5 de março de 2016

Viva o preconceito


As pessoas que desejam derrubar todos os preconceitos não se interessam tanto assim pela verdade, mas importam-se muito mais com a sua liberdade – o que vale dizer, uma liberdade concebida como o mais amplo campo para a satisfação de seus caprichos. O ceticismo dessas pessoas varia de acordo com o assunto. Elas acreditam que, ao apertarem o interruptor, a luz se acenderá, mesmo que lhes falte qualquer conhecimento sobre eletricidade. Todavia, um feroz e insaciável espírito investigativo as domina por completo no exato momento em que percebem que os seus interesses estão em jogo – o que significa, mais precisamente, a liberdade ou licença para que possam agir segundo os seus caprichos. Então, subitamente, todos os recursos da filosofia lhes são disponibilizados, e serão imediatamente usados para desqualificar a autoridade moral dos costumes, da lei e da sabedoria milenar.

Derrubar determinado preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito. O preconceito que afirma ser errado criar um filho fora do casamento foi substituído por outro que diz que não há absolutamente nada de errado com isso. A ideia de que não gostar de alguém não constitui base suficiente para xingar esse alguém, o fato de relações sociais toleráveis requererem autocontrole, o fato de viver em sociedade implicar o dever de se submeter a limites – tudo isso são noções que infelizmente não foram inculcadas em nossa atual sociedade como preconceitos.

Algumas pessoas desejam escapar das convenções tanto quanto outras desejam escapar da necessidade de ganhar a vida. De fato, não ser convencional tornou-se para elas uma virtude em si, da mesma forma que a originalidade se tornou hoje uma muleta para aquelas pessoas cujas aspirações artísticas excedem em muito o seu talento. Infelizmente, o desejo de se furtar a uma convenção é, em si mesmo, uma convenção.

A filosofia – ou, talvez, a “atitude” seria um termo melhor para descrevê-la – do individualismo radical instila um preconceito profundo em favor do eu e do próprio ego. A vida passa a ser concebida como uma extensão ilimitada da escolha do consumidor, uma rede em volta do supermercado existencial, de cujas prateleiras diferentes estilos de vida podem ser adquiridos, da mesma forma que se faz com os alimentos industrializados, e sem quaisquer consequências mais profundas ou significativas. Aquela pessoa que se diz contrária a toda e qualquer autoridade é, na verdade, somente contrária a algumas autoridades, aquelas de que desgosta. A autoridade que ela realmente respeita, é claro, é a sua.

Um radicalismo individual como esse tem outro efeito paradoxal: aquilo que começa como busca por um individualismo ampliado ou mesmo total termina com o aumento do poder do governo sobre os indivíduos ao destruir toda a autoridade moral que se coloca entre a vontade individual humana e o poder governamental. Tudo aquilo que não é proibido pela lei será ipso facto permissível. Isso, é claro, torna as leis e, portanto, aqueles que as produzem, os árbitros morais da sociedade. A ausência de qualquer autoridade intermediária entre o indivíduo de um lado e o poder político soberano do outro permite que o último se insinue por entre os mais recônditos lugares da vida diária. A falta de autoridades intermediárias, tais como família, igreja, organizações profissionais etc., nos acostumou a esperar, e aceitar, o direcionamento centralizado de nossas vidas, mesmo quando resulta em absurdidades.

Uma coisa é dizer que este ou aquele preconceito é revoltante ou extremamente danoso, outra coisa é dizer que podemos nos virar sem absolutamente nenhum preconceito. Havia, no passado, operações cirúrgicas que causavam mais danos do que benefícios, e sem dúvida isso ainda acontece em alguns casos, mas certamente não há motivos pelos quais a humanidade devesse abrir mão das vantagens salvadoras da cirurgia por uma questão de princípio.

Se a maioria de nosso conhecimento factual sobre objetos particulares se funda na confiança e na autoridade – pois não é dado a nenhum homem, não importa quão brilhante seja, a condição de viver tempo suficiente para ser infinitamente investigador – por que seria diferente em relação à dicta dos julgamentos morais e estéticos? A vasta maioria dos homens simplesmente não consegue levar a vida como se ela fosse constituída de longas séries de enigmas morais e intelectuais.

Mesmo que não seja possível derivar uma afirmação de valor de uma de fato, é necessário e inevitável que façamos afirmações de valor. Na prática, ninguém vive ou poderia viver sem julgamentos estéticos e morais, e refiro-me àqueles que não podem ser meramente deduzidos dos fatos. Bom e ruim, bonito e feio, estão construídos na estrutura mesma de nossos pensamentos, e não podemos eliminá-los, não mais do que podemos eliminar a linguagem ou o sentido de tempo. Infelizmente, nenhum sistema de proposições éticas, ou mesmo nenhum outro sistema de proposições, pode existir sem pressuposições, isto é, sem preconceitos. Existe um ponto para além do qual a racionalidade, ou o naturalismo, não pode ir, mesmo entre criaturas que foram dotadas de razão pela natureza.

Mas não é verdade que muitos preconceitos são de fato danosos, cruéis, estúpidos e malignos? Certamente que sim. Mas, reitero, não é porque alguns preconceitos sejam danosos que podemos viver sem preconceitos. Todas as virtudes levadas ao excesso se tornam vícios, e se tornam manifestações de orgulho espiritual; o mesmo vale para os preconceitos, inclusive os melhores, e o mesmo valerá para a tolerância. Eu não me dedico a examinar os nossos preconceitos; isso seria ridículo. Temos que ter, ao mesmo tempo, confiança e discernimento para pensarmos logicamente a respeito de nossas crenças herdadas, e a humildade para reconhecermos que o mundo não começou conosco, e tampouco terminará conosco, e que a sabedoria acumulada da humanidade é muito maior do que qualquer coisa que podemos alcançar de forma independente. A expectativa, o desejo e a pretensão de que podemos sair nus no mundo, libertos de todos os preconceitos e preocupações, de modo que toda situação se apresente como algo completamente novo para nós, são em igual medida atitudes tolas, perigosas e nefastas.

Essa pretensão é nociva porque não estaremos apenas enganando os outros, mas a nós mesmos, e desconsideraremos aquela pequena e constante voz dentro de nós. Debates estridentes e agressões virão. O quanto mais insistirmos em público a respeito de coisas que sabemos, ou mesmo suspeitamos, que não são verdadeiras, mais veementes e intransigentes nos tornaremos. O quanto mais rejeitarmos o preconceito qua preconceito, mais difícil será para nós recuarmos das posições que tomamos, e recrudesceremos a fim de provar que estamos livres de preconceitos. Um dogmatismo ideológico será o resultado, e todos sabemos a devastação que um dogmatismo como esse pode provocar.

É preciso ter capacidade de discernimento para saber quando um preconceito deve ser mantido e quanto deve ser abandonado. Os preconceitos são como as amizades: devem ser mantidos em bom estado. Por vezes, os amigos se distanciam e por vezes o mesmo deve acontecer aos homens diante de certos preconceitos; mas a amizade frequentemente se aprofunda com a idade e a experiência, e o mesmo deve acontecer com alguns preconceitos. Eles são aquilo que dão caráter às pessoas, mantendo-as juntas. Não podemos viver sem eles.

Fonte: Theodore Dalrymple, Em Defesa do Preconceito, É Realizações Editora, São Paulo, 2015, trechos selecionados e adaptados.

4 de março de 2016

A desonestidade emocional



"...o sentimental é a pessoa que quer ter o luxo de ter uma emoção sem pagar por ela".
Oscar Wilde

"Travaillon donc à bien penser. Voilà le principe de la morale". [Esforcemo-nos,portanto, para pensar bem. Eis o princípio da moral].
Pascal

Uma importante característica do tipo de sentimentalismo para o qual desejo chamar atenção é seu caráter público. Não mais basta derramar uma lágrima em particular, longe da vista alheia. É necessário fazê-lo, ou seu equivalente moderno, à plena visão do público. Suspeito, ainda que não possa provar, que isso seja em parte consequência de viver num mundo, incluindo um mundo mental, tão amplamente saturado por produtos da mídia de massa. Nesse mundo, aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. Não é real no sentido de que um reality show é real.

A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunham. Essa resposta deve, de maneira geral, ser simpática e afirmativa, a menos que a testemunha esteja preparada para correr o risco de um confronto com a pessoa sentimental e ser acusada de dureza de coração ou de pura e simples crueldade. Há, portanto, algo coercitivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar.

Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições. Não há muito sentido em fazer algo em público se, de fato, ninguém repara. Isso significa que exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam necessárias, se se pretende que elas compitam com outras e sejam notadas. Os tributos florais ficam maiores; a profundidade de um sentimento é medida pelo tamanho do buquê. O que conta é a veemência e o volume expressivo.

Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não coagem apenas os transeuntes ocasionais, como que os sugando para um fétido pântano emocional, mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas, começam a afetar as políticas públicas. O sentimentalismo permite que o governo jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa.

Assim, há um consenso universal de que a expressão da emoção deveria ser consoante tanto com a própria emoção quanto com a situação social, ainda que não haja acordo quanto ao ponto preciso em que essa expressão se torna excessiva. Isso em si não deveria nos preocupar, nem lançar dúvidas sobre a ideia de uma expressão excessiva da emoção, assim como o fato de não haver um consenso universal a respeito do que constitui um homem alto não deve lançar dúvidas sobre a existência de homens altos.

Sobre o razoável pressuposto de que a emoção está sob o controle consciente, o grau em que ela é expressa é, portanto, uma questão moral. Aquilo que é permissível e até louvável entre pessoas íntimas e confidentes é repreensível entre estranhos. De fato, o desejo ou a exigência de que todas as emoções sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em todos os momentos destrói a possibilidade mesma de intimidade. Se o mundo inteiro é seu confidente, então ninguém é. A distinção entre o privado e o público é abolida, e a vida, por conseguinte, fica mais rasa.

Mas não é só a expressão da emoção que deve ser disciplinada, é a própria emoção que deve ser sujeita à disciplina.

Perguntar quanta emoção é demais – na expectativa de que a resposta seja que nunca podemos dizer e, portanto, que nunca pode haver emoção demais – presume uma teoria quase hidráulica. Isso equivale a dizer que uma pessoa tem dentro de si certa quantidade de emoção, que se acumula (e a pessoa não controla a quantidade), e que, no que diz respeito à expressão, ela deve expressar-se de algum jeito – para dentro, ou, o que seria preferível segundo as maneiras modernas de pensar, para fora.

Na medida em que os homens diferem biologicamente pelo temperamento, seja pela operação da herança genética ou de alguma outra variável biológica, a teoria hidráulica contém um elemento de verdade. Alguns, sem dúvida, nascem fleumáticos, ao passo que outros nascem coléricos. Contudo, a ideia de que homens são, na questão das emoções que sentem, meros prisioneiros de seus dotes naturais é muito simplista e redutora. O apetite cresce com a alimentação; a emoção também cresce com sua expressão. Em outras palavras, o caráter de um homem é em parte obra dele mesmo, e aquilo que de início demanda esforço e autocontrole acaba se tornando uma disposição. Nem a emoção nem a expressão da emoção se justificam em si mesmas, ainda que às vezes se creia que sim, crença essa que é simplisticamente sentimental.

Sem dúvida, todos nós caímos no sentimentalismo às vezes sem que ninguém sofra nenhum grande mal. Talvez faça até bem. Mas aquilo que é inofensivo em privado não é necessariamente inofensivo, muito menos benéfico, em público; e aqueles que acham que sua conduta privada e pública deveria ser sempre a mesma, por medo de na diferenciação introduzir a hipocrisia, têm uma visão da existência humana que carece de sutiliza, de ironia e, sobretudo, de realismo.

O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ela seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil  (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade.

A necessidade de julgamento implica que nossa situação no mundo, assim com a de outras pessoas, é quase sempre incerta e ambígua, e que nunca se pode fugir da possibilidade de erro. Em nome de uma vida mental quieta, portanto, queremos simplicidade, não complexidade: o bem deveria ser inteiramente bom, o mal inteiramente mau; o belo inteiramente belo, e o feio inteiramente feio; o imaculado inteiramente imaculado, e o estragado inteiramente estragado; e assim por diante.

Hoje se considera que controlar a expressão das emoções para não ser inconveniente nem causar constrangimentos aos outros, e em nome do respeito próprio, é algo que está longe de ser admirável. Pelo contrário, é algo considerado psicologicamente nocivo ao eu, e uma traição para com os outros.

É psicologicamente nocivo ao eu porque a repressão inevitavelmente resulta em efeitos prejudiciais depois: afinal, a emoção é um fluido que, como todos os fluidos, não pode ser comprimido e, portanto, vai manifestar-se de algum jeito. Por exemplo, aqueles que não fazemo devido luto por um ente querido que se perdeu, isto é, que não se expressam com soluços, lágrimas e choros, ficarão seriamente deprimidos um pouco depois na vida; e aqueles que não expressam sua raiva têm mais chance de sofrer ataques do coração ou de ter câncer. A agressão não expressada contra os outros inevitavelmente se transforma em agressão direcionada para si mesmo.

Ocultar as próprias emoções é traiçoeiro com os outros porque implica uma desconfiança deles, uma falta de confiança em sua capacidade de compaixão. O ocultamento é furtivo, dissimulado, desonesto e culpado; o homem bom nada tem a esconder, sua vida é um livro totalmente aberto. Na verdade, quanto melhor ele for, mais aberto ele é: idealmente, devíamos viver num mundo de pleno fluxo de consciência, em que dizemos sem reservas tudo aquilo que pensamos.

A exigência de que a vida seja vivida assim abertamente é impossível. A maioria de nós provavelmente seria linchada em minutos se decidíssemos expressar em público cada ideia que nos vem à mente. Porém, só porque uma demanda ou um ideal é impossível de ser posto em prática, isso não significa que não tenha influência ou importância. A expectativa de que as pessoas expressem suas emoções ou enfrentem o risco de que não acreditem que elas têm emoções ou enfrentem o risco de que não acreditem que elas têm emoções na verdade inibe o exercício da imaginação, e toda faculdade que não é usada logo se atrofia. Por que fazer um esforço para imaginar quando se espera que tudo seja explícito? Porém, como a vida não pode ser vivida com tudo explicitado, isso significa que nossas simpatia e empatia por outras pessoas diminuem com a expressão da emoção em vez de aumentar – ao menos quando ela se torna excessivamente rotineira ou extravagante. Um homem que exclama “Caramba!” uma vez na vida transmite mais com essa palavra do que um homem que use continuamente expressões muito mais vulgares. Como todas as moedas, a da expressão emocional pode ser inflada e depreciada; e, outra vez, como no caso da moeda, o que é ruim afasta o bom.

É essencialmente tirânica a expectativa, que chega à exigência histérica, de que as pessoas expressem suas emoções em público após uma experiência traumática. Ela não reconhece que as pessoas são, por natureza, diferentes umas das outras; de acordo com essa exigência, todos devem conformar-se com um único padrão de conduta ou enfrentar o risco de serem considerados desumanos, esnobes ou emproados.

A expressão pública de uma emoção profunda, ou de uma emoção supostamente profunda, é intrinsecamente coercitiva. Isso não equivale a dizer que ela nunca é adequada, mas apenas a dizer que há a questão da adequação. Quando alguém expressa uma emoção profunda, ou quando uma emoção bem menos forte é expressa en masse, espera-se que todo observador tenha algum tipo de participação ou de reação. É isso que se espera. Normalmente, tentamos consolar aquele que julgamos ter boas razões para seu pesar manifesto; congratulamos aquele que está alegre por ter recebido excelentes notícias. Quanto mais próxima for nossa relação com a pessoa que expressa a emoção forte, mais próxima de sua emoção costuma ser nossa própria reação, ainda que haja circunstâncias excepcionais em que não seja assim.  Se permanecermos como pedra diante de uma pessoa num estado de grande emoção que devidamente julgamos ser genuína, e não damos absolutamente nenhum sinal de nos comovermos com ela, seremos suspeitos de não ter coração.

É lugar-comum afirmar que o sofrimento é intrinsecamente subjetivo. Em outras palavras, sua situação é abominável se você disser que é. À primeira vista, essa doutrina pode parecer profundamente imaginativa e compassiva, mas a realidade é bem diversa: ela é, ou pelo menos pode ser, uma máscara para a mais completa indiferença para com o sofrimento alheio. Ela dá a entender que todo sofrimento deve ser considerado a partir da própria estimativa do sofredor, o que significa que sofre mais quem expressa o sofrimento com mais força ou, pelo menos, com mais veemência. Não importa qual seja a origem do sofrimento. Se não podemos julgar a afirmação de sofrimento de uma pessoa contrastando-a com sua situação, comparando-a, por exemplo, com a situação de outra porção da humanidade, então não deixamos nada para a imaginação e não precisamos dar um salto de empatia: baseamo-nos puramente naquilo que é declarado. Não temos qualquer noção do que seja sofrer em silêncio; e, ao mesmo tempo, somos obrigados a tomar parte na autopiedade de todo mundo. Mal chegaria a surpreender se, a fim de atrair a atenção de nossa simpatia, as pessoas se sintam obrigadas a declarar sofrimentos inauditos, mesmo a partir das frustrações e desapontamentos mais banais e ordinários – e, na verdade, inevitáveis, que são a consequência da existência humana. Aqueles que em voz alta declaram sofrer muito por razões triviais acabam sofrendo mesmo. A imaginação alinha a realidade. Ademais, a apropriação do sofrimento alheio para ampliar a escala e a importância do sofrimento próprio é hoje um lugar-comum. É uma tendência internacional: a desonestidade emocional não conhece fronteiras.

Quando reivindicações falsas da condição de vítima se tornam frequentes, elas acabam servindo para reduzir a simpatia por aqueles que realmente sofreram e para induzir um estado de cinismo.

Por fim, cabe dizer que o desejo ou a ânsia de se transformar numa vítima tornou-se tão grande que hoje as pessoas afirmam ser vítimas de seu próprio mau comportamento. Como todo acontecimento é causado por algo, segue-se que todo comportamento que leva a consequências infelizes ou indesejadas deve ter uma causa; e, como uma escolha é também um acontecimento, ela também deve ter uma causa. Porém, como ninguém sabe a origem de suas próprias escolhas, todos são vítimas de circunstâncias além do próprio controle. Não é preciso dizer que essa lógica se aplica apenas ao que precisa ser justificado, e não apenas explicado. O sofrimento se tornou a marca da condição de vítima, não importando sua origem. Não se faz qualquer distinção entre o sofrimento que é autoinfligido e aquele que é inteiramente fortuito (e muito menos entre todas as sutis gradações intervenientes). Fazer a distinção seria julgar, o que se julga a pior coisa que se pode fazer, e por isso ninguém faz julgamentos dessa natureza.

A sugestão de que vítimas de comportamentos maldosos às vezes são cúmplices dele parece cruel a muitas pessoas, quando na verdade é sentimental ou aviltante não reconhecer isso. Esse não reconhecimento transforma adultos em bonecos, em meros simulacros de seres humanos, sem pensamentos ou atos próprios, sugerindo que eles nada podem fazer para ajudar a si mesmos, e dá poderes ilimitados àqueles que afirmam, no mais das vezes falsamente, serem seus protetores e salvadores. E, estranhamente, a recusa de ver o papel que as pessoas desempenham em sua própria ruína leva, na prática, a uma total insensibilidade e indiferença a seu sofrimento. Contudo, o hábito de evitar o juízo moral é, em todo caso, a máscara da indiferença e da insensibilidade. É uma impossibilidade psicológica ser igualmente compassivo com todos os sofredores do mundo, e a exigência de que o sejamos é, na verdade, a exigência de que não o sejamos com ninguém.

A desonestidade emocional na criação dos filhos

Será que há alguma razão inteligível para que as crianças e seus pais, que, pelos padrões de todas as gerações anteriores, gozam de excelentes condições de saúde física e de acesso a fontes jamais concebidas de conhecimento e de entretenimento, estejam tão ansiosas, agressivas e violentas? Há sim, e muitas delas têm sua origem no sentimentalismo, o culto do sentimento.

Os românticos enfatizavam a inocência e a bondade intrínseca das crianças, em contraste com a degradação moral dos adultos. Assim, o jeito de criar adultos melhores, e de assegurar que essa degradação não acontecesse, era encontrar o jeito certo de preservar sua inocência e sua bondade. Educar corretamente passou a ser impedir a educação.

Junto com sua inocência e com sua bondade estavam – ou lhes eram atribuídas – outras qualidades, como curiosidade inteligente, talento natural, imaginação vívida, desejo de aprender e capacidade de fazer descobertas por conta própria. Se a evidência de que as crianças não eram iguais sob todos os aspectos era forte demais para ser absolutamente negada, em seu lugar foi posta a ficção de que todas as crianças eram dotadas de ao menos um talento especial, e que, assim, eram iguais – e claro que todos os talentos seriam de igual importância.

A teoria educacional romântica, a que comprometidos pesquisadores subsequentemente deram a aura de ciência, está repleta de absurdos que seriam deliciosos momentos de riso caso não tivessem sido levados a sério e usados como base de uma política educacional que empobreceu milhões de vidas. A relutância daqueles que possuem inclinações românticas em reconhecer que havia algo profundamente errado com um sistema educacional que deixava uma grande proporção do povo incapaz de ler direito ou de fazer contas simples provavelmente deriva de sua falta de vontade de abandonar sua mentalidade pós-religiosa, a ideia de que, não fosse pelas deformações da sociedade, o homem é bom e as crianças nascem em estado de graça.

Hoje em dia, é comum que se pense que ter uma opinião sobre um assunto, algo que é ativo, é mais importante do que ter qualquer informação sobre aquele assunto, que é passivo; e que a veemência (sentimento) com que se sustenta uma opinião é mais importante do que os fatos (conhecimento) em que ela se baseia. Claro que os fatos não são tudo. É comum que as pessoas mais bem informadas sobre um assunto possam ignorar totalmente seu cerne, ao passo que as pessoas menos informadas o apreendam imediatamente. Contudo, o desenvolvimento do senso de proporções que possibilita esse feito demanda uma mente bem fornida de conhecimento de mundo, tanto implícito quanto explícito. Uma mente vazia de todos os fatos não está exatamente capacitada para enxergar qualquer questão em perspectiva.

O triunfo da visão romântica da educação foi duplamente desastroso por ter coincidido com o triunfo da visão romântica das relações humanas, particularmente das relações familiares. Essa visão é mais ou menos assim: sendo a felicidade o objetivo da vida humana, e sendo óbvio e patente o fato de que muitos casamentos são infelizes, é hora de basear as relações humanas não em bases extemporâneas e antirromânticas como a obrigação social, o interesse financeiro e o dever, mas em nada além de amor, afeto e inclinação. Todas as tentativas de estabilidade baseadas em qualquer coisa que não seja o amor, o afeto e a inclinação são intrinsecamente opressoras e devem, portanto, ser descartadas. Uma vez que as relações – especialmente aquelas entre os sexos – se baseiem apenas no amor, toda a beleza da personalidade humana, até agora tapada pelas nuvens do dever, da convenção, da vergonha social e afins surgiria como uma coruscante libélula no verão.

Afirmando querer trazer um mundo só de alegrias, sem tristezas, os intelectuais quase sistematicamente denegriram a família, tomando seus piores aspectos pelo todo e usando a reforma (muitas vezes, deveras necessária) como pretexto para a destruição.

O afrouxamento dos laços entre os pais dos filhos, não importando como foram forjados, teve consequências desastrosas tanto para os indivíduos quanto para a sociedade. Assim, obviamente, é preciso ser um intelectual treinado para ser capaz de negá-los. Ninguém pode duvidas seriamente de que sob aquilo que hoje pode ser chamado de ancien régime das relações sexuais – em que a normalidade era considerada o casamento monogâmico – havia frustração, infelicidade e hipocrisia. Muita coisa era varrida pra baixo do tapete; não apenas muita coisa acontecia sem ser observada, como também havia uma disposição, muitas vezes difícil de distinguir da necessidade, de passar por cima do óbvio. O divórcio e a separação eram a exceção, não a regra.

Por outro lado, um realista, mas não um sentimental, jamais ignoraria que o único modo de eliminar a hipocrisia da existência humana é abandonar todo e qualquer princípio; e que para os seres humanos, com suas mentes extremamente complexas, que mesmo assim não são capazes de compreender (porque nenhuma explicação de nada chega a ser definitiva) uma única ação sua, é impossível viver de maneira totalmente aberta. A crítica de uma prática porque ela demanda hipocrisia e ocultação, portanto, não é de modo algum uma crítica. A questão, na verdade, deveria ser: que prática e que tipos de hipocrisia e de ocultação são menos nocivos ao bem-estar humano? A resposta ao caos afetivo que a nova prática trouxe cai em dois padrões principais, que no entanto não são de todo mutuamente excludentes, a saber, de um lado, a indulgência excessiva e, de outro, a negligência e o abuso.

Obviamente, os pais estão aprisionados pela ideia romântica de que, parafraseando Blake, é melhor matar uma criança no berço do que permitir que ela cultive desejos sem tentar realizá-los. Essa ideia, parvamente sentimental, com sua recusa cega de ver que a realização dos desejos às vezes pode levar precisamente ao assassinato da criança no berço, para nem falar de outros horrores, é hoje bastante disseminada. Os pais de crianças a quem nada foi negado ficam sinceramente chocados quando elas se mostram egoístas, exigentes e intolerantes com a mais mínima frustração.

O outro lado da moeda do excesso de indulgência são a negligência agressiva e a violência. Aquele que promove pais e mães postiços na sociedade promove a negligência com as crianças e a violências contra elas. Aqueles adultos que formam e rompem casais como vidro sendo estilhaçado por uma pedra estão eles mesmos agindo a partir da teoria sentimental de que desejos tolhidos são excessivamente perigosos. A extrema fragilidade e friabilidade das relações entre os sexos, combinada com o desejo persistente pela posse sexual exclusiva do outro leva, não de maneira antinatural, a muito ciúme, que em si é a causa mais comum e mais forte da violência entre os sexos.

A maioria dos homens acha que os outros homens são como eles, e em qualquer ambiente social isso será provavelmente mais ou menos verdadeiro; assim, se eles forem sexualmente predatórios e se, como costuma ser o caso, eles “pegaram” a parceira sexual de seu melhor amigo, eles supõem que todos à sua volta, incluindo os amigos ou supostos amigos, estão empenhados em agir da mesma maneira.

Em suma, a visão sentimental da infância e das relações entre os sexos tem as seguintes consequências: deixa muitas crianças incapazes de ler adequadamente e de realizar cálculos simples. Isso, por sua vez, resulta em encerrar essas crianças nas condições sociais em que nascem, porque a incapacidade de ler, e uma educação básica de má qualidade, é quase (ainda que talvez nem tanto) impossível de ser consertada posteriormente. Não apenas isso significa que talentos possam ser desperdiçados e que crianças e adultos inteligentes possam ficar profundamente frustrados, como também reduz o nível geral de cultura na sociedade. A ideia de que as relações humanas devem ser permanente e apaixonadamente felizes, e, portanto, que todo obstáculo social, contratual, econômico e de costumes à consecução desse fim deve ser removido, assim eliminando todas as fontes de frustração e de motivos para a hipocrisia, leva ao excesso de indulgência, à negligência das crianças e à violência contra elas, e também a um aumento nos níveis de ciúme, a mais forte de todas as motivações para a violência entre os sexos.

A visão romântica e sentimental dos aspectos mais importantes da existência humana está, portanto, intimamente conectada à violência e à brutalidade da vida cotidiana. Ainda se deve observar que uma das consequências da adoção geral da visão romântica e sentimental da existência humana é a perda da clareza dos limites entre o permissível e o não permissível; afinal, a própria vida decreta que nem tudo é ou pode ser permissível. Contudo, a perda da clareza dos limites causada pela adoção de uma visão impossível como se fosse verdadeira, e a consequente recusa dos indivíduos em aceitar limitações a suas próprias vidas impostas por forças extemporâneas, isto é, forças que independem de sua vontade ou de seus caprichos, como as convenções sociais, os contratos e coisas afins, significa que a incerteza se torna não o terreno da especulação intelectual, mas da maneira mesma como a vida deve ser vivida. A incerteza, por meio da reação contra ela, gera intolerância e violência.

Fonte: Theodore Dalrymple, Podres de Mimados, É Realizações Editora, São Paulo, 2015, trechos selecionados e adaptados.