3 de junho de 2024

Poética: arte para propensão ao verdadeiro e ao bom


Ciência é conhecimento perfeito, ou seja, conhecimento do necessário. O que é contingente não é passível de conhecimento. Portanto, conhecer algo é conhecer acima de tudo sua essência (ou “quididade”) e, por extensão, suas partes e suas propriedades, seus efeitos e suas causas. Segundo a filosofia aristotélico-tomista, somente as substâncias (as coisas que subsistem por si, como a pedra, a grama, a árvore, o tigre, o homem) têm essência simpliciter (absolutamente; pura e simplesmente), enquanto os acidentes (o tamanho, a cor, as formas artificiais ou artísticas) têm essência secundum quid (segundo algo; sob certo aspecto). Somente se considerarmos os acidentes como se fossem substâncias é que poderíamos dizer que têm essência.

Quanto às substâncias, para conhecermos suas essências partimos do gênero máximo até alcançarmos sua determinação mais ínfima. Homem, por exemplo, é a substância vivente sensível racional, que por conveniência reduzimos a animal racional. A ciência, no caso das substâncias, considerando a diferença específica da espécie (no caso, racional).

Quanto aos acidentes, não há de outra: por serem desprovidos de essência, temos de promovê-los a substâncias com a condição, claro, de que em sua definição haja uma referência às substâncias de que são acidentes. No caso das formas artísticas, a dificuldade é ainda maior porque elas não estão “penduradas” em uma substância natural, mas na mente do artista. Uma bicicleta, por exemplo, não se subordina apenas a uma substância, mas a um enorme conjunto de substâncias em que se plasma com forma artificial; portanto, a ciência da bicicleta subordina-se a várias ciências paralelas cujo ser encontra-se na mente do projetista da bicicleta.

Como é sabido (cf. Todos odeiam Tomás), as artes se subdividem em servis, liberais e prudência. Mas a arte liberal se subdivide em Lógica (e suas partes: Dialética, Retórica e Poética) e em Arte Significativa (e suas partes: Arte Linguística (Linguagem e Gramática) e Poética. Como é possível a Poética fazer parte tanto da Lógica quanto da Arte Significativa? Simples: a Poética faz parte da Lógica enquanto fim último e faz parte das Artes Significativas enquanto fim médio.

A Lógica busca o que é e o que não é, a Dialética leva à Lógica pelo verossímil e pelo inverossímil, a Retórica leva à Dialética pelo bom e pelo mau, a Poética leva à Retórica pelo belo e pelo feio. Como em todas as coisas se acha o ser, a verdade, a bondade e a beleza, todas estas artes tratam universalmente de todas as coisas. ‘Ambas’ – a Retórica e a Dialética, diz Aristóteles, mas vale também para a Lógica e para a Poética – ‘tratam daquelas questões que permitem ter conhecimento de certo modo comum a todos e não pertencem a nenhuma ciência determinada’.

Versamos sobre a essência da Poética. Listemos algumas de suas propriedades principais:

  • Comunicabilidade mimético-significante. Enquanto as palavras comunicam concepções, a Poética comunica, ao imitar ações, paixões e caracteres, um análogo de concepções que quer significar.
  • Deleitabilidade séria. Faz o destinatário propender ao bem e à verdade mediante a beleza intelectual imanente a uma beleza material. A seriedade não está na compaixão (riso, choro ou o que seja), mas na propensão.
  • Raptância. O destinatário é arroubado e, a partir daí, retirado do mundo real a um mundo verossímil inventado.
  • Indutibilidade de sentimento catártica. Induz um sentimento ou estimação no destinatário para purgar-lhe precisamente desse sentimento.
  • Verossimilitude mimético-significante. O mundo à parte que a Poética cria tem de guardar uma ascendência causal dela para a Retórica e desta à Dialética e desta à Lógica.
  • Ser análoga à virtude. Característica central à propensão ao bem.

Eis pois como Carlos Nougué define a Poética (ou “Arte do Belo”, como prefere):

A Poética é a arte significativa de plasmar formas mimético-significantes e belas sobre determinada matéria, para fazer, mediante indução de sentimento e purgação das emoções, que o homem propenda ao verdadeiro e ao bom, e se afaste do falso e do mau. (p. 194)

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Para o grego em geral, e particularmente para Platão, a Idéa não era o pensamento, e sim, ao contrário, o objeto do pensamento, o objeto para o qual se dirige o pensamento. Note-se ademais que idéa e eidos provêm de ideîn, que significa “ver”, e indicam o objeto da visão. Por isso é que antes de Patão idéa e eidos se empregavam especialmente para expressar a forma visível das coisas, a figura ou configuração externa das coisas, o que se apreende com os olhos.

A partir de Platão, todavia, passam a empregar-se para exprimir a forma, digamos, íntima das coisas, sua essência. Em decorrência da “Segunda navegação” platônica, isto é, da descoberta do mundo inteligível, a forma alça-se do plano físico ao transfísico. [...] Na antiga linguagem dos homens do mar, chamava-se “segunda navegação” àquela que se dava quando, pela cessação do vento, se recorria aos remos. [...] A “Primeira navegação” perdera a rota, sem conseguir explicar o sensível pelo próprio sensível. Já a “Segunda navegação” encontra a rota da verdade, que conduz à descoberta do suprassensível, do inteligível.

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A beleza, para Platão, tem algo mais que todas as outras Formas inteligíveis: é a única que pode ser vista também pelos olhos do corpo, além de sê-lo pelos “olhos” da alma.

Fonte: Carlos Nougué, Da Arte do Belo, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.