As
correntes que escravizam o homem se tornaram tão comuns, tão “normais”, que já
nem mais nos damos conta delas. As paixões se tornaram inimigos tão familiares
e banais que o homem já não sabe mais quais são os traços característicos
desses inimigos, sua natureza opressora, e daí os passa a tratar como amigos. O
inimigo, que trava uma guerra incessante contra o homem, passa a fazer “parte
da estrutura” e portanto já não é mais detectado; sua existência passa a ser
até mesmo negada, a ser “racionalizada” em um contexto psicológico de maneira
que se torna algo irreal, distante, remoto. Desta maneira, a batalha espiritual
se transforma em uma não-batalha, ou seja, em derrota; ora, se não admitimos
nosso estado então não nos preparamos para a luta com a devida seriedade e
vigor – e eis que nossas paixões triunfam, o pecado triunfa, e o pleito do diabo
torna-se cada vez mais fundamentado.
A tarefa
que temos pela frente é grande: olhar para dentro, para as profundezas de nosso
coração, e aí descobrir as âncoras que nos mantêm preso às partes mais
profundas do mar, e pela graça de Cristo lutar contra elas. Somos chamados a
trabalhar, mediante o poder redentor do Senhor encarnado, para derrotar aquilo
que busca nossa destruição.
O mundo
porém nos chama a uma tarefa radicalmente diferente, pois o mantra da sociedade
é o da autossatisfação. Esse chamado assume diferentes formas no mundo moderno,
mas em essência pode ser reduzido a duas. A primeira seria a crença simplista
de que se pode, e se deve, ser o que se quiser ser, do jeito que se quiser ser,
desde que o próximo não saia prejudicado.
Existe uma
forma mais sutil e refinada, que é encontrada nos vários movimentos tipo “new
age”e de “autoajuda”. Frequentemente esses movimentos implicam chamados a uma
mudança, a uma transformação – até mesmo uma transformação do eu. Tais
movimentos defendem uma distinção: a distinção entre o amor próprio falso e o amor próprio verdadeiro, sendo o falso vinculado a
problemas e imperfeições, e o verdadeiro sendo autêntico e elevado.
No entanto,
o “verdadeiro eu” que se ambiciona descobrir e amar ainda é auto-definido pela
vontade e pelos desejos da própria pessoa. Como é grande essa tentação, e como
é penetrante e universal essa visão de mundo!
O
Cristianismo é a vida enraizada na vida do próprio Cristo. O fardo da vida não
é vivê-la para o eu, mas para Cristo; e seu objetivo não é satisfação, mas
transformação. O cristão é chamado para tornar-se,
para entrar em uma vida nova, que é a de outro – a vida de Cristo.
Ele tem de descobrir o “eu” de sua existência atual exatamente para que possa transformá-lo em uma vida que não seja
definida por sua vontade, mas definida e tornada real por outro – pelo próprio
Deus.
O cristão
ouve dois chamados: o de Deus e o do mundo. A tentação mais persistente é a de
responder a ambos, como se tivessem igual valor, ou como se tivessem valores
que pudessem andar lado a lado; mas isso seria ignorar as palavras do Senhor. Deixa os mortos sepultar os seus mortos
não foi uma frase pronunciada por Cristo com o objetivo de rejeitar o mundo de
maneira fria e despreocupada, mas com o objetivo de ensinar a Seus discípulos
que o chamado de um mundo que leva à morte deve ser deixado por si mesmo. O
chamado do Reino deve ser o único foco do coração cristão.
Ora, então
como deveríamos responder de maneira autêntica ao chamado celestial da
Santíssima Trindade? Como devemos proceder? A única maneira é por meio da
renovação em nós mesmos da visão ascética a nós transmitida pela Igreja, e por
meio da nossa conformação à vida que nos vincula à fonte da vida, ou seja, a
Jesus Cristo. Em termos práticos, isso tudo pode ser realizado mediante a
renovação da atenção aos contornos verdadeiras da batalha ascética: em primeiro
lugar, devemos reconcentrar nossa visão no Reino. Em segundo lugar, devemos
redesenvolver em nós a consciência a respeito de nossos inimigos: o diabo e os
demônios. Em terceiro lugar, devemos entender de maneira mais direta a natureza
das paixões. Em quarto lugar, devemos reaprender continuamente a natureza e a
prática da obediência. E em quinto lugar, devemos trabalhar para prestarmos um
testemunho melhor e mais forte perante o mundo.
Reconcentrando
nossa visão no Reino de Deus
Embora os
cristãos reconheçam a existência do Reino, e talvez até manifestem verbalmente
a necessidade de obtê-lo, qual seria sua natureza etc., o fato é que o Reino de
Deus frequentemente é visto como uma espécie de “pano de fundo” através do qual
se possa dar um certo aroma cristão à vida cotidiana. “Eu deveria fazer isso e
isso, porque este é um ato de amor e o Reino de Deus é um reino de amor”. Ou,
“Eu deveria buscar este bem, e não aquele, porque o Reino de Deus tem a ver com
esse tipo de coisa”. Não que não haja alguma nobreza em tais reflexões (sem
dúvida são melhores do que uma visão que absolutamente não leve em conta o
Reino); mas a vida cristã exige muito mais do que isso. Cristo não disse
“Quando vocês refletirem sobre esta vida, lembrem-se do Reino e então deixe que
ele tome parte naquilo que estiverem buscando”; ao invés disso, Ele disse: Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua
justiça. Somente depois de haver fornecido este foco único e primaz ao
esforço cristão, Ele acrescenta: e todas
estas coisas vos serão acrescentadas.
O chamado
de Cristo não é para que o homem de vez em quando se lembre do Reino ao qual
ambiciona, e que essa lembrança dê forma à sua vida cotidiana. Seu chamado é
para que o homem seja totalmente moldado
e formado pela busca do Reino. O foco de cada deliberação, de cada ação, de
cada pensamento, de cada movimento do coração, é a justiça de Deus, a qual
anuncia e torna acessível este Reino. Como ensina São João Crisóstomo: “A vocês
as coisas mais importantes não são estas que estão aqui presentes. Portanto,
visto que as coisas aqui são secundárias a nosso labor, que sejam elas também
secundárias em suas orações”.
Ao invés de
enxergarmos o contexto de nossos comportamentos, ações e decisões como sendo a
vida eterna do Reino permanente de Deus, o enxergamos como o curto espaço desta
vida e ajustamos nossa percepção e visão de mundo de acordo com ele.
Quando
fazemos planos para o futuro, é muito comum que miremos os anos da velhice.
Almejamos coisas e ações saudáveis que possam alongar, nem que seja por alguns
dias, nossa vida, pois na realidade consideramos a morte como o fim de tudo.
Mesmo que reconheçamos – talvez – a existência do Reino, o fazemos de tal
maneira que o estabelecemos como uma “segunda coisa”, depois dos afazeres e
negócios da era presente.
Ora, nesse
sentido a renúncia autêntica, o verdadeiro asceticismo, auto-humilhação e o
verdadeiro sacrifício não “fazem sentido”, pois não se conformam a uma visão de
mundo primordialmente voltada à vida presente.
Redesenvolvendo
a consciência a respeito de nossos inimigos
Que existe
o diabo, que existem demônios, e que esses seres travam guerra constante contra
a humanidade e sua salvação é um testemunho tão fundamental da Igreja que é
chocante que isso tenha de ser explicado a cristãos. A obra de Cristo neste mundo, durante o período de sua
primeira estadia como homem (pois Ele
verá novamente como homem para julgar os vivos e os mortos), centrou-se no
combate a Satanás e suas forças demoníacas. Ora, se esta é a obra de Cristo na
vida humana, será que a obra dos cristãos deveria ser outra?
Se, e
quando, a existência do diabo é admitida, ela o é como uma personificação
genérica do mal, mas raramente se confessa que ele é um ser com identidade,
vontade, intenção e que se ocupa ativamente das vidas dos seres humanos.
Eles são
ativos na batalha espiritual, travam verdadeiras guerras contra aqueles que
levam a vida cristã a sério. É impossível entrar na guerra se não reconhecemos
a existência do inimigo. Portanto, nossa escolha não é entre “lutar e não
lutar”, ou entre admitir ou não admitir sua realidade; nossa é entre lutar ou
ser derrotado.
Entendendo
a natureza das paixões
A
orientação correta em direção ao Reino de Deus não apenas permite que o coração
enxergue mais diretamente seu adversário – ou seja, o reino espiritual externo
que trava batalhas contra os justos –
mas também fornece a perspectiva que permite entender suas próprias batalhas
interiores.
A alma vem
a ser dominada por experiências que podem, de outras formas, ter um aspecto
positivo (como o amor, que pode ser divino; ou a raiva, que pode ser justa).
No entanto,
“paixão” se refere especificamente à dominação
passiva da pessoa pelos impulsos mal dirigidos do corpo e da alma. O pecado
opera de maneira destrutiva exatamente mediante o mau uso daquilo que é bom. É
o entregar-se ao domínio das nossas potências emocionais, aliado a seu mau uso,
que é o mal, que é aquilo que deve ser combatido. Na visão cristão do homem,
aquilo que o mundo frequentemente chama de “bom” em seu estado emocional são na
verdade os engodos, armadilhas e ciladas da batalha espiritual.
Ao sucumbir
aos desejos sensuais, ao invés de reinar sobre os domínios de Deus, o coração
do homem se “distrai” de sua verdadeira orientação a Deus e Seu Reino. Então
aquilo que parece como sendo a condição natural do homem nesta vida é, na
verdade, seu estado passional: a “norma” é a dominação, a escravização, o
aviltamento. A Igreja entende que esta condição “normal” da existência
passional permeia-se facilmente exatamente por causa de sua aparente
normalidade. No dia a dia o homem mal nota suas paixões de tão acostumado a
elas que está. Isso começa a mudar quando ele começa a levar sua vida
espiritual a sério. Quanto mais a sério levar esta vida, esta batalha, tanto
mais as paixões serão despertas.
Nesta
ascese, nesta batalha, as paixões deixam de fazer parte de um contexto completamente
familiares e, portanto, praticamente despercebido, e passam a manifestações
específicas da rebelião da alma e do corpo. O fato de o homem passar a focar-se
no Reino tem por efeito a correspondente concentração de suas paixões. Mas isso
também é condicionado pelo inimigo do
homem, o qual faz uso dessa concentração das paixões que surge em função
de levar a sério a batalha espiritual como fundação a partir da qual constrói novos
obstáculos ao crescimento autêntico.
Reaprendendo
a natureza e a prática da obediência
Dado que o
estado passional do homem é fruto da rebelião, então um guia seguro e
indubitável é necessário se o homem quiser ser salvo de seu estado triste e
pesaroso e renascer na vida da Santíssima Trindade.
Como as
paixões são perversões dos impulsos naturais, é compreensível que tenham uma
raiz nítida. Os Padres identificam esta raiz como sendo uma perversão específica
da vontade: arrogância, orgulho. As demais paixões que reinam tão livremente
sobre o coração humano têm sua fonte aqui. E eis por que os Padres também
identificam a virtude principal para o combate desta paixão principal: a
obediência, que por sua vez engendra a humildade que conquista o orgulho.
A obediência
é a virtude de uma vida na qual a vontade própria é sacrificado no altar da
Cruz, e a pessoa humana une-se à vontade de Deus. A vontade voluntariamente
entrega-se à vontade da Igreja (que é a vontade de Cristo) por meio de suas
doutrinas, pastores, professores e pais espirituais, de maneira que a pessoa
possa crescer acostumando-se à obediência que a une à verdadeira Fonte da Vida.
Até que o
coração venha a treinar sua vontade a conformar-se à vontade de Cristo, seus
confortos definem as ações e crenças que considerarão aceitáveis. Seus
pensamentos sobre verdade e sentido definem sua realidade.
Tal
escravidão à vontade, no mistério da profundeza e extensão do pecado, faz do
homem um demônio para si mesmo.
Quando a
obediência não forma a vontade, a vontade transforma-se em ídolo de si mesma, e
daí tiraniza o homem à maneira dos demônios. Se às vezes os demônios parecerem
distantes, inativos, frequentemente é porque já internalizamos sua obra por
meio da escravidão passional de nossas vidas. Há pouca coisa que necessitam
fazer para que sua obra se cumpra.
Antes de
tudo, a obediência molda-se e desenvolve-se mediante a correta relação do
cristão com o ciclo litúrgico dos ofícios divinos. Depois, a Igreja promove a
obediência por meio da aderência do cristão a seus cânones: confissão,
comunhão, ações e posturas físicas, orações e comemorações. Frequentemente os
tomamos como meras orientações” das quais extraímos aquilo que nos parece mais
palatável e razoável. Mas evidentemente não é assim que o cânones terão espaço
na transfiguração de nossos corações. Em terceiro lugar, a Igreja promove a
obediência mediante a relação do cristão com seu pai espiritual.
Testemunho
para o mundo
A batalha
cristã é travada no coração. Assim que qualquer batalha que procure cristianizar
o cosmos, se não começar no coração humano, opera com coisas secundárias, não primárias.
Tal ação é análoga àquela que tenta consertar uma casa desmoronada reformando o
madeiramento externo, enquanto suas fundações permanecem em estado de
decomposição.
É exatamente
mediante nossa atenção e dedicação a esta batalha e seus sadios contornos, que
temos o poder de falar ao mundo a mensagem verdadeira de Cristo, do Espírito, e
do Pai.
Viver a
missão cristã no mundo exige uma ousadia renovada. É necessário ousadia para
viver autenticamente a Vida em Cristo em um mundo que não exatamente a combate,
mas a ridiculariza. É necessário ousadia para pensar, falar, agir, e orientar
sua própria vida ao Reino, para reconhecer a realidade dos demônios, para buscar
e proclamar a obediência.
Fonte: Archimandrite Irenei, The Beginnings of a Life of Prayer, St. Herman of Alaska Brotherhood, 2012, Platina, CA, EUA.