10 de janeiro de 2014

Partidas são sempre iguais; é a chegada ao destino que coroa o viajante


Há uma opinião que tem ganhado cada vez mais fama e que é extremamente plausível. Diz-se que místicos das mais diversas origens religiosas deparam-se com as mesmas coisas. Tais coisas têm pouco ou nada a ver com as doutrinas professadas por suas respectivas religiões – Cristianismo, Hinduísmo, Budismo, Neoplatonismo etc. Portanto, segue o argumento, o misticismo, por evidência empírica, é o único contato real que o homem já teve com o invisível. O fato dos exploradores concordarem em seus relatos é prova de que todos estiveram em contato com algo objetivo. É portanto a religião única e verdadeira. O que chamamos de “religião” nada mais é do que ilusões ou, na melhor das hipóteses, os diversos pórticos através das quais se pode adentrar à realidade transcendente.

Bem, tenho sérias dúvidas quanto a essas premissas. Teriam Plotino, Juliana de Norwich e São João da Cruz realmente deparado-se com “as mesmas coisas”? Mesmo que admitamos alguma similaridade. O que é comum a todos os misticismos é a interrupção temporária da consciência ordinária espaço-temporal e da razão discursiva. O valor da experiência negativa deve depender da natureza da positiva, seja ela qual for, a qual engendrou. Ora, mas a experiência negativa não deveria mesmo ser sentida sempre da mesma forma? Se os copos de vinho tivessem consciência suponho que estar vazio seria a mesma experiência a todos, mesmo que alguns já estivessem vazios, alguns cheios de veneno e outros quebrados no chão. Todo mundo que parte em uma viagem pelo mar vai “deparar-se com as mesmas coisas” – a terra sumindo no horizonte, o rastro de água atrás da embarcação, a brisa com aroma salgado. Turistas, comerciantes, pescadores, piratas, missionários – todos passam por isso. Mas essa experiência idêntica não confere absolutamente nada à utilidade, à legitimidade ou à finalidade de suas jornadas. A utilidade, a legitimidade e a finalidade da jornada mística em nada dependem do fato de ser mística – ou seja, do fato de ser uma partida --, mas dos motivos, técnicas e experiências do viajante, e da graça de Deus. Partidas são sempre iguais; é a chegada ao destino que coroa o viajante. O santo, por ser santo, prova que seu misticismo (se ele for místico; nem todos os santos o são) o levou ao destino certo; o fato de ter praticado o misticismo em nada prova sua santidade.

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A nossa dificuldade em rezar é em boa parte explicada pelos pecados, conforme qualquer bom professor dirá; pela inevitável imersão nas coisas do mundo, pelo desprezo à disciplina mental. E pelo pior tipo de “temor a Deus”. Intimidamo-nos ante a perspectiva de um contato íntimo, pois tememos as exigências que nos serão impostas. Como dizia um velho escritor, tem muito cristão por aí que reza baixinho “para que Deus não o ouça, coisa que, coitado, não era mesmo sua intenção”. Mas os pecados – os pecados individuais e reais– talvez não sejam a única causa do fracasso na oração.

Pela própria constituição que a mente humana hoje possui – não importa como era quando Deus a concebeu – é difícil concentrar-se em algo que não é nem sensível (como batatas) nem abstrato (como números). Aquilo que é concreto mas imaterial só pode ser mentalmente concebido com muita dificuldade. (p. 114).


Fonte: C. S. Lewis, Letters to Malcolm, Harcourt, Inc., 1963, Orlando, EUA.