O jovem
psiquiatra Flávio Gikovate, então com apenas 35 anos de idade, defende a ideia
de que a felicidade de alguma forma guarda relação íntima com a moralidade. É
impossível, segundo seu entendimento, ser real e profundamente feliz sem ser
real e profundamente moral.
Aqui não
cumpre tanto falar de regras ou preceitos morais, mas de denunciar um caráter sobre
o qual a imoralidade se funda. Descrevê-lo para denunciá-lo é, no entender de
Gikovate, a maneira mais eficaz para que não apenas os portadores desse caráter
se deem conta e busquem aprimorar-se, mas também, e sobretudo, para que os
demais estejam atentos ao seu potencial destrutivo, mesmo que oculto por
temperamentos aparentemente equilibrados e positivos. A esse caráter, a esse
desvio de caráter, Gikovate chama de narcisismo.
O
narcisista se desenvolverá em função de uma pobreza insistente e prolongada de seu
mundo interior. A falta de entendimento, a falta de sentido, a falta de certa profundidade
intelectual e, por que não dizer, espiritual, se refletirá numa personalidade
do tipo narcisista. Essa pobreza interior se manifestará exteriormente pela
dificuldade em estabelecer relações afetivas, pois elas exigem uma comunhão entre
vidas interiores (pensamentos, sentimentos, valores, objetivos, crenças), que é
precisamente do que está privado. O narcisista, portador de uma vida interior
atrofiada, não terá alternativa senão tomar o acúmulo dos signos exteriores de prosperidade
material e social como se fossem os signos interiores do aprimoramento
intelectual e espiritual. As relações humanas se tornarão forçosamente aquisitivas
(dinheiro, poder, status, fama) dado que o narcisista não detém uma vida
interior genuína a ser oferecida.
No entanto,
por mais pobre que seja sua vida interior, o indivíduo narcisista de alguma
forma percebe essa pobreza em si e a contrasta com os demais. Da consciência
desse contraste brotará um grande desconforto psicológico que, por conseguinte,
não engendrará um desejo de admiração, e portanto preservação, da vida alheia,
mas um desejo de destruição da vida alheia. Desejar que o outro não tenha o que
tem, ou que não seja o que é, é o que chamamos de inveja. O narcisista é um invejoso.
Similarmente,
e pelas mesmas causas, o narcisista será um egoísta,
ou seja, extrairá sua energia vital de outras pessoas. Isso significa que o
narcisista desenvolve em si a noção de que os demais são portadores de uma
energia que ele deve possuir por direito. Se os outros têm, ele também tem o
direito de ter.
Curiosamente,
a pobreza da vida interior se traduzirá em hipersensibilidade e comportamento
agressivo. A baixa tolerância à frustração
é reflexo de uma vida interior vulnerável, subdesenvolvida, indefesa. No
caso do narcisista, a agressividade será seletiva: será agressivo em casa com a
mulher, será manso no trabalho com o chefe.
Gikovate
observa que existem dois tipos de razão. A razão
concreta, que é aquela com a qual nascemos e que se dirige primordialmente
à perceber a forma, a função e as propriedades relacionadas aos objetos do meio
exterior – é uma “razão estanque”, uma “razão pessimista” e portanto uma “razão
oportunista” –, e a razão abstrata,
que é aquela que se dirige à essência das coisas e pessoas, às ideias,
princípios, valores, conceitos que regem a realidade – é uma “razão criativa”,
uma “razão otimista” e portanto uma “razão generosa”.
“[Os narcisistas] invejam aqueles que são capazes de invadir a estranha região da mente onde outros estímulos (além dos externos) determinam outro tipo de pensamento e ideias diferentes; uma área onde as coisas são vistas não como elas são, mas como se deseja imaginar; sem compromissos com o existente; onde as coisas novas tomam corpo, inicialmente sob forma de ideias. A inveja significa o reconhecimento da superioridade da abstração. Significa o reconhecimento de tal potencial, de sua importância; e ao mesmo tempo a consciência de que ele não está sendo desenvolvido, de que nada está sendo feito neste sentido. É a percepção de que toda a energia mental está dirigida para a prática da vida, e que isto significa um enorme prejuízo para o desenvolvimento psíquico”.
A razão abstrata
deveria desenvolver-se a partir dos 6-7 anos de idade. Até essa idade, toda
criança é “narcisista” por definição, o que Gikovate chama de narcisismo primário. As crianças
normais, nessa faixa de idade, começam a renunciar a tal narcisismo em prol de “algo”
à qual a abstração tem acesso. O termo narcisismo
secundário se aplica propriamente à regressão ao comportamento narcisista
em uma pessoa que verdadeiramente o tenha superado. Em geral, Gikovate acredita
que algum estado de doença física seja o elemento principal que empurra o
indivíduo de volta ao estado narcisista infantil.
No campo do
amor, como o narcisista se sabe fraco e, portanto, exigente, se sentirá atraído
por pessoas mais generosas e estruturalmente mais completas e complexas. No
entanto, conforme a relação avança, e a inveja percorre esse vínculo
oportunista/generoso o tempo todo, a compreensão da mutilação parcial do
desenvolvimento intelectual vai se tornando cada vez mais patente para o
narcisista. A agressividade tende a aumentar, mas as demandas por relações sexuais
regulares permanece, pois para o narcisista o sexo não possui nenhuma significação
simbólica, afetiva ou moral, mas apenas alívio da pulsão sexual e busca do
prazer corporal do orgasmo. Na prática clínica de Gikovate, a grande maioria
dos casais que enfrenta dificuldades sexuais se configura como uma relação entre
tipos mais narcisistas e tipos mais generosos.
Como tratar
um narcisista? Bem, em geral o narcisista não busca um tratamento porque, nas
sociedades modernas, o comportamento narcisista não apenas não é condenado mas
é louvado. O individualismo, o crescimento social e financeiro, o “sucesso”, são
ideias que oxigenam o comportamento narcisista. A busca pelo tratamento
ocorrerá somente se algum evento externo muito intenso o forçar a tal. O que o
terapeuta pode fazer, nesses casos, é tomar proveito do elemento de admiração que
há na inveja e, a partir dele, acompanhar o narcisista na descoberta da abstração.
“[No entanto], o desenvolvimento da vertente abstrata da razão implica em sofrimento. Se identificar com o outro, em sua dor, significa sofrer tanto quanto ele, experimentar a situação dele como se a gente fosse ele. Significa se familiarizar com a condição humana em geral, o que tem estado em franca sintonia com sofrimentos físicos e morais. O paciente se fixa à terapia por causa da admiração e, com isto, poderá estabelecer uma relação que, se conduzida com propriedade, será capaz de iniciá-lo no mundo da frustração e da dor, caminho inevitável para a descoberta da abstração. Uma vez alcançada a abstração, a fisionomia das pessoas se modifica; o mundo, os homens e as coisas passam a ter sentido e graça”.
Fonte: Flávio Gikovate, Você é feliz?, MG Editores, São Paulo, Brasil, 1978.