6 de junho de 2025

A psicologia da fé


Quanto mais elevada a virtude tanto mais evanescente torna-se seu entendimento. Com a fé, uma virtude considerada “teologal” ou “sobrenatural” pela ética católica romana, não é diferente. Fé não deixa de ser “crença”, mas não uma crença qualquer. Podemos crer numa verdade natural qualquer, como as leis da física-matemática ou da biologia, e a base de tal crença será a verdade intrínseca nelas contidas. Mas com a fé é diferente: cremos em algo “por fé” por causa da autoridade de Deus, que não pode enganar-se ou enganar-nos.

O primeiro a notar aqui é que a fé é um ato da inteligência. Não, não é um ato do “coração”, do “sentimento”, da “intuição”. A fé admite um ensinamento, um fato, uma verdade com base no testemunho de alguém.

O segundo a notar aqui é que a fé é um ato da vontade, ou seja, é algo sob nossa responsabilidade moral.

Vejamos com alguns detalhes como opera a fé sob ambos os pontos de vista.

Inteligência

Os preliminares lógicos da fé se sustentam (1) na filosofia, que demonstra a existência de Deus e (2) na história, que apresentam os fatos ligados à revelação de Jesus Cristo. São os chamados preâmbulos da fé. A fé é, portanto, é o elemento necessário para atingir certas realidades distantes no tempo ou estritamente sobrenaturais. É a única via que se abre à inteligência humana durante a sua peregrinação terrena.

No entanto,

[i]nerente à nossa natureza e, por isso, sensível em todas as gerações, é esta inércia da matéria que não se eleva espontaneamente à região das realidades espirituais; é esta inclinação para a terra e os seus bens, que se nos impõem pela sua indispensável necessidade e nos atraem pela tangibilidade de suas seduções sensíveis. Toda a atividade intelectual superior encontrará sempre, neste invólucro material que é a metade menos nobre de nós mesmos, uma oposição que é possível vencer, mas não é possível eliminar. Estas dificuldades psicológicas que embaraçam o surto da inteligência para as esferas elevadas do pensamento puro, agravam-se, no caso particular da instrução religiosa, com a perspectiva do descobrimento de novos deveres, — ameaça contínua à livre e ilimitada satisfação das paixões.

Franca explica que é o próprio Deus quem auxilia o homem na ascese intelectual – eis a virtude teologal em ação. Vejamos:

Realizar a nossa unidade interior é realizar a nossa plenitude. Um ser vale o que vale a sua unidade; cindi-lo é destruí-lo: unificá-lo é dar-lhe o máximo de estabilidade e de perfeição. Enquanto não nos elevamos acima da multiplicidade criada, estamos divididos, dissipados, dispersos. Na ordem ontológica. Deus é o princípio de toda a unidade, como de toda a realidade. Ele, Causa Primeira de tudo o que é; Ele, Fim para o qual tudo tende; alfa e ômega do universo. Na ordem psicológica e moral, começamos o nosso trabalho de unificação quando refletimos a ordem da realidade e entramos a ver, julgar e agir através da luz que vem de Deus. Mais bem conhecido e mais amado, Deus vai aos poucos concentrando as nossas ideias e as nossas aspirações na unidade de sua paz infinita. Através das vicissitudes da multiplicidade terrena este recolhimento unificador é a melhor preparação à felicidade definitiva das inteligências fixas na intuição beatífica da Suprema Verdade, Plenitude de todas as perfeições. É o significado mais profundo da palavra divina de Cristo: haec est vita aeterna ui cognoscant te solum Deum verum et quem misisti Jesus Christum [e a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste – João 17:3].

Quais as disposições que podem induzir a um desequilíbrio no uso do intelecto? Em primeiro lugar, a unilateralidade, ou seja, a especialização intensa e prematura a determinado objeto em detrimento de outros. Por exemplo, alguém que se hiperespecializa em matemática perde as delicadezas de uma fina análise psicológica. Como diz Franca, são “olhos que vivem sempre abertos à luz meridiana e que acabam por não discernir os objetos no claro-escuro de uma penumbra”. É por isso que muitos, ao se depararem com os preâmbulos da fé, têm seu espírito recolhido àquilo que transcende o domínio dos sentidos, como é o caso da existência de Deus, a questão do ser, a analogia entis e outros temas metafísicos. A simplicidade das deduções matemáticas e dos métodos científicos não se aplica aqui. Como dizia Aristóteles: “É próprio de uma inteligência disciplinada não exigir uma evidência de outra espécie que a permitida pela natureza do objeto estudado”. A inteligência disciplinada, portanto, apresenta perfeita docilidade ao real em toda a riqueza de sua complexidade.

Em segundo lugar, há o preconceito. Por exemplo, quantos não partem de pressupostos cientificistas quando adentram questões metafísicas? A ciência, em vez de servir de observação serena dos fatos, torna-se uma ferramenta de seleção e interpretação tendenciosa imposta pela tirania do preconceito. A negação do sobrenatural não é resultado de nenhuma investigação científica, mas a orientação preliminar a qualquer investigação.

Vontade

É no domínio da vontade que reside o maior risco de cairmos em enganos. Isso ocorre porque o movimento da vontade pode dar-se não pela evidência objetiva proporcionada, mas pela atração de um interesse. O assentimento da vontade ao interesse figura-lhe um bem: estamos no campo das simpatias e aversões, do orgulho, da vaidade, do respeito social, das complacências ambiciosas, da dificuldade em romper opiniões bem acolhidas no meio, da família, do grupo profissional etc. Como diz Leonel Franca, afirmamos mais do que vemos.

Mas então qual a “função” da vontade no contexto da fé (ou na adesão a qualquer verdade)? A primeira e mais simples é determinar a inteligência ao exercício de sua atividade. Em outras palavras, estamos falando da atenção.

No entanto, sabemos perfeitamente que há verdade que pelo seu objeto complexo ou pelo caráter elevado e abstrato não se apresentam ao espírito com evidência avassaladora. Se estas verdades têm repercussões práticas importantes cumpre ainda ajuntar à boa educação do espírito as retas disposições do coração. A influência das paixões e das más inclinações morais podem obnubilar a luz dos argumentos e impedir a visão serena da realidade. Eis que, além da atenção, é preciso o concurso da retidão moral sob pena de a adesão intelectual ser sobrepujada por dúvidas imprudentes – chamam-se assim por elas darem mostra de pouca sabedoria. A vontade se enfraquece e a inteligência se extravia nos meandros de labirintos.

É por isso que, como diria Platão, é preciso ir à verdade com toda a alma, pois nota-se que o principal obstáculo à fé não está nas dificuldades intelectuais propriamente, mas nos sacrifícios que ela impõe. Quem não ama a verdade não merece conhecê-la.

Quais as disposições que podem induzir a um desequilíbrio no uso da vontade? Em primeiro lugar, o orgulho. Como diz sabiamente Franca: “É através de um programa de viver que optamos por uma fórmula de pensar”. Se Platão está certo no que disse, ou amamos a verdade acima de tudo, inclusive da vida, ou amamos a nós mais que a verdade. Em outras palavras, ou amamos a Deus até ao desprezo de si, ou amamos a nós até ao desprezo de Deus. No homem observamos o orgulho de duas formas: (a) estima excessiva do próprio valor (“dignidade pessoal”) e (b) desejo imoderado da estima dos outros (“sociabilidade”). De qualquer forma, nota-se a intolerância de qualquer superioridade e, por conseguinte, o desprezo de qualquer inferioridade. Como solucionar a sensação de superioridade (ou inferioridade) que sentimos ante o próximo? Franca propõe contemplar o ser humano não acidentalmente, mas substancialmente, e, a partir daí, extrair seu devido “lugar ontológico” ante o Ser. Vejamos:

Há uma ordem essencial que põe os seres em seu lugar e os liga pela necessidade de relações indestrutíveis na harmonia do Universo. Como toda a criatura, o homem é, de sua natureza, dependente. A existência não a tem ele de si mesmo, nem de si mesmo a pode conservar ou prolongar-lhe a duração; recebeu-a de outrem. A essência de ser racional, com as suas exigências e finalidades, não a construiu ele; outro é o seu Autor. O universo que o envolve com a variedade das naturezas, regidas por leis próprias e orientadas para fins determinados, tão pouco dele depende na sua existência e na sua teleologia. O homem não pode crer ou aniquilar um átomo nem alterar a menor das leis naturais; só lhe é dado utilizar as energias cósmicas para os seus fins humanos, mas ainda assim obedecendo-lhes aos princípios que regem o seu jogo natural: naturae non nisi parendo imperatur [só se governa a natureza obedecendo-a], dizia Bacon. [...] Eis o lugar essencial do homem na hierarquia dos seres. Aceitá-lo voluntariamente é ser humilde. Nos seus mais altos fundamentos ontológicos, a humildade é luz na inteligência e justiça no coração. A humildade é, pois, a expressão da verdade e da ordem.

Se Deus é o Primeiro Princípio e o Fim Último, o Alfa e o Ômega, então fica evidente que o orgulhoso, pelo dinamismo interno de seu próprio desregramento e cegueira, tende a subtrair-se à própria lei e a desviar-se do próprio fim. Ele não reconhece nenhuma autoridade que não seja seu próprio coração. Franca não deixa de notar, como o vimos em Orlando Fedeli em algumas ocasiões (aqui  e aqui), a tendência das filosofias e religiões de separarem os seres humanos em grupos ou extratos, dentro dos quais há um escol de iniciados detentores de uma revelação esotérica e uma massa fraca e ignóbil condenada à ilusão e ao erro. É assim em Plotino, Marco Aurélio, Epiteto, nos gnósticos, Voltaire, Nietzsche. Em Cristo, no entanto, as almas se distinguem por sua elevação moral.

Lembre-se: o orgulho surge quando nos esquecemos de que somos dependentes, na existência e na finalidade, de um Primeiro Princípio.

Em segundo lugar, a vontade é desequilibrada pela sensualidade. Enquanto consciência de uma harmonia vital, o prazer em si é um bem. É como se o prazer fosse um atestado da racionalidade que há por trás dele, mais ou menos como o perfume de uma flor que atesta sua beleza e sua vitalidade. Mas assim como o perfume de uma flor pode enganar ocultando uma flor doente, o desfrute dos prazeres da sensualidade pode ocultar uma personalidade doente. A ordem normal dos valores deveria submeter a sensualidade à potência racional do homem, mas quando o egoísmo se expressa brutalmente se vê o contrário: a desordem se manifesta na escravização da razão às potências sensitivas. O homem perde as prerrogativas da humanidade.

O mecanismo básico da sensualidade desordenada é diminuir a capacidade de dedicação e estreitar os horizontes da vida. A busca desordenada de prazeres forçosamente projeta os sentidos para fora e acabam por projetar para dentro da alma a agitação e a instabilidade fugaz das emoções associadas aos sentidos. O ambiente indispensável ao trabalho intelectual fecundo e elevado é destruído pela tal agitação e instabilidade. A inteligência, se entra em atividade, é para atender, como serva humilhada, aos ditames da sensualidade. Hipertrofia-se o animal em detrimento do racional. É claro que indivíduos assim podem alcançar grandes glórias em suas áreas de atuação, mas aqui não cabe vaticinar que todo individuo centrado na sensualidade será um fracassado ou algo assim. Mas, sim, cabe vaticinar que todo indivíduo centrado na sensualidade terá seu potencial diminuído, minado, arruinado.

Por fim, lembremo-nos de que a experiência de uma vida moralmente ordenada uma maior assimilação, ou seja, uma maior semelhança natural e ontológica entre Deus e o homem.

Fonte: Leonel Franca, A psicologia da fé, Calvariae Editorial, Sertanópolis, PR, Brasil, 2019.