13 de maio de 2024

Simpatia pelo diabo (ou, A metafísica do liberalismo)


Enquanto concepção moral e política, o liberalismo promete instaurar uma cosmovisão abrangente e apofática na qual não esteja pressuposta nenhuma metafísica. Daniel Scherer mostra que isso é falso. O liberalismo tem sim uma metafísica identificável mesmo que seus defensores jurem que não.

Como vimos em uma postagem anterior, Tomás de Aquino ensinava que o ser é o actus essendi (ato de ser) participado aos entes pelo Ato Puro, ou seja, o Ipsum Esse Subsistens (Próprio Ser Subsistente, isto é, Deus). Importante notar que o ser não é coisa ou ente, mas é ato. O ser, na verdade, é o que há de mais atual no ente. A essência dos entes é atuada por um ser que não lhes é essencial, ou seja, o ser não faz parte da essência dos entes. Por isso insistem os tomistas na famosa distinção real (e não apenas lógica/mental) entre ser e essência.

No entanto, se esta distinção for esquecida, isso significa que o ser “volta” a fazer parte da essência do ente. Em outras palavras, o ser do ente é atuado por ele mesmo, e a distinção entre ser e essência “volta” a ser meramente gnosiológica (lógica/mental). E mais: como o ser não é mais participado, é forçoso concluirmos que o ser é unívoco (e não mais análogo, como na analogia entis), o que deixa a noção de Ser no mínimo altamente comprometida. Se o ser dos entes é atribuído mentalmente, será igualmente forçoso concluir que o conhecimento dos entes se dará puramente pela atividade mental. A distinção dos entes, embora nominal, reduz-se a apenas e tão-somente mental. Realidade e razão tornam-se codependentes.

Despojar a realidade do ser e torná-lo algo meramente mental tem consequências muito mais profundas do que se poderia supor. Uma delas, e é a consequência que mais interessa ao liberalismo, é o fato de que não há um padrão axiológico (de valores) real. Em outras palavras, a “concepção de vida boa” perde seu contato com a realidade (pois o ser agora é unívoco, e portanto os entes adquirem uma “planicidade” radical entre si). Assim, quem agora estará no centro da personalidade humana não será mais a inteligência, mas a vontade. O bom e o mau, o comportamento adequado ou inadequado, não será mais contrastado pela inteligência com o mundo real nem assentado pela vontade mediante a prática das virtudes, mas será determinado pela vontade. A noesis passa a não mais orientar a praxis.

Em suma, sem a distinção entre ens per participationem e Ens per essentiam o pensamento escorregará cedo ou tarde para algum tipo de imanentismo. Pois note: as essências não comportam gradações entre si. Um cavalo não é “mais” ou “menos” equino, assim como um homem não é “mais” ou “menos” humano. Não faz sentido compararmos as essências de homem e cavalo. Mas faz sim todo o sentido compararmos homem e cavalo quanto ao ser: o homem tem mais ser que o cavalo, que por sua vez tem mais ser que a água que bebe, e assim por diante. A essência é aquilo que diferencia as espécies, enquanto o ser é aquilo que lhes confere comunidade (mesmo que em graus de perfeição variáveis). E não é somente isso: há a comunicação da essência às coisas naturais, que não pode ser empreendida pelas próprias coisas. Pois, nas palavras de Scherer:

O obrar das coisas naturais não se explica completamente sem o obrar divino. A essência das coisas naturais, comunicada por geração, não é causada por elas mesmas, exclusivamente, porque nenhuma delas é causa de sua própria essência, ou seja, nenhuma delas explica por que ela própria tem tal essência. Antes, as essências são causadas por Deus por meio das coisas criadas, atuando estas últimas como que instrumentalmente. E, depois, comunicadas universalmente, as formas específicas são ainda sustentadas ou conservadas por Deus no ser. Deus, portanto, também conserva a capacidade causal das coisas criadas. As coisas criadas são, então, causas segundas, cuja própria causalidade, real e verdadeira, depende, nada obstante, da Causa Primeira. [...] A ideia divina dos vários entes é a causa exemplar das coisas criadas, e também sua causa eficiente e final, porque a operação das coisas criadas é dirigida (finaliter) e conformada (efficienter) pela operação divina.

Alguns filósofos tentam minimizar o risco de imanentismo lançando mão da ideia da criação ex nihilo. Sim, a doutrina da criação do nada efetivamente distingue o Ser dos seres criados, mas não é capaz de evitar a planicidade do ser que citamos acima.

No final das contas, a relação ato-potência é invertida porque as essências criadas passam a ser “sumas atualidades” (não são causadas por nada) e Deus é rebaixado de Puro Ato a Pura Potência, ou até a “Não-Ser”, tornando o homem uma espécie de substituto de Deus. A realidade deixa de ser simbólica, ou seja, deixa de representar intrinsecamente a realidade, e passa a ser diabólica, ou seja, passa a imitar extrinsecamente a realidade. O símbolo como que contém o simbolizado em si mesmo (não é mera alegoria, portanto), enquanto o diabólico como que imita uma realidade fora de si mesmo. O diabólico depende da realidade que imita, mas ao mesmo tempo destrói as condições para obtê-la. Ele promete tudo, mas não entrega nada.

Vê-se, portanto, que é a vontade quem assume o papel de atualizar as essências das coisas. Literalmente, a vontade passa a produzir a atualidade, e não mais recebê-la. A bondade não está mais intrínseca ao objeto, mas agora é a própria vontade que escolhe a bondade do objeto. Mas é claro que a vontade não produz coisa nenhuma: ela tem a total liberdade de determinar o sentido da existência e do universo desde que, obviamente, esse sentido não resulte em absolutamente nada. Invente o sentido que quiser para sua vida, para o universo, para a existência: nenhuma mudança real será produzida na vida de ninguém, nem mesmo na sua. A "pegadinha" fica claríssima quando nos damos conta que não podemos determinar o sentido de um alfinete ou de uma migalha de pão, mas achamos que podemos determinar o sentido de tudo.

Está inclusa na metafísica imanentista a ideia do panenteísmo, ou seja, a ideia de que tudo está em Deus e Deus é mais do que tudo. Embora atraente, o panenteísmo (por mais difuso que seja o conceito) costuma incluir a ideia da centelha divina, da unidade do intelecto e que tais. Os entes não passam de modos, manifestações ou expressões da Realidade Única e Última. É evidente a relação entre panenteísmo e gnosticismo: a ideia de um conhecimento direto e autotransformador (de “alma” a “espírito”) da essência divina. Por outro lado, a tendência a divinizar a matéria, no sentido de atribuir-lhe toda a existência que há no mundo, redunda em panteísmo. Panteísmo ou gnosticismo, ambos são vertentes da mesma metafísica do imanentismo, do antropoteísmo.

Fonte: Daniel Scherer, A metafísica da revolução, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.