21 de setembro de 2012

A trajetória espiritual de Konstantin Leontiev




O conhecimento que não for contido pelo temor a Deus resultará em arrogância.
São Máximo, o Confessor

A leitura da vida dos santos, de seus feitos e conquistas espirituais, sempre nos provoca admiração. Ocorre que emular esses "anjos na Terra" -- que é o que realmente deveríamos fazer -- parece frustrante. Ou são destinados à santidade desde pequenos, ou, no caso dos grandes pecadores, suas conversões são tão radicais, seus arrependimentos tão plenos, que eles rapidamente galgam até os últimos degraus da escada da perfeição cristã. Sentimo-nos inferiorizados, nós que mal alcançamos o primeiro degrau da escada. Embora estejam próximos de nós, até em função de seu amor pelos homens, fato é que a experiência desses santos está muito longe da nossa. Seria muito mais encorajador se encontrássemos homens e mulheres "comuns" com os quais pudéssemos nos identificar -- encontrar pessoas que, como nós, vivem entre a atração dos prazeres terrenos e o desejo de adentrar no Reido dos Céu.

Konstantin Leontiev certamente não era um homem "comum": diplomata, médico, filósofo, Leontiev era um homem muito culto. No entanto, sua trajetória espiritual -- os contornos gerais dela, pelo menos -- é familiar a quase todo mundo, sobretudo aos convertidos, e observar seu progresso poderá ajudar em nosso próprio progresso. O relato abaixo foi parcialmente extraído de um capítulo do livro "O Mosteiro de Optina e Sua Era", de I.M. Kontzevitch [*], e também de uma pesquisa empreendida pela Monja Natália, cujo artigo "A Salvação da Alma ou os Bens Terrenos", publicado recentemente pela revista Orthodox Life (versão russa), em homenagem ao centenário da morte de Leontiev.

O início da jornada espiritual consciente de Leontiev deu-se com sua conversão na aurora de sua vida adulta. Como ele mesmo relatou em carta a um amigo, em julho de 1871, Leontiev encontrava-se em Tessalônica naquele verão quando subitamente adoeceu de cólera. A doença progrediu a ponto de tornar-se terminal. "Àquela altura eu nem pensava na salvação da minha alma (a fé num Deus pessoal era algo mais fácil de aceitar do que a fé na minha imortalidade); e eu, que em geral não sou de ficar com medo, fiquei simplesmente aterrorizado com a perspectiva de morrer". Um monge do Monte Atos havia lhe trazido um ícone na Mãe de Deus. Ao observá-lo, conta Leontiev, "subitamente, naquele instante, acreditei na existência e no poder dessa Mãe de Deus, acreditei tão intensamente, tão concretamente, que é como se aquela mulher estivesse ali, viva e presente, diante de mim, afável e poderosíssima, e exclamei: 'Mãe de Deus! É cedo demais para eu morrer! Eu ainda não fiz nada de digno com meus talentos, eu tenho levado uma vida promíscua e pecaminosa no sentido mais estrito da palavra. Ergue-me deste meu leito de morte. Eu irei ao Monte Atos, prostrar-me-ei diante dos anciãos e implorar-lhes-ei para que me façam um ortodoxo simples e autêntico, alguém que acredite nas quartas e sextas-feiras [os intelectuais, em geral, menosprezam os jejuns às quartas e sextas-feiras] e nos milagres; até mesmo um monge me tornarei'".

Em outra carta, Leontiev conta: "Pela primeira vez senti uma mão sobre mim vinda do Alto, e quis submeter-me a essa mão justa e encontrar nela apoio para levar adiante a violenta tempestade que se dava em meu interior; buscava somente as maneiras para entrar em comunhão com Deus. Fui ao Monte Atos e tentei transformar-me num verdadeiro cristão ortodoxo para que os anciãos mais rigorosos me ensinassem a fé. Estava preparado para submeter-lhes meu intelecto, minha vontade".

Após sua milagrosa recuperação, Leontiev cumpriu sua promessa à Mãe de Deus e foi ao Monte Atos. Porém, os anciãos Pe. Jerônimo e Pe. Macário não concordaram em tonsurá-lo monge, julgando-o muito imaturo. É evidente que eles previram que, depois que a chama da conversão aferrecesse, Leontiev teria muita dificuldade em submeter-se aos rigores da disciplina monástica. Esteta confesso, Leontiev havia sido até então um homem do mundo, o que significa que ainda havia uma longa e árdua estrada a percorrer até que se livrasse das amarras que o mantinham preso ao mundo.

A batalha de Leontiev deu-se em dois fronts. Em ambos a batalha foi duríssima, já que os hábitos pecaminosos tiveram tempo suficiente para se enraizarem e amadurecerem. Em prmeiro lugar, ele teve de lutar contra "a luxúria da carne e a luxúria dos olhos". Como ele mesmo admitira, sua vida era imoral em todos os campos, chegando a ponto de tornar-se "um verdadeiro libertino, um libertino requintado". Em segundo lugar, e esta batalha foi a mais difícil, Leontiev teve de lutar contra o orgulho intelectual. Kontzevitch descreve Leontiev como sendo "um homem de inteligência profunda e brilhante", citando outro autor que julgava Leontiev como um sujeito de "mente extraordinariamente independente, uma das mentes mais independentes da Rússia; ele não se apegava a nada".

O meio cultural de Leontiev, ou seja, a elite intelectual da Rússia do século XIX, encontrava-se francamente divorciado da liderança espiritual ortodoxa. Ocorre que Leontiev havia descoberto que a inteligência superior não precisa ser uma pedra de tropeço que bloqueie a fé. "Muitos", dizia ele, "nem mesmo concediam a hipótese de que um intelectual pudesse também ser um homem de fé viva e sincera, algo que só seria cabível às massas ignorantes. Mas isso é um grande erro. A pessoa culta, depois de certo ponto, está melhor capacitada a crer com profundidade e sinceridade do que uma pessoa comum que crê por hábito (pois segue os exemplos dos outros) ou que crê porque sua fé nunca é desafiada por ideias opostas. Não há nada que a pessoa comum tenha de conquistar, não há batalhas intelectuais as quais se dedicar. Ele não precisa conquistar nada na arena intelectual, mas apenas as paixões, sentimentos, hábitos, raiva, rudeza, malícia, inveja, ganância, gula, depravação, preguiça etc. Para o intelectual, a batalha é bem mais difícil e complexa. Ele também tem de derrotar as paixões e hábitos que perturbam a pessoa comum, mas além disso tem de derrotar seu orgulho intelectual e conscientemente subjugar sua mente aos ensinamentos da Igreja. Quando esta barreira mística tiver sido transposta, que é precisamente o 'ponto' que mencionei acima, então a erudição se tornará um impulso adicional ao fortalecimento da fé".

Para combater o orgulho, os Santos Padres recomendavam a virtude que lhe é oposta: a humildade. Porém, o orgulho intelectual é extremamente teimoso. Ao recordar de sua conversão, Lentiev escreveu: "Naqueles tempos eu simplesmente não sofria. Eu não tinha um pingo de humildade; eu acreditava em mim mesmo. Eu era mais feliz naqueles tempos do que na minha juventude; eu estava totalmente satisfeito comigo mesmo".

Se a estrada da humildade lhe estava temporariamente fechada, de quais meios Leontiev lançou mão para empreender tão dura batalha? Ele tinha boa vontade e os conselhos divinos do Ancião Ambrósio, pois o desejo sincero pelo Reino de Deus levou-o ao famoso Mosteiro de Optina, o qual já havia atraído a seus domínios grandes intelectuais como Gogol, Kireyevsky e Dostoyevsky. Ele admitira também ter sido ajudado "por uma antiga antipatia filosófica pelas formas e pelo espírito da nova vida europeia e, por outro lado, por uma espécie de atração estética e ingênua pelas formas exteriores da Ortodoxia". Mas o principal aliado de Leontiev nessa arena espiritual foi, sem dúvida, o temor a Deus.

Assim como há város tipos de amor, e vários graus de amor, há também vários tipos de temores. A jornada espiritual de Leontiev iniciou-se com o medo da morte. Ao refletir sobre sua conversão, escreveu ele: "O inesperado momento chegou quando finalmente eu, que sempre fora tão ousado, senti um terror incomum, não um mero medo. Esse terror era ao mesmo tempo medo do pecado e medo de morrer. Nunca antes eu experimentei algo assim... Comecei a temer a Deus e a Igreja. Com o tempo o medo físico foi desaparecendo, ficando em seu lugar um crescente temor genuinamente espiritual". Na opinião de Leontiev, segundo a Monja Natália, somente o temor genuíno -- não o medo físico, corporal, não o medo de perder bens temporais, mas o medo da destruição da alma, da aniquilação total, do desaparecimento, da não-existência -- somente esse tipo de temor pode conduzir um intelectual à fé.

Os críticos de Leontiev acusavam-no de enfatizar demais o temor às custas do amor, distorcendo assim o verdadeiro ensinamento cristão. Contudo, segundo os Santos Padres, ninguém vai ao amor senão pelo temor. "O temor", ensinava Santo Isaque, o Sírio, "leva-nos a bordo do barco do arrependimento, conduz-nos ao outro lado do mar fétido da vida, guiando-nos até as praias divinas do amor". E São João Clímaco dizia: "A ascensão do temor é o princípio do amor". Leontiev superara o medo primitivo da morte e progrediu à fé e ao temor a Deus, do medo da retribuição divina ao temor de ofender a Deus -- por amor a Deus. "O fiel teme a Deus", explica o filósofo russo Príncipe Trubetskoy, "não apenas quando reconhece que transgrediu Sua verdade, mas quando se submete a Ele com fé e amor. Pois o temor a Deus é melhor revelado na obediência, na humildade e na oração do que nos tormentos da consciência. O fruto do temor a Deus é o amor".

Mais tarde, Leontiev torna-se monge, com o Ancião Ambrósio tonsurando-o em 1891 com o nome de Clemente, indubitavelmente em memória a seu caro amigo Pe. Clemente Sederholm, monge de Optina. Ciente de que seu filho espiritual não se adaptaria aos rigores da vida ascética em Optina, o Ancião Ambrósio decidiu enviá-lo à Lavra da Santíssima Trindade-São Sérgio. Em parte, o ancião consolou Leontiev dizendo-lhe: "Em breve nos veremos". De fato, o ancião repousou no dia 10 de outubro de 1891 e Leontiev repousou um mê depois, em 12 de novembro, juntando-se a ele no além-túmulo. Leontiev morrera de pneumonia.

Só Deus sabe o quanto Leontiev progrediu nesse temor perfeito que, segundo os Santos Padres, "é igual em poder ao amor perfeito". Leontiev esperava que os outros intelectuais, ao lerem a história de sua conversão, "também não perdessem a esperança de encontrar o caminho certo". Ele mesmo apontara o caminho. Conforme escreveu o Arquimandrita Constantino (Zaitsev): "O feito maior de Leontiev reside no fato de que ele dissera  algo como 'afasta-te daqueles que portam palavras de amor nos lábios mas que o desviam da Igreja, e aprende em vez disso o temor, isto é, renuncia a assertividade, reflete acerca da morte e do que lhe aguarda após a morte e, sem filosofias engenhosas, entrega-te livre e alegremente ao guiamento da Igreja. Somente dessa forma tu alcançarás a salvação; somente dessa forma tu aprenderás o verdadeiro amor'".

[*] Um capítulo deste livro encontra-se traduzido aqui.

7 de setembro de 2012

O amor em Ortega



O que é amor? Amor é um sentimento? É um “gostar muito” de alguém? É uma atração inevitável? É possível amar coisas ou se ama apenas pessoas?

Em Estudios sobre el amor, uma coletânea publicada na Argentina de artigos que Ortega escreveu para o diário El Sol, de Madrid, em 1927, quinze breves capítulos resumem o que o filósofo espanhol pensava sobre o assunto.

Talvez o dado mais importante sobre o amor é que, para Ortega, ele não é nem sentimento, nem desejo, nem pensamento, nem volição, nem ato: tudo isso são possíveis consequências do amor, possíveis efeitos dele, mas o amor não é, em si, nada disso. Desejar um bom vinho não é amá-lo; o viciado deseja a cocaína ao mesmo tempo em que a odeia por sua ação nociva. O desejo morre ao ser satisfeito; o amor por sua vez perdura. Quando desejo algo, sou o centro de gravidade para onde espero que as coisas venham a cair. Pelo contrário, no amor tudo é mover psíquico: sou eu que “vou” ao objeto e estou nele. Não é o objeto que gravita em mim, mas sou eu que gravito no objeto amado. O mover físico pode existir ou não, isso não importa tanto. Ademais, o amor não é pontual como o pensamento ou a vontade, mas um fluxo, como um fluido que emana continuamente de uma fonte, uma “irradiação psíquica”.

Mas o ódio também não é assim? A diferença é que o amor é pró ao objeto, enquanto o ódio é contra. O amor se ocupa de afirmar o objeto, sem duvidar por um instante do direito dele existir. O ódio, por outro lado, quer virtualmente matar o objeto.

Amor define-se, assim, como um ato centrífugo da alma, que vai até o objeto em fluxo constante e o envolve em cálida corroboração, unindo-a a ele e afirmando seu ser. O sintoma mais evidente do amor é um estar ontologicamente unido ao amado, fiel ao destino deste, seja qual for.

A esta altura, muita gente pensa no amor como sexo. Ora, o sexo pode ou não estar presente numa união amorosa, mas a presença do sexo não implica necessariamente na presença de amor. O instinto sexual é sinal de pura voluptuosidade. O amor sexual, por outro lado, é uma espécie de urgência em dissolver sua individualidade na do outro e, vice-versa, absorver na sua a do amado. O amor é uma atividade “sentimental” específica, distinta das atividades sentimentais corporais ou psíquicas. A melhor maneira de captar o que é o amor é não pensar somente no amor de um homem por uma mulher e vice-versa, mas também pensar no amor que um homem tenha pela ciência, por exemplo. Amor não é mania, não é obstinação.

Aliás, dizer que amor não é mania é outra forma de dizer que amor não é estar apaixonado. O estado de estar apaixonado é uma concentração superlativa da consciência, uma hiperatividade da alma, na qual o amor é apenas secundário. É amor apenas em sentido lato, mas não stricto: é o amor de novelas e romances populares, um estado inferior do espírito, uma “imbecilidade transitória”, nas palavras de Ortega. É verdade que há situações em que a alma fixa-se em assuntos políticos ou econômicos de gravidade, cuja urgência retém a consciência de forma intensa. Há no entanto uma diferença importante: nesses casos, a atenção se fixa de maneira obrigada, enquanto no estado de estar apaixonado ela o faz por seu próprio gosto. Segundo Ortega, esse estado de graça em que se encontra o sujeito apaixonado é semelhante ao do místico que se une a Deus: ambos encontram-se assoberbados, absortos, desligados. Ambos estados de graça, místico e erótico, conferem beleza e graciosidade a tudo que vislumbram.

Como se dá o processo de escolha no amor? Os atos e palavras que emitimos não revelam nosso verdadeiro ser, mas são os gestos e a fisionomia que melhor o fazem. São eles que revelam com mais sinceridade e precisão nossos “valores”, nossas predileções e rejeições. A vontade é capaz de suspender só por alguns instantes os gestos e a fisionomia que refletem o fundo secreto que nos define. Mas quando ama, o homem suspende mais prolongadamente esta falsificação produzida pela vontade. São esses princípios, essas preferências mais íntimas e arcanas, que selecionam o objeto do amor humano.

Assim, os homens que amam um mesmo tipo de mulher ao longo da vida denunciam que seu caráter, seu ser mais íntimo, não se desenvolve. É o caso, diz Ortega, do “bom burguês”. Normalmente, no entanto, os homens passam por mudanças radicais, por transformações em sua trajetória moral. O sistema de valores se altera e segue-se um novo esquema de seleção erótica.