O primeiro a notar aqui é que a fé é um ato
da inteligência. Não, não é um ato do “coração”, do “sentimento”, da
“intuição”. A fé admite um ensinamento, um fato, uma verdade com base no
testemunho de alguém.
O segundo a notar aqui é que a fé é um ato
da vontade, ou seja, é algo sob nossa responsabilidade moral.
Vejamos com alguns detalhes como opera a fé
sob ambos os pontos de vista.
Inteligência
Os preliminares lógicos da fé se sustentam
(1) na filosofia, que demonstra a existência de Deus e (2) na história, que
apresentam os fatos ligados à revelação de Jesus Cristo. São os chamados preâmbulos
da fé. A fé é, portanto, é o elemento necessário para atingir certas
realidades distantes no tempo ou estritamente sobrenaturais. É a única via que
se abre à inteligência humana durante a sua peregrinação terrena.
No entanto,
[i]nerente à nossa natureza e, por isso, sensível em todas as gerações, é esta inércia da matéria que não se eleva espontaneamente à região das realidades espirituais; é esta inclinação para a terra e os seus bens, que se nos impõem pela sua indispensável necessidade e nos atraem pela tangibilidade de suas seduções sensíveis. Toda a atividade intelectual superior encontrará sempre, neste invólucro material que é a metade menos nobre de nós mesmos, uma oposição que é possível vencer, mas não é possível eliminar. Estas dificuldades psicológicas que embaraçam o surto da inteligência para as esferas elevadas do pensamento puro, agravam-se, no caso particular da instrução religiosa, com a perspectiva do descobrimento de novos deveres, — ameaça contínua à livre e ilimitada satisfação das paixões.
Franca explica que é o próprio Deus quem
auxilia o homem na ascese intelectual – eis a virtude teologal em ação.
Vejamos:
Realizar a nossa unidade interior é realizar a nossa plenitude. Um ser vale o que vale a sua unidade; cindi-lo é destruí-lo: unificá-lo é dar-lhe o máximo de estabilidade e de perfeição. Enquanto não nos elevamos acima da multiplicidade criada, estamos divididos, dissipados, dispersos. Na ordem ontológica. Deus é o princípio de toda a unidade, como de toda a realidade. Ele, Causa Primeira de tudo o que é; Ele, Fim para o qual tudo tende; alfa e ômega do universo. Na ordem psicológica e moral, começamos o nosso trabalho de unificação quando refletimos a ordem da realidade e entramos a ver, julgar e agir através da luz que vem de Deus. Mais bem conhecido e mais amado, Deus vai aos poucos concentrando as nossas ideias e as nossas aspirações na unidade de sua paz infinita. Através das vicissitudes da multiplicidade terrena este recolhimento unificador é a melhor preparação à felicidade definitiva das inteligências fixas na intuição beatífica da Suprema Verdade, Plenitude de todas as perfeições. É o significado mais profundo da palavra divina de Cristo: haec est vita aeterna ui cognoscant te solum Deum verum et quem misisti Jesus Christum [e a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste – João 17:3].
Quais as disposições que podem induzir a um
desequilíbrio no uso do intelecto? Em primeiro lugar, a unilateralidade,
ou seja, a especialização intensa e prematura a determinado objeto em
detrimento de outros. Por exemplo, alguém que se hiperespecializa em matemática
perde as delicadezas de uma fina análise psicológica. Como diz Franca, são
“olhos que vivem sempre abertos à luz meridiana e que acabam por não discernir
os objetos no claro-escuro de uma penumbra”. É por isso que muitos, ao se
depararem com os preâmbulos da fé, têm seu espírito recolhido àquilo que
transcende o domínio dos sentidos, como é o caso da existência de Deus, a
questão do ser, a analogia entis e outros temas metafísicos. A
simplicidade das deduções matemáticas e dos métodos científicos não se aplica
aqui. Como dizia Aristóteles: “É próprio de uma inteligência disciplinada não
exigir uma evidência de outra espécie que a permitida pela natureza do objeto
estudado”. A inteligência disciplinada, portanto, apresenta perfeita docilidade
ao real em toda a riqueza de sua complexidade.
Em segundo lugar, há o preconceito.
Por exemplo, quantos não partem de pressupostos cientificistas quando adentram
questões metafísicas? A ciência, em vez de servir de observação serena dos
fatos, torna-se uma ferramenta de seleção e interpretação tendenciosa imposta
pela tirania do preconceito. A negação do sobrenatural não é resultado de
nenhuma investigação científica, mas a orientação preliminar a qualquer
investigação.
Vontade
É no domínio da vontade que reside o maior
risco de cairmos em enganos. Isso ocorre porque o movimento da vontade pode
dar-se não pela evidência objetiva proporcionada, mas pela atração de um interesse.
O assentimento da vontade ao interesse figura-lhe um bem: estamos no campo das
simpatias e aversões, do orgulho, da vaidade, do respeito social, das
complacências ambiciosas, da dificuldade em romper opiniões bem acolhidas no
meio, da família, do grupo profissional etc. Como diz Leonel Franca, afirmamos
mais do que vemos.
Mas então qual a “função” da vontade no
contexto da fé (ou na adesão a qualquer verdade)? A primeira e mais simples é
determinar a inteligência ao exercício de sua atividade. Em outras palavras,
estamos falando da atenção.
No entanto, sabemos perfeitamente que há
verdade que pelo seu objeto complexo ou pelo caráter elevado e abstrato não se
apresentam ao espírito com evidência avassaladora. Se estas verdades têm
repercussões práticas importantes cumpre ainda ajuntar à boa educação do
espírito as retas disposições do coração. A influência das paixões e das más
inclinações morais podem obnubilar a luz dos argumentos e impedir a visão
serena da realidade. Eis que, além da atenção, é preciso o concurso da retidão
moral sob pena de a adesão intelectual ser sobrepujada por dúvidas
imprudentes – chamam-se assim por elas darem mostra de pouca sabedoria. A
vontade se enfraquece e a inteligência se extravia nos meandros de labirintos.
É por isso que, como diria Platão, é
preciso ir à verdade com toda a alma, pois nota-se que o principal obstáculo à
fé não está nas dificuldades intelectuais propriamente, mas nos sacrifícios que
ela impõe. Quem não ama a verdade não merece conhecê-la.
Quais as disposições que podem induzir a um
desequilíbrio no uso da vontade? Em primeiro lugar, o orgulho. Como diz
sabiamente Franca: “É através de um programa de viver que optamos por uma
fórmula de pensar”. Se Platão está certo no que disse, ou amamos a verdade
acima de tudo, inclusive da vida, ou amamos a nós mais que a verdade. Em outras
palavras, ou amamos a Deus até ao desprezo de si, ou amamos a nós até ao
desprezo de Deus. No homem observamos o orgulho de duas formas: (a) estima
excessiva do próprio valor (“dignidade pessoal”) e (b) desejo imoderado da
estima dos outros (“sociabilidade”). De qualquer forma, nota-se a intolerância
de qualquer superioridade e, por conseguinte, o desprezo de qualquer
inferioridade. Como solucionar a sensação de superioridade (ou inferioridade)
que sentimos ante o próximo? Franca propõe contemplar o ser humano não
acidentalmente, mas substancialmente, e, a partir daí, extrair seu devido
“lugar ontológico” ante o Ser. Vejamos:
Há uma ordem essencial que põe os seres em seu lugar e os liga pela necessidade de relações indestrutíveis na harmonia do Universo. Como toda a criatura, o homem é, de sua natureza, dependente. A existência não a tem ele de si mesmo, nem de si mesmo a pode conservar ou prolongar-lhe a duração; recebeu-a de outrem. A essência de ser racional, com as suas exigências e finalidades, não a construiu ele; outro é o seu Autor. O universo que o envolve com a variedade das naturezas, regidas por leis próprias e orientadas para fins determinados, tão pouco dele depende na sua existência e na sua teleologia. O homem não pode crer ou aniquilar um átomo nem alterar a menor das leis naturais; só lhe é dado utilizar as energias cósmicas para os seus fins humanos, mas ainda assim obedecendo-lhes aos princípios que regem o seu jogo natural: naturae non nisi parendo imperatur [só se governa a natureza obedecendo-a], dizia Bacon. [...] Eis o lugar essencial do homem na hierarquia dos seres. Aceitá-lo voluntariamente é ser humilde. Nos seus mais altos fundamentos ontológicos, a humildade é luz na inteligência e justiça no coração. A humildade é, pois, a expressão da verdade e da ordem.
Se Deus é o Primeiro Princípio e o Fim
Último, o Alfa e o Ômega, então fica evidente que o orgulhoso, pelo dinamismo
interno de seu próprio desregramento e cegueira, tende a subtrair-se à própria
lei e a desviar-se do próprio fim. Ele não reconhece nenhuma autoridade que não
seja seu próprio coração. Franca não deixa de notar, como o vimos em Orlando
Fedeli em algumas ocasiões (aqui e aqui),
a tendência das filosofias e religiões de separarem os seres humanos em grupos
ou extratos, dentro dos quais há um escol de iniciados detentores de uma
revelação esotérica e uma massa fraca e ignóbil condenada à ilusão e ao erro. É
assim em Plotino, Marco Aurélio, Epiteto, nos gnósticos, Voltaire, Nietzsche.
Em Cristo, no entanto, as almas se distinguem por sua elevação moral.
Lembre-se: o orgulho surge quando nos
esquecemos de que somos dependentes, na existência e na finalidade, de um
Primeiro Princípio.
Em segundo lugar, a vontade é
desequilibrada pela sensualidade. Enquanto consciência de uma harmonia
vital, o prazer em si é um bem. É como se o prazer fosse um atestado da
racionalidade que há por trás dele, mais ou menos como o perfume de uma flor que
atesta sua beleza e sua vitalidade. Mas assim como o perfume de uma flor pode
enganar ocultando uma flor doente, o desfrute dos prazeres da sensualidade pode
ocultar uma personalidade doente. A ordem normal dos valores deveria submeter a
sensualidade à potência racional do homem, mas quando o egoísmo se expressa
brutalmente se vê o contrário: a desordem se manifesta na escravização da razão
às potências sensitivas. O homem perde as prerrogativas da humanidade.
O mecanismo básico da sensualidade
desordenada é diminuir a capacidade de dedicação e estreitar os horizontes da
vida. A busca desordenada de prazeres forçosamente projeta os sentidos para
fora e acabam por projetar para dentro da alma a agitação e a instabilidade fugaz
das emoções associadas aos sentidos. O ambiente indispensável ao trabalho
intelectual fecundo e elevado é destruído pela tal agitação e instabilidade. A inteligência,
se entra em atividade, é para atender, como serva humilhada, aos ditames da
sensualidade. Hipertrofia-se o animal em detrimento do racional. É claro que indivíduos
assim podem alcançar grandes glórias em suas áreas de atuação, mas aqui não cabe
vaticinar que todo individuo centrado na sensualidade será um fracassado ou
algo assim. Mas, sim, cabe vaticinar que todo indivíduo centrado na
sensualidade terá seu potencial diminuído, minado, arruinado.
Por fim, lembremo-nos de que a experiência
de uma vida moralmente ordenada uma maior assimilação, ou seja, uma maior semelhança
natural e ontológica entre Deus e o homem.
Fonte: Leonel
Franca, A psicologia da fé, Calvariae Editorial, Sertanópolis, PR,
Brasil, 2019.