das circunstâncias, ou de grandes forças ocultas sociológicas ou econômicas, foi propagada incessantemente por intelectuais e acadêmicos que não acreditam nisso no que diz respeito a eles mesmos, é claro, mas somente no que concerne a outros em posições menos afortunadas. Há nisso um elemento considerável de condescendência: algumas pessoas não chegam à condição plena de humanos.

Na verdade, a maioria das patologias sociais apresentadas pela subclasse tem origem em ideias filtradas da intelligentzia. O clima de relativismo moral, cultural e intelectual – um relativismo que começa como um modismo de intelectuais – foi comunicado de maneira exitosa para aqueles menos capazes de resistir aos seus devastadores efeitos práticos. O relativismo linguístico e educacional ajuda a transformar uma classe em casta – quase em uma casta de intocáveis.

Os intelectuais dizem não existir alta ou baixa cultura: a própria diferença é a única distinção reconhecível. Esse é um ponto de vista disseminado pelos intelectuais ávidos por demonstrar entre si opiniões abertas e democráticas.

A falta de sinceridade dos elogios que os intelectuais fazem à baixa cultura é óbvia para qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo da grandiosidade dos feitos humanos. O fato é que a cultura aviltada recebe tamanha atenção e elogios sérios que ilude seus consumidores, levando-os a supor que não existe nada melhor que aquilo que já conhecem e de que gostam. Tal adulação é, portanto, a morte da aspiração, e a falta de aspiração é, certamente, uma das causas da passividade.

Será que o destino dessa subclasse importa? Se a miséria de milhões de pessoas importa, então, certamente, a resposta é sim. Mesmo se estivermos satisfeitos em confiar o destino de tantos cidadãos ao purgatório da vida nos bairros pobres, esse não seria o fim da questão.

No mundo moderno, más ideias e suas consequências não podem ficar confinadas ao gueto. O relativismo cultural se alastra muito facilmente. Os gostos, a conduta e os costumes da subclasse estão se infiltrando na escala social com surpreendente rapidez. No que diz respeito à moda do vestuário, dos adornos corporais e da música, é a subclasse quem, de modo crescente, imprime o ritmo. Nunca antes aspirou-se alcançar níveis culturais tão baixos.

O padrão desastroso de relações humanas que existe na subclasse também tem se tornado comum na escala social mais alta. A violência e posterior abandono são, em geral, muito previsíveis dados o histórico e a personalidade dos homens da subclasse, mas as mulheres que foram tratadas dessa maneira dizem que se abstiveram de julgar o companheiro porque é errado fazer juízos de valor. Se, contudo, não forem capazes de emitir um juízo sobre o homem com quem viverão e com que terão filhos, sobre o que emitirão juízos? “Não deu certo”, dizem, e o que não deu certo foi o relacionamento, que concebem como algo possuidor de existência independente das duas pessoas que o compõem, e que exerce uma influência nas suas vidas como se fosse uma conjunção astral.

Para a subclasse, a vida é sorte.

Fonte: Theodore Dalrymple, A Vida na Sarjeta, É Realizações Editora, São Paulo, 2014, p. 16-23, adaptado.