Sob a ótica do senso
comum, conhecimento tem a ver com familiaridade.
O conhecido, diz a linguagem comum, é o familiar. Se você está acostumado com
alguma coisa, se você lida e se relaciona habitualmente com ela, então você
pode dizer que a conhece. O desconhecido, por oposição, é o estranho. O grau de
conhecimento, nessa perspectiva, é função do grau de familiaridade: quanto mais
familiar, mais conhecido. Daí a fórmula: “eu sei = eu estou familiarizado com
isso como algo certo”. Mas se o objeto revela alguma anormalidade, se ele ganha
um aspecto distinto ou se comporta de modo diferente daquele a que estou
habituado, perco a segurança que tinha e percebo que não o conhecia tão bem
quanto imaginava. Urge domá-lo, reapaziguar a imaginação. Ao reajustar minha
expectativa e ao familiarizar-me com o novo aspecto ou o novo comportamento,
recupero a sensação de conhecê-lo.
Sob a ótica da abordagem científica,
contudo, a familiaridade é não só falha como critério de conhecimento como ela
é inimiga do esforço de conhecer. A sensação subjetiva de conhecimento
associada à familiaridade é ilusória e inibidora da curiosidade interrogante de
onde brota o saber. O familiar não tem o dom de se tornar conhecido só porque
estamos habituados a ele. Aquilo a que estamos acostumados, ao contrário,
revela-se com frequência o mais difícil de conhecer verdadeiramente.
Não é por estar absolutamente familiarizado om a faculdade
da visão, por exemplo, que eu conheço algo sobre os processos e mecanismos
intrincados que me levam a enxergar as coisas. A humanidade, de fato, conviveu
durante centenas de milhares de anos com a experiência subjetiva da visão – a
sensação de se estar vendo o que se vê –, sem que ninguém se desse conta de que
nada sabia a respeito. Foi só a partir do momento em que alguns homens perderam
a familiaridade com a visão e passaram a encará-la como problema – como algo
estranho e alheio demandando algum tipo de explicação – que o conhecimento do
fenômeno começou a sair do chão. A familiaridade cega.
Na abordagem científica, a objetividade substitui a familiaridade e a sensação pré-reflexiva
de conhecimento como critério de saber. O grau de conhecimento é função do grau
de objetividade: quanto mais objetivo, mais verdadeiro. O grau zero do conhecimento, nessa perspectiva,
consiste no vale-tudo permissivo e relativista do “assim é se lhe parece”. O
grau máximo é a verdade objetiva que
se mantém soberana mesmo que nela não creiam: “A verdade é o que é, e segue
sendo verdade, ainda que se pense o revés”.
* * *
Vivemos de modo indelével, imersos em subjetividade. As
perguntas fundamentais do autoconhecimento – quem sou? o que realmente desejo?
o que devo fazer de minha vida? qual o sentido de tudo isso? – estão fora do
escopo e do projeto constitutivo da ciência. Imaginar que ela será algum dia
capaz de atender à nossa demanda por autoconhecimento, valores e
inteligibilidade é como esperar que um transmissor de fax interprete o sentido
de um texto ou que um cego de nascença nos ilumine sobre a natureza das cores.
* * *
A percepção interna que temos dos nossos processos e estados
mentais e do tipo de pessoa que somos não se dá por meio de órgãos sensoriais,
como é o caso na apreensão da realidade externa, mas por meio de um processo
mental reflexivo que é parte integrante de nossa própria mente e que, ao ser
acionado, termina modificando e criando uma nova realidade interna. Por mais
que eu busque sair de mim e encontrar um ponto de vista externo, que me permita
um saber isento e fidedigno de minha vida mental/emocional ou de meu caráter,
não tenho como deixar de sujeitar o objeto de minha introspecção à minha
própria subjetividade. A observação de si interage e funde-se rudemente com o
observado. A interpretação é o texto.
* * *
Ao ouvirmos uma voz gravada, qualquer que ela seja, a
eletricidade conduzida pela pele aumenta. Ao ouvirmos nossa própria voz gravada, a condutividade dérmica aumenta ainda
mais, e isso é objetivamente registrado e medido por um instrumento chamado
polígrafo. O surpreendente é que quando somos convidados a identificar uma voz
gravada, dizendo se ela é ou não a nossa própria voz, nossas respostas são em
média menos certas do que as
registradas pelo polígrafo. O que se verificou a partir de testes exaustivos é
que os erros de identificação não são aleatórios, mas estão estreitamente
relacionados com o estado mental do sujeito. Enquanto estados depressivos e de
baixa autoestima tendem a nos fazer errar pelo não-reconhecimento da voz, mesmo
quando ela é nossa, estados eufóricos e de elevada autoestima tendem, ao
contrário, a nos fazer reconhecer erroneamente, como nossas, vozes que não nos
pertencem.
A interferência da subjetividade aparece aqui nas variações
da capacidade de identificar corretamente a própria voz gravada. O autoengano
está na inconsistência entre as respostas oferecidas pela condutividade dérmica
e medidas pelo polígrafo, de um lado, e as respostas dadas oralmente pelo
sujeito, de outro. É como se o corpo soubesse corretamente, embora ignorando
saber, aquilo que a mente ignora, embora acreditando saber.
No experimento, contudo, a voz, apesar de nossa, está vindo
de fora. Imagine agora o que acontecesse quando se trata de reconhecer e
procurar entender não alguma coisa unívoca e externa, como a própria voz
gravada, mas a cacofonia de vozes silenciosas que povoam a nossa mente; quando
o que está em jogo é a miríade caleidoscópica de estados e processos
mentais/emocionais cuja simples designação linguística é problemática. Escolha
o seu próprio caminho: pecado original, alienação, inconsciente, gene egoísta.
Os mapas diferem, as metáforas se alternam e as soluções teóricas se
multiplicam na história das ideias, mas a experiência do labirinto interno é
essencialmente a mesma: “O coração humano possui tantos interstícios nos quais
a vaidade se esconde, tantos orifícios nos quais a falsidade espreita, e está
tão ornado de hipocrisia enganosa que ele com frequência trapaceia a si
próprio”.
* * *
O autoengano é incompatível com a intenção consciente de
enganar-se a si próprio. Pela sua própria natureza reflexiva e autorreferente,
ele não pode ser deliberado ou planejado de forma calculada, como são os
exemplos mais notórios de blefe, trapaça, fraude e engano de terceiros. A noção
de autoengano voluntário e deliberado – no sentido em que o mentiroso trama e
calcula sua próxima mentira – é uma contradição lógica.
O hipócrita interior
que nos habita em segredo é um animal distinto do hipócrita social que nos ronda e assedia. Como um sedutor sutil e insinuante,
mas astuciosamente dissimulado e oblíquo, ele sabe que “a melhor maneira de
persuadir consiste em não persuadir”. A mentira que constamos em silêncio para
nós mesmos não mente, seduz. Ela se reveste do semblante da verdade para melhor
mentir.
O autoengano é, por natureza, uma ocorrência passiva, ou
seja, fechada à atenção consciente e sujeita a uma lógica peculiar. Nele não há
lugar para a deliberação, a má-fé e o cálculo frio característicos dos casos
mais claros de logro e tapeação interpessoal. Se a luz da atenção consciente é
o farol do hipócrita social – uma mentira puxa outra e todo cuidado é pouco
para não ser pilhado no pulo –, ela é fatal para o trabalho subterrâneo e
anônimo do hipócrita interior.
Dois caminhos básicos se oferecem para chegar lá [i.e. deflagrar
processos físicos e mentais involuntários]: o transporte situacional e o
mergulho introspectivo. A candidata mais óbvia para nos propiciar o transporte
situacional pretendido é sem dúvida a arte. Livros, peças, filmes, rituais
religiosos e canções com frequência nos conduzem à vizinhança de emoções mais
absorventes, e por aí a coisa pode acontecer. O caminho das pedras é o mergulho introspectivo. A condição sine qua non do sucesso da operação é
conseguir sinceramente esquecer o que estou tentando fazer. O efeito líquido
dependerá crucialmente da minha capacidade de abstrair a artificialidade do
projeto e embarcar sem reservas na emoção do momento. A arte tem o dom não só
de nos fazer esquecer e sentir, mas de nos fazer esquecer que estamos esquecendo e de nos fazer não sentir que sentimos sem sentir. É este segundo elemento – o enquadramento
do círculo implícito em esquecer que estamos esquecendo e não sentir que
sentimos o que não sentimos – que a consciência intermitente da premeditação
bloqueia. Quando, por qualquer motivo, o interruptor da atenção consciente não
desliga e as luzes internas da mente alerta teimam em ciscar e zunir, o
transporte e o mergulho são anêmicos ou não convencem. O vento não sopra, o
periscópio enguiçado não desce. O interruptor mental da entrega e do abandono é
um bicho arisco. A posição da chave não pode ser livremente escolhida. Mais que
impotente, o dedo intrusivo da vontade consciente é, com frequência, contraproducente.
Nosso repertório de ações propiciatórias é diversificado, mas sujeito a
restrições inibidoras. O uso e abuso de agentes químicos e ficcionais externos
está intimamente ligado à delicadeza e dificuldade de operações desse tipo. “É
uma exigência da natureza”, reconhece Goethe com argúcia, “que o homem, de
tempos em tempos, se anestesie sem dormir; daí o gosto de fumar tabaco, beber
aguardente ou fumar ópio”. Alguns, é certo, parecem bastar-se a si mesmos. “Três
quartos das demandas existentes no mundo”, observou o crítico social inglês
John Ruskin em 1870, “são românticas – baseadas em visões, idealismos,
esperanças e afetos; e a regulação da carteira é, na sua essência, a regulação
da imaginação e do coração”. A imaginação engole o estômago. A escalada do recurso
a catalisadores químicos e ficcionais no mundo contemporâneo – a busca
frenética e insaciável de situações e estados mentais que tragam o alívio da
anestesia desperta do duplo esquecer – é uma evidência avassaladora da demanda
por processos que nos permitam a um só tempo dirigir e soltar, controlar e
largar as rédeas sobre nós mesmos. Na prática, o que torna as mentiras que
contamos para nós mesmos mais palatáveis e fáceis de digerir é o fato de que
existem mentiras e mentiras. A mentira simples, como a que faz do círculo um
quadrado, é um caso limite. O passado é dotado de maior ou menor plasticidade
na memória humana, mas ele não pode ser diferente do que foi. Mas, quando se
trata do futuro, a história é outra.
Se existe alguma coisa irremediavelmente fechado quando contemplamos o passado,
existe algo curiosamente aberto
quando vislumbramos o futuro. A indeterminação lógica de crenças e afirmações
acerca do que está por acontecer é um trapézio que nos convida a inacreditáveis
e silenciosas proezas. Existem dois poderosos núcleos de interesse, entretanto,
para os quais converge uma parte expressiva das ações e expectativas humanas: o
apetite por sexo e amor na vida
privada e o apetite por poder, riqueza e
proeminência na vida pública. Ao redor desses dois vetores gravitam
vigorosas e obstinadas paixões na dinâmica de qualquer sociedade. Não
surpreender, portanto, que também sejam, cada um a seu modo, espaços
privilegiados para a fixação involuntária de crenças e o exercício do prometer
autoenganado. Sonhar e acreditar no sonho são o sal da vida. Não há nada de
errado, em princípio, em apostar alto na vida privada ou na vida pública,
correr o risco no amor, na política, nos negócios, na arte ou no que for o
caso. O problema não está em sonhar e apostar, mas na qualidade do sonho e na
natureza da aposta. O melhor dos mundos seria combinar o ideal prático da coragem das nossas convicções, quando se trata de
agir, com o ideal epistêmico da
máxima frieza e distanciamento para atacar e rever as nossas convicções, quando
se trata de pensar. A dificuldade reside em viver à altura dessa exigência
simultânea de entrega e autocontrole. A quadratura do círculo é insidiosa e
segue um padrão bem definido. Duvidar dói. Se a certeza que me toma é tão
íntima, veemente e arrebatadora, então ela só pode ser verdadeira. Se o meu
entusiasmo pela causa é tão intenso e as convicções que me movem à frente são
tão fortes, então elas não podem ser falsas. Seria exagero supor que quanto
maior a intensidade de uma crença, menor a probabilidade de que ela seja
verdadeira. Mas o envolvimento de emoções poderosas no processo de formação de
crenças é razão de sobra para que se proceda com a máxima cautela. Todo cuidado
é pouco. O brilho intenso ofusca e o calor é inimigo da luz. Crenças saturadas de
desejo podem ser verdadeiras, falsas ou indecidíveis. Mas o simples fato de que
estão saturadas de desejo é sinal de que temos um enorme interesse – e ínfima
isenção – na determinação do seu valor de verdade. Está aberta a porta dos
fundos para a inocência culpada de resultados que escarnecem brutalmente de
nossas intenções.
* * *
A subjetividade humana abriga duas forças paralelas e
simétricas. De um lado está a nossa resistência a uma visão radicalmente imparcial – neutra, isenta
e externa – de nós mesmos: ninguém consegue pisar fora do círculo de sua
individualidade e ser efetivamente o outro para si próprio. É possível
afastar-se um pouco, buscar um ponto de vista externo, abordar criticamente a
nossa natural parcialidade, mas existem limites lógicos e psicológicos ao
impulso de se olhar de fora para si mesmo.
No outro extremo, no entanto, encontramos uma resistência
surda e arraigada ao que nos afronta como sendo o efeito de uma parcialidade excessiva por nós mesmos:
ninguém suporta conviver com uma imagem repugnante de si próprio e estamos
permanentemente ocupados em corrigir, pelo menos em alguma medida, o viés
abusivo de nossa sensibilidade espontânea por tudo aquilo que nos toca e afeta
mais de perto. Se a imparcialidade levada ao limite fere e sufoca o animal
humano, os excessos de parcialidade por nós mesmos, quando se tornam explícitos
e abertamente reconhecidos, ofendem, agridem e envergonham a nossa humanidade.
Ninguém nasce com ela, mas alguma faculdade de ordem moral,
assim como a competência para o uso da linguagem, faz parte do equipamento
básico do homem para a vida em sociedade. Essa capacidade se manifesta, entre
outras coisas, no sentimento de vergonha diante dos outros e de nós mesmos, e
no exercício de alguma forma de discernimento entre o certo e o errado em situações
envolvendo escolha moral.
Fonte: Eduardo Gianetti, Auto-engano, Companhia das Letras,
São Paulo, 2005.