19 de setembro de 2013

A origem da cultura


A primeira queda após a perda do Paraíso foi quando Caim matou Abel. Todavia, Deus disse a Caim: o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar (Gênesis 4:7). Mas Caim matou seu irmão. A esta primeira queda seguiu-se a primeira eleição, isto é, a de Sete e sua prole. Os filhos de Sete são os "filhos de Deus": eles invocam o nome de Jeová e um deles, Enoque, "andou com Deus" e talvez tenha sido levado com corpo e tudo ao Paraíso. Os descendentes de Caim, por outro lado, são apenas filhos do homem, tragicamente entregues à morte (Eu matei um homem por me ferir, e um jovem por me pisar, disse Lameque). Amaldiçoados a cultivarem a terra cuja boca sorveu o sangue de Abel, foram eles os primeiros cidadãos, os inventores das artes e das técnicas. Com eles surge a civilização; que imensa compensação pela ausência de Deus! Urge esquecer ou substituir Deus. Por exemplo, esquecê-Lo mediante a fabricação de metais, submetendo-se ao peso da terra e ao poder opaco que ela confere: assim ocorreu com Tubalcaim, o "mestre de toda a obra de cobre e ferro" (Gênesis 4:22); substituí-Lo pelo prazer da arte, pela consolação nostálgica da música: assim ocorreu com Jubal, o "pai de todos os que tocam harpa e órgão". As artes aparecem aqui como valores culturais, e não como culto; elas são como que orações perdidas por não serem dirigidas a Deus. A beleza que engendram volta-se a si mesma, acorrentando o homem em sua magia. As invenções inauguram a cultura, isto é, o culto a abstrações, vazias de toda Presença para a qual todo culto deveria voltar-se.

Fonte: Vladimir Lossky, Orthodox Theology, SVS Press, pág.86-87, Crestwood, EUA.

Imagem: Caim matando Abel, Daniele Crespi (1598-1630).

18 de julho de 2013

O último dia de meus 36 anos



George Gordon (Lord) Byron (1788-1824)

É hora do coração permanecer imóvel,
Pois em outros ele não mais se move:
Muito embora eu não possa ser amado,
Deixe-me amar!

Meus dias encontram-se em páginas amareladas;
As flores e frutos do amor se foram;
O verme, a ferida e o pesar
São todos meus!

O fogo que em meu âmago rapina
É solitário como uma ilha vulcânica;
Não há tocha que se acenda em suas labaredas--
Uma pira funerária.

Esperança, temor, cuidado invejoso,
A porção exaltada da dor
E o poder do amor, compartilhar não posso
Apenas acorrentar-me.

Mas não assim--e não aqui--
Pensamentos tais não perturbarão minh´alma agora,
Onde a glória adorna o esquife do heroi,
Ou ata sua fronte.

Espada, estandarte e o campo,
Glória e Grécia à minha volta me veem!
O espartano, nascido sob seu escudo,
Não é mais livre.

Desperta! (não a Grécia--ela está desperta!)
Desperta, espírito meu! Pensa através de quem
Teu sangue trilha seu lago parental,
Para então voltar para casa!

Esmaga as paixões que se renovam,
Hombridade indigna!--sob ti
Indiferente o sorriso ou o olhar
Da beleza deve ser.

Se te arrependes da tua juventude, por que viver?
A terra da morte honrosa
Está aqui:--para o campo, e dedique a ele
Teu fôlego!

Procura--menos almejado do que encontrado--
A sepultura de um soldado, para ti o melhor;
Então olha em volta, e escolha teu chão,
E repousa.

Fonte: Lord Byron: The Major Works, Oxford World´s Classics, 2008.

31 de maio de 2013

Oração antes da leitura espiritual


São João Crisóstomo

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo: Ó Senhor Jesus Cristo, abre meu coração para que possa ouvir e entender Tua palavra e fazer Tua vontade, pois sou um residente temporário nesta terra. Não oculte Teus mandamentos de mim, mas abre meus olhos para que possa compreender as maravilhas de Tua lei. Dizei-me as coisas ocultas e secretas de Tua sabedoria. Em Ti deposito minha esperança, ó Deus meu, de que Tu iluminarás minha mente e meu entendimento com a luz de Tua sabedoria, não apenas para cultivar as coisas que estão escritas, mas para cumpri-las, para que não peque ao ler as vidas, obras e provérbios dos santos, mas para que sirvam à  minha restauração, iluminação e santificação, para a salvação da minha alma e herança da vida eterna. Pois Tu és a luz daqueles que residem nas trevas, e de Ti vem toda boa obra e dádiva. Amém.

29 de maio de 2013

A teologia da mistagogia


Pe. Michael Azkoul

A teologia da mistagogia é sempre negativa ou apofática. A Mistagogia de São Fócio está repleta de expressões teológicas negativas. Quem estiver familiarizado com as liturgias de São João Crisóstomo e São Basílio, o Grande, se lembrará que estes ofícios expressam a linguagem da "santa e augusta hierurgia dos cristãos". [*] Dessa forma, Fócio é coerente com os outros Padres ao referir-se a Deus como o "transcendente em essência", "incorpóreo", "superdivino", "Deus indiferenciado e indivisível" (Mistagogia 6). Ele é a "Trindade superboa (hyperágathos)" (Mistagogia 43), a qual não deve ser confundida com o summum bonum dos escolásticos. Deus não é o "bem supremo"; Ele está para além de todo bem, para além de todos os nomes, descrições, atributos e denominações. Ele está para além de todo conhecimento e todo ser, não sendo nem totum esse nem verum esse. [**]

São Dionísio, o Areopagita, declara apofaticamente no capítulo V de sua Teologia Mística:
Ascendendo cada vez mais alto, sustentamos que Ele [Deus] não é nem alma, nem intelecto; nem possui Ele imaginação, opinião, razão ou entendimento; nem pode Ele ser expresso ou concebido, pois Ele não é nem número, nem ordem; nem grandeza, nem pequeneza, nem igualdade, nem desigualdade; nem similaridade, nem dissimilaridade; nem possui Ele poder, nem é Ele poder, nem luz; nem vive Ele, nem é Ele vida; nem é Ele essência, nem eternidade, nem tempo; nem está Ele sujeito a contato inteligível; nem é Ele ciência, ou verdade, ou realeza, ou sabedoria; nem um, nem unicidade; nem divindade, nem bondade; nem é Ele espírito, segundo nosso entendimento, nem filiação, nem paternidade; nem nada conhecido a nós ou a qualquer outro ser, nem das coisas que existem ou das coisas que não existem; nem nada que existe O conhece como Ele é; nem conhece Ele as coisas que existem segundo o conhecimento existente; nem a razão O alcança, nem O nomeia, nem O conhece; nem é Ele trevas, nem luz, nem falso, nem verdadeiro; nenhuma afirmação ou negação pode a Ele ser aplicada, pois embora afirmemos ou neguemos as coisas que Lhe estão abaixo, não podemos afirmá-Lo ou negá-Lo, na medida em que a Causa única e oniperfeita de todas as coisas transcende toda afirmação, e a simples preeminência de Sua natureza absoluta está fora de qualquer negação -- livre de toda e qualquer limitação e para além de todas elas.
Não fosse "o conhecimento de Deus implantado em nós por natureza", conforme declarou São João Damasceno [***], e não tivesse Ele revelado-Se em Seus "efeitos", isto é, em Sua energias e operações, e por fim em Sua encarnação, não teríamos absolutamente nenhum conhecimento acerca de Deus.

Ora, se o que os homens conhecem de Deus é resultado de Sua condescendência e se tal conhecimento flui por inspiração, e não por especulação, isso significa que a verdade ou falsidade do filioque deve ser determinada à parte de quaisquer formulações do intelecto humano. O teólogo deve possuir a "mente" (phronema) da Igreja. Portanto, São Fócio revela que todos os hierarcas presentes no sínodo de 879-880 -- inclusive os emissários do papa -- aprovaram "a verdadeira doutrina do Espírito Santo, adotando uma profissão de fé em completo acordo com os Padres, Concílios e, sem sombra de dúvida, com as palavras do próprio Senhor". "Eles aprovaram a doutrina com idêntica intensão (homophrones), com palavra e discurso, e com a assinatura de suas próprias mãos". (Mistagogia 25). De modo oposto, o santo não deixou de notar que aqueles que declaram falsas doutrinas -- neste caso, o filioque -- fracassam na tentativa de "teologizar mistagogicamente" (Mistagogia 20).

Segundo o Patriarca de Constantinopla, o filioque está fora da mistagogia. Ora, em que consiste sua falsidade? Em primeiro lugar, o filioque impôs a analogia do ser à Trindade, ao mistério do Divino. O filioque é uma noção catafática, sendo que os Padres ensinam que todas as afirmações "positivas" acerca de Deus referem-se à Seus "efeitos", à "economia" de Sua ações. Regozijamos na misericórdia que vem de Deus, mas não podemos dizer que a misericórdia seja um atributo de Deus. Podemos crer nas palavras do Gênesis de que o homem é feito "à imagem e semelhança de Deus", mas não podemos depreender daí que o Criador possui "memória", "intelecto" ou "vontade". Esse tipo de linguagem é própria dos homens e só pode ser aplicada a Deus equivocamente.

[*] Ad. Amph., q. 111 (PG 101, 656c)

[**] Sobre a teologia latina medieval tardia, cf. E. Gilson, The Spirit of Medieval Philosophy, traduzida por A. H. C. Downes (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1940), pág. 64ff, 96ff. O escolasticismo reduziu a "teologia negativa" a mero catafaticismo corretivo. Para os Padres, porém, a abordagem apofática era algo normal, e até mesmo os nomes das Pessoas eram compreendidas negativamente. "Declaramos que Deus Pai, aquele que não tem princípio, não é o Filho, nem o Espírito; e o Filho gerado não é nem o Pai, nem o Espírito; e o Espírito Santo 'que procede do Pai" não é nem o Pai, nem o Filho" (São Gregório, o Teólogo, Ora XXXI, 9, PG 36, 141d-144a).

[***] De Fid. Orth. I, 3.

Fonte: Introdução de On the Mystagogy of the Holy Spirit, de São Fócio, o Grande, tradução do Mosteiro da Santa Transfiguração, Studion Publishers, 1983, pág. 20-22, 26.

8 de maio de 2013

Cristo não é um imenso papagaio vermelho


Pe. Nicolae Steinhardt

A ressurreição não é uma farsa nem engano, só se for verificado que qualquer milagre é impossível, toda ressurreição é uma lenda. Se os monofisistas, os nestorianos ou docetistas tivessem razão, não me teria tornado cristão por nada deste mundo. Significaria que a ressurreição foi, na melhor das hipóteses, um símbolo ou uma representação. Não seja! Apenas a desesperança humana na cruz prova a integridade e a seriedade do sacrifício, impede-o de ser quem sabe que jogo, que truque.

O Senhor tinha vindo decidido a beber até o fundo do cálice e a batizar-se com o batismo da cruz, mas no Monte das Oliveiras, quando se aproximava o momento, rogou, porém, que se afastasse dele o cálice. É certo que acrescenta: faça-se Tua vontade. No entanto, foi real a vacilação. E na cruz, apesar da comunicação dos idiomas, apesar do fato que tinha a consciência plena da ressurreição, a natureza humana parece ter prevalecido certo tempo – assim como, contrapontisticamente, predominou a natureza divina no Monte Tabor, porque de outro modo não se teria ouvido tão naturalmente estou com sede nem tampouco o allzumenschlich (tão-humano): Meu Deus, por que me abandonaste?

O ato da crucificação foi tão sério, tão autêntico e total, que até mesmo os apóstolos e os discípulos estavam convencidos de que o que estava pregado na cruz do meio não ressuscitaria. Se a sua crença não tivesse sido tão sacudida, Lucas e Cleofas não teriam andado entristecidos, arrastando os pés pelo caminho até Emaús, e teria reconhecido na hora o ressuscitado e não teriam ficado tão admirados quanto entenderam que era ele. (Tinham se sentido tão sem jeito, tão enganados, que pediram ao primeiro viandante, um desconhecido, para não os deixar sós, e ficasse com eles.) Nem Tomé teria apresentado condições tão drásticas (e, falando corretamente, ofensivas) se ele não estivesse seguro de que a ressurreição, de acordo como se passaram as coisas, não era possível.

Ninguém acreditou. A crucificação era tão definitiva para eles como para os escribas. E era necessário, para confirmar o sacrifício, que a crucificação desse impressão de final, de solucionado, de negócio classificado, de bom senso vencedor. Não bastavam – para a ressurreição que devia ser – não bastavam as torturas horríveis, os pregos, a lança, os espinhos – no quadro de Mathias Grünewald de Unterliden os espinhos trespassam todo o corpo entrado já em putrefação – ainda havia necessidade – para completar, para o endurecimento – parecer também uma catástrofe, confusão, fiasco.

Apenas o grito! Eli, Eli nos prova que o crucificado não brincou conosco, que não se aproximou para nos acariciar com fingimentos esfumados (Como sempre, tratou os homens como seres livres e maduros, capazes de receber as verdades desprazerosas.) Ao contrário de Buda e de Lao-tsé, ele não dá aforismos e exemplos, mas a carne e o sangue, o sofrimento e desesperança. A dor sem desesperança é como a comida sem sal, como uma boda sem músicos.

(E se o bom ladrão é o primeiro homem que chega ao paraíso – antes dos profetas, dos patriarcas e dos justos do Velho Testamento – pode ser que não tanto pela sua tremenda conversão como pelo fato que foi companheiro de sofrimento com o Senhor. Porque uma coisa é estar ao pé da cruz e sofrer, quanto de sincero e de esgarçado, outra coisa é estar na cruz. A dor do outro não é a tua, é dele, penetra em ti apenas por um processo ideativo, não pelos sentidos. Apenas o bom ladrão sente o mesmo que o Senhor.)

A encarnação foi total, como ensina o sínodo de Calcedônia.

Bem, total, mas Cristo na cruz não deixou de ser também Deus. Eu: não se contesta a permanência da comunicação de idiomas, mas depois de algumas horas na cruz o humano devia ser predominante; doutro modo a tragédia seria contrafeita.

Sou obstinado: que teriam querido os seguidores de Nestório, os docetistas, os monofisistas – ou os ateus? Fazer Cristo da cruz um sinal com os olhos para eles, para lhes dar a entender: deixai, que isso só serve para os olhos do mundo, estai despreocupados, sabemos o que fazemos, ver-nos-emos domingo de manhã?

Que horrível “espetáculo” pressupõe, sem querer, o monofisismo!

Os argumentos do texto: nos Romanos (8,32) escreve Paulo: “O que ainda a seu próprio Filho não perdoou, mas o entregou por todos nós...”. Esse não O perdoou demonstra-nos também que na cruz não se desdobraram os símbolos, e que aconteceu um sofrimento real. Apenas pela junção da dor física com a tortura moral se obtém o decocto final: a amargura suprema.

O mesmo Paulo em I, Cor 1,23: “Mas nós pregamos a Cristo crucificado”, em 2,2: “Porque julguei não saber coisa alguma entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado”. Por que o acréscimo “e Este crucificado” senão para acentuar o lado mais insano e mais escandaloso? A razão sábia se harmonizaria até o fim com um Deus crucificado simbolicamente e que concede sofrer aparentemente (doutro modo os homens não entendem), mas o paradoxo e a confusão (ou seja, o cristianismo) representa a divindade não apenas na cruz – solemniter – como pregado verdadeiramente; onde sofre manifestamente com os nervos (as lendas e as epopeias da Idade Média, que sabia o que é a dor, sempre se referem aos nervos), as fibras e a alma do pobre do homem até as consequências últimas (também Cristo tem, apesar da heresia de Apolinário, alma humana inteira). Se ele tivesse mantido – mesmo em parte – a impassibilidade na cruz, se não tivesse gostado plenamente a desesperança humana, o evento acontecido no Gólgota não teria sido – para os filósofos, para os sacerdotes e para o vulgo – uma ocasião de tropeço e de confusão, mas, “cenário” ou “ritual”, portanto, admissível, comestível.

Em I, Cor, 6,20 e em 7,23, insiste Paulo: “Porque vós fostes comprados por um grande preço”.

Por um preço honesto. Inteiro. Deus não enganou a ninguém, nem ao diabo, nem a nós; nem a si mesmo não se enganou. Não pagou com aparência de sofrimento, com uma cruz mítica, ou com dinheiro falso. O preço não o pagou um fantasma; foi carne de nossa carne, sangue de nosso sangue.

E na carta aos Hebreus (2,17; 2,18 e 4,15): Por tudo isso era devedor entre todos (salvo do pecado, para se assemelhar aos irmãos (nossos); pois Ele em si foi tentado, pode ajudar aos que são tentados, tentado entre todos, segundo nossa semelhança). Assemelhou-se a nós em tudo e era tentado por todos como nós: assim também pela desesperança humana.


Deus, que abandonou Cristo na cruz, não está também ausente para conosco?

Uma coisa que não consigo entender, que nem os contemporâneos do Senhor entenderam. Os que esperavam a vinda do Messias em sua glória. Que não podiam entender, e que não podemos entender: pois o Senhor, como diz Kierkegaard, não é um imenso papagaio vermelho.

Se aparecesse na praça de repente e sem motivo um pássaro gigantesco muito colorido, certamente que todas as pessoas se precipitariam para vê-lo e entenderiam que não é algo muito comum.

Num caso desses, seriam muito fáceis à fé, a penitência. Mamão com açúcar. Toma lá, dá cá.

Pede-se-nos, porém, que creiamos na liberdade plena e se diria que – pior que isso – o cenário se desenvolve als ob [como se] estivéssemos não apenas completamente abandonados, mas também – além disso, um mal nunca vem só –, a providência faz de maneira intencional tudo para não crermos; dir-se-ia que lhe agrada acumular obstáculos, aumentar-nos os riscos, acrescentar argumentos para transformar em algo impossível a vontade bem intencionada de devoção.

Os caminhos que levam à fé têm o mesmo nome, todos: aposta, aventuras, incertezas, pensar de louco.

Dostoiévski: Se Deus não desceu da cruz, é decerto pelo motivo de querer converter o homem não pelo constrangimento de um milagre evidente, mas pela liberdade de crer e dando-lhe o ensejo de manifestar seu arrojo.

Quando se dizia ao Senhor no Gólgota: salva-te a ti mesmo e, então, cremos, o erro era, de fato, de ordem linguística, julgava-se com fundamento numa confusão de termos. Se tivesse descido da cruz, já não era necessário crer, pois teria havido o reconhecimento de um fato (como no caso do papagaio vermelho: a descida de cruz ter-se-ia constituído num imenso papagaio vermelho).

Pede-se-nos – um convite à valentia temerária e à aventura palpitante – algo mais misterioso e mais estranho: que contestemos a evidência e confiemos num não fato.

Age por vias tortuosas. Vias impenetráveis, dizem os franceses. Mas os ingleses são mais precisos: mexe-se de maneira misteriosa.

Leon Bloy: “Ó Cristo, que oras pelos que te crucificam e crucificas aqueles que te amam!”.

Quando Kierkegaard escreve que Deus não quer mostrar-se à maneira extravagante, deslumbrante e constrangedora de um imenso papagaio vermelho, está parafraseando as palavras de Lucas 17,20-21: “O Reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores: nem dirão: Ei-lo aqui, ou ei-lo acolá. Porque eis que aqui está o Reino de Deus dentro de vós”.

É de admirar que um povo com uma mente tão afiada como o judeu tenha podido ater-se a um Messias glorificado, descendo do céu com uma pompa definitiva que não se poderia sofrer a mais mínima dúvida, mas apenas a prosternação, a verificação. Como não desconfiaram que o plano divino recorreria a um caminho menos simplista? A solução messiânica imaginada por Judas é de uma candura semelhante à solução cênica de um deus ex machina.

Fonte: N. Steinhardt, O Diário da Felicidade, É Realizações, São Paulo, 2009, trechos selecionados, pág. 109-110, 119-120 e 275-276).

Imagem: A Crucificação, de Matthias Grünewald (1470-1528).

21 de janeiro de 2013

Como preservar a saúde mental



Se quer preservar sua saúde mental em Los Angeles (ou em qualquer grande cidade americana), você precisa cultivar a arte de ficar acordado. Você tem de aprender a resistir (com firmeza, não tensamente) às incessantes sugestões hipnóticas do rádio, dos outdoors, dos filmes e jornais; essas vozes demoníacas que não param de sussurrar no seu ouvido o que você precisa desejar, o que você precisa temer, o que você precisa vestir, comer, beber e desfrutar, o que você precisa pensar e ser. Eles têm uma vida todinha planejada para você -- do berço à sepultura e ao além -- que seria fácil, fatalmente fácil, aceitá-la. Ao menor vaguear da atenção, ao menor relaxamento da consciência, e a pálpebra já começa a fechar, os olhos ficam dispersos, o corpo começa a se mover em obediência aos comandos do hipnotizador. Acorde, acorde -- antes que você assine aquele contrato de sete anos, antes que compre aquela casa que você não quer, antes que se  case com a mulher que você secretamente despreza. Não tome esse whisky, ele não vai resolver seus problemas. Você tem de pensar, discriminar, exercitar seu arbítrio e julgamento. E você tem de fazer isso, repito, sem ficar tenso, com muita calma e raciocínio. Pois se você ceder à fúria contra o hipnotizador, se você quebrar o rádio e rasgar o jornal, tudo o que conseguirá é cair no outro extremo e fossilizar-se em uma excentricidade insolente.

Fonte: Christopher Isherwood, “Los Angeles”, publicado em Exhumations (1966).

16 de janeiro de 2013

Carta a um convertido



Prezado “João”,

Pelo que eu entendi, você está prestes a se tornar ortodoxo. Não sei nada sobre você a não ser o fato de que é inglês.

Antes de mais nada, há um ponto que eu gostaria de deixar claro. Não me disseram por que você quer se converter, mas eu lhe garanto que não faz o menor sentido se sua conversão for motivada por razões negativas. Você vai encontrar tantas coisas “erradas” (se não mais) na Ortodoxia quanto na Igreja Anglicana ou na Igreja Romana.

Portanto, o ponto principal aqui é: você está preparado para encarar mentiras, hipocrisias, maledicências etc. na Ortodoxia tanto quanto nas demais religiões ou denominações? Você está achando que vai encontrar uma espécie de paraíso na Terra, cheio de incensos e do tipo certo de música? Você acha que vai direto para o céu só porque faz o sinal da Cruz lentamente, com o devido cuidado e correção? Você tem um livro de culinária com todas as receitas dos autênticos pratos russos de Páscoa? Você já é um especialista em beijar três vezes em todas as ocasiões possíveis ou impróprias? Você consegue se prostrar com elegância, sem deixar cair papéis dos bolsos?

OU.....

Você leu os Evangelhos? Você já encarou o Cristo crucificado? Você esteve em espírito na Última Ceia – o sentido da Santa Comunhão?

E.....

Você está preparado, com toda a humildade, para entender que você nunca, jamais, nesta vida, saberá nada para além da Fé; que a Fé significa aceitar a Verdade sem prova. Fé e conhecimento são o píncaro da contradição – e a absorção última uma na outra. A Ortodoxia viva baseia-se no paradoxo, o qual é transmitido na adoração – pública e privada. Conhecemos porque cremos, cremos porque conhecemos.

Acima de tudo isso, você está preparado para aceitar que todas as coisas vêm de Deus?

Se o que importa é “ser feliz”, então por que a Crucificação? Você está preparado, não importa o que aconteça, a acreditar que de alguma forma, em algum lugar, isso faça sentido? Isso não significa aguentar as coisas passivamente, mas a eterna vigilância; acima de tudo, Amor.

Pobres, velhos, doentes, até nosso último suspiro, conseguimos amar. Não essa bobagem sentimental que chamam de amor, mas o amor sacrificial – a crucificação interior da ganância, da inveja, do orgulho.

E nunca confunda amor com sentimentalismo.

E nunca confunda adoração com afetação.

Seja humilde – ame, mesmo que seja difícil. Não essa coisa sentimental que chamam de amor. E não faça da adoração na igreja um jogo de cena!

Espero que alguma coisa do que disse faça sentido.

Atenciosamente,

Madre Tecla


Foto: Madre Tecla com seu filho espiritual, o compositor britânico Sir John Tavener.

6 de janeiro de 2013

A República: trechos selecionados


Céfalo explica a Sócrates que a velhice pode ser um tormento ou uma bênção, dependendo do grau de ordem e simplicidade que se vive quando moço.

Por várias vezes, já me tenho encontrado na companhia de alguns velhos mais ou menos da minha idade, confirmando, com isso, antigo brocardo. Quase todos, durante a conversação, não paravam de lamentar-se, de lastimar a perda dos prazeres da mocidade e de evocar à memória as delícias do amor, da mesa, as comezainas e outras de igual espécie, mostrando-se acabrunhados ante a perda de tão preciosos bens. Aquilo é que era vida, comparada com a de agora! Alguns se queixam dos familiares, acusados por eles de não tratarem os velhos com o devido respeito, e não cessam de entoar a trenodia da velhice e dos transtornos que esta lhes acarretou. Mas, a meu ver, Sócrates, eles não insistem na verdadeira causa. Se a causa fosse a velhice, eu também teria de passar por tudo aquilo, como tantas outras pessoas que alcançaram a minha idade. Ora, nesse particular já tenho encontrado muitos velhos com os quais nada disso acontece. De uma feita, mesmo, estando eu na companhia do poeta Sófocles, alguém lhe perguntou: “Como te achas, Sófocles, no que respeita os prazeres do amor? Ainda consegues unir-te a mulheres?” Ao que ele respondeu: “Cala-te, amigo! Estou mais do que satisfeito por me haver libertado disso, como quem conseguiu escapar de um senhor despótico e violento!” Suas palavras, então, me pareceram muito belas, e até agora não as considero de outra maneira. De fato, de todo modo, a velhice traz consigo paz e liberdade; quando as paixões afrouxam o seu domínio e deixam de se fazer sentir, confirma-se plenamente o dito de Sófocles: livramo-nos de uma turba de tiranos enfurecidos. Sobre isso e as queixas relativas aos familiares, a causa é uma só: a velhice não tem culpa, Sócrates, mas o temperamento de cada um. Para quem sempre viveu com ordem e simplicidade, a velhice é um fardo suportável; de outro modo, Sócrates, tanto a velhice como a mocidade são penosas para qualquer pessoa. (Livro I, 329a-d)

Glauco conta a história do anel de Giges. Sua intenção é demonstrar que o justo não o é por livre iniciativa, mas por coação.

A melhor maneira de alcançar a liberdade a que me refiro seria dar-lhes [ao homem justo e ao homem injusto] o poder que outrora teve Giges, segundo contam, genearca do Lido. Giges era um pastor a serviço do rei da Lídia. Por ocasião de um grande temporal, acompanhado de tremor de terra, o solo se abriu, formando-se uma fenda no lugar em que ele levara a pastar o seu rebanho. Ao ver isso, tomado de admiração, penetrou na abertura, tendo percebido, segundo contam, entre outras maravilhas, um cavalo de bronze, oco e provido de pequenas janelas, através das quais, enfiando a cabeça, notou um cadáver que se lhe afigurou de proporções mais do que humanas: inteiramente despido, deixava ver um anel de ouro numa das mãos. Retirando-o, voltou Giges para cima. Na reunião habitual dos pastores, para apresentarem ao rei o relatório mensal do estado do rebanho, compareceu também Giges com o anel no dedo. Como estivesse sentado no meio dos outros, aconteceu virar casualmente a pedra do anel para a palma da mão, com o que imediatamente tornou-se invisível para os circunstantes, que passaram a referir-se a ele como se já não se encontrasse ali presente. Cheio de admiração, tornou a mexer no anel e virou o engaste para o lado de fora, depois do que voltou a ficar visível. Tendo percebido o que se dera, fez várias experiências para ver se, de fato, era o anel dotado de tão extraordinária virtude, e sempre com o mesmo resultado: tornava-se invisível quando a pedra era virada para dentro, voltando a aparecer quando a dirigia para fora. De posse desse conhecimento, trabalhou para ser um dos mensageiros do rei, e, chegado à corte, seduziu a rainha, com a sua ajuda atacou o rei, assassinou-o e apoderou-se do trono. Na hipótese, portanto, de haver dois anéis iguais a esse, sendo um deles usado pelo homem justo e o outro pelo injusto, ninguém, absolutamente, segundo tudo o indica, revelaria resistência de diamante para conservar-se fiel à justiça e não se apoderar dos bens alheios ou não tocar neles, muito embora tivesse a possibilidade de tirar do mercado, com toda a segurança, tudo o que quisesse, penetrar em qualquer casa e deitar-se com quem lhe apetecesse, matar ou libertar da prisão quem bem entendesse, e fazer tudo o mais, tal qual um deus entre os humanos. (Livro II, 359c-360a)

A estrada do vício é tranquila, a da virtude é tortuosa.

Em reforço de suas [dos adivinhos e charlatães] pretensões trazem o testemunho dos poetas, que deixam cômodo o caminho do vício:

Para chegares aos vícios, por mais numerosos, é muito fácil: macio é o caminho; bem perto eles todos demoram. Ante a virtude, porém, o suor colocaram os deuses e uma estrada comprida e íngreme.
(Livro II, 364 c-d)

O ardiloso raciocínio de Adimanto segundo o qual é mais proveitoso ser injusto e parecer justo, absorvendo-se em sociedades secretas e clubes políticos, do que ser justo. Quanto às possíveis punições advindas dos deuses, é possível escapar-lhes mediante orações e sacrifícios.

Não faltará quem repita para si mesmo aqueles versos de Píndaro:

Como escalar o muro intransponível: pelo direito ou por caminhos tortos,

a fim de passar seguro o resto da vida? Estou cansado de ouvir dizer que a justiça não me será de nenhuma vantagem e, ao contrário, só me ocasionará trabalhos e dissabores, se, além de ser realmente justo, eu não parecer que o sou; porém se for injusto e souber aparentar justiça, prometam-me uma vida somente comparável à dos deuses. Por conseguinte, visto proclamarem os sábios que a aparência manda na verdade e dirige a felicidade, é para esse lado que deverei voltar-me. À guisa de vestíbulo e fachada, vou traçar ao redor de mim mesmo um simulacro da virtude, porém arrastarei atrás de mim a sutil e astuciosa raposa do sapientíssimo Arquíloco. Porém, já ouço alguém observar não ser fácil ao malvado ficar despercebido por muito tempo. Sim, lhe responderemos, o que é grande não é fácil; o certo é que, se quisermos ser felizes, teremos de entrar pelo caminho a que vão dar os rastos do discurso. Para não sermos descobertos, fundaremos sociedades secretas e confrarias, sem contar com o recurso dos professores de persuasão, que nos comunicarão a sabedoria demagógica e a tribunícia, e ora à custa de argumentos, ora com o emprego da força, saberemos tirar partido de tudo sem incorrermos em nenhuma penalidade. Porém, aos deuses nada escapa, não nos sendo possível violentá-los. Muito bem; mas, e se eles não existirem ou não derem a mínima atenção aos negócios humanos, por que essa preocupação de nos escondermos? Se existem, de fato, e se preocupam conosco, tudo o que sabemos deles é por ouvir dizer ou o que nos contam os poetas em suas genealogias. Ora, esses mesmos poetas afirmam que eles são sensíveis a sacrifícios e oferendas, como a preces piedosas, e que se deixam dobrar pelos homens. É preciso acreditar em ambas as coisas ou em nenhuma. Se lhes dermos crédito, poderemos ser injustos e oferecer sacrifícios com o próprio fruto de nossa atividade. É certo que, se formos justos, escapamos do castigo dos deuses, mas, por outro lado, renunciaremos às vantagens da injustiça. Se formos injustos, pelo contrário, guardaremos o ganho e por meio de preces, convenceremos os deuses a relevar nossas faltas e transgressões, do que resulta, afinal, escaparmos ao castigo. Sim, mas no Hades ser-nos-ão impostas penas pelos crimes aqui praticados, ou aos filhos de nossos filhos. Ora, meu caro, contestará quem souber fazer as contas, muito podem as expiações e os deuses libertadores, conforme declaram as grandes cidades e os filhos dos deuses, os quais, como poetas e na qualidade de intérpretes dos pensamentos divinos, nos asseguram que tudo, realmente, se passa dessa maneira. (Livro II, 365b-366b)

Sócrates ensina que a educação musical habitua a alma a reconhecer o que é bom e belo, antes mesmo da razão explicar-lhe o porquê. Quando a razão trouxer a explicação, a alma se regozijará com alegria redobrada. A tradução de G.M.A. Grube traz que, além da educação musical, a educação poética também exerce o mesmo efeito.

E não é nisso precisamente, Glauco, continuei, que consiste a superioridade da educação musical, por calarem fundo na alma o ritmo e a harmonia e aderirem nela fortemente? E porque servem de veículo ao decoro, não deixam honesta a alma, sempre que for bem orientada a educação? Caso contrário, o oposto é o que se observa. E também pelo fato de perceber com acuidade quem nesse domínio desfruta de educação adequada, o que é falho ou menos belo nas obras de arte ou nas da natureza, e com mal-estar justificado, por esse fato, passa a elogiar as coisas belas e acolhê-las alegremente na alma, para delas alimentar-se e tornar-se nobre e bom, e a censurar, com toda a justiça, o feio, dedicando-lhe ódio nos anos em que ainda careça de entendimento para compreender a razão do fato; mas, uma vez chegada a razão, dar-lhe-á as boas vindas com tanto maior alegria, por se lhe ter tornado familiar em todo o processo de sua educação. (Livro III, 401d-402a)

Sócrates convence Glauco de que o amor entre dois homens só é verdadeiro se semelhante ao amor de um pai pelo filho. A verdadeira afeição entre dois homens nunca envolve prazer sexual, típico de indivíduos grosseiros e incultos.

E serias capaz de citar um prazer maior e mais violento do que o prazer do amor?

Não, respondeu; nem mais furioso.

Ao passo que o verdadeiro amor é amante da sabedoria e da beleza, temperante e músico ao mesmo tempo.

Sem dúvida, respondeu.

Assim, não deverá aproximar-se do verdadeiro amor nem a loucura nem o que tiver afinidade com a incontinência.

É muito certo.

Logo, esse prazer, também, não deverá aproximar-se do amor, como não devem ter o menor contato com aquele o amante e o amado ligados por legítima afeição.

Sim, por Zeus, disse; não deverá aproximar-se.

De tudo isso podemos concluir que terás de estabelecer por lei, na cidade por nós fundada, que o amante só deverá beijar o amado, conviver com ele ou tocar nele como se se tratasse de um filho, por amor ao belo, e assim mesmo somente depois de alcançar o seu consentimento; em tudo o mais, as relações com o jovem a quem se afeiçoou nunca devem dar azo à suspeita de que foram além desse limite; caso contrário, será tido na conta de indivíduo grosseiro e carecente de educação musical [e poética].

De inteiro acordo, respondeu. (Livro III, 403a-c)

Sócrates ensina que a Medicina é para aqueles que ainda gozam de saúde suficiente para prosseguir suas vidas familiares e profissionais. De outra forma, não é sábio que a Medicina dê sobrevida a quem cuja vida a natureza claramente determinou o fim, sob pena de prejudicar o paciente e a comunidade a qual faz parte.

Podemos, por conseguinte, afirmar que foi por saber disso que Asclépio só pensou naqueles que por natureza e pelo regime de vida mantêm saudável o corpo e que apenas são acometidos de doenças bem definidas; para indivíduos assim constituídos foi que ele revelou a sua Medicina; com poções ou incisões debelava-lhes os incômodos; permitia-lhes os exercícios das ocupações habituais para não prejudicar os interesses da comunidade, porém, não punha a mão nos organismos minados por doenças, com prescrever-lhes qualquer regime de pequenas purgações ou infusões fracas e não lhes prolongar com isso a vida miserável nem contribuir para que gerassem filhos, como seria de esperar, inteiramente iguais aos pais. Era de parecer que não valia a pena tratar de quem se revelava incapaz de viver o tempo fixado pela natureza, o que não seria de proveito nem para ele nem para a comunidade.

Fazes de Asclépio, disse, um verdadeiro estadista.

Sem dúvida, repliquei; nem foi por outra coisa. Observaste como seus filhos se comportavam violentamente nos combates diante das muralhas de Tróia, ao mesmo tempo em que praticavam a Medicina a que há pouco me referi? Deves estar lembrado da passagem em que Menelau foi vulnerado por Pândaro:

Chupam-lhe o sangue, cobrindo-a depois habilmente com bálsamo,

sem determinar o que ele deveria comer ou beber depois disso, o que também não fez Eurípilo, pela certeza de que as drogas empregadas eram bastante idôneas para curar quem antes de ser ferido gozava saúde e adotava regime frugal, ainda mesmo que chegasse a beber aquela mistura; mas os indivíduos de constituição doentia e vida desregrada achavam que não era de vantagem viver, tanto para eles como para a comunidade, e que nem a arte da Medicina fora criada para isso, nem havia a necessidade de tratar de nenhum, ainda que fossem todos mais ricos do que Midas.

Muito sagazes, disse, segundo os descreves, foram os filhos de Asclépio.

Só lhes faço justiça, repliquei. Não obstante, os trágicos e Píndaro, em desacordo conosco se, por um lado, dizem que Asclépio foi filho de Apolo, afirmam também que se deixou seduzir por dinheiro para curar um indivíduo rico, já no ponto de morrer, motivo de ter sido atingido por um raio. Porém nós, coerentes com o que dissemos antes, não damos crédito a nenhuma dessas assertivas. Se ele era filho de um deus, é o que afirmamos, não podia ser ávido de dinheiro mal-adquirido, e se visava a algum lucro sórdido, não podia ser filho de nenhuma divindade. (Livro III, 407c-408c)

Sócrates ensina a Glauco que os médicos podem e devem experimentar as doenças, pois eles tratam corpos com suas almas. Os juízes, porém, não devem experimentar a injustiça. A doença é externa à alma do médico, mas a injustiça não é externa à alma do juiz.

Formam-se os mais hábeis médicos, obtemperei, quando, além de começarem o estudo desde moços, examinam o maior número possível de corpos da mais precária constituição, e que, ao lado de compleição malsã, tenham sofrido toda espécie de doenças. Sim, porque não é com o corpo, segundo penso, que eles tratam do corpo; caso contrário, não lhes seria permitido cair doente ou serem de constituição fraca. É com a alma que tratam do corpo, não podendo aquela cuidar bem de nada, se for doentia ou se vier a adoecer.

É muito certo, disse.

Mas, no caso do juiz, meu caro, a alma governa a alma. Por isso mesmo, não se concebe que, desde os mais tenros anos, seja ela educada e viva entre almas ruins, nem que tenha experiência de toda sorte de crimes, no pressuposto de que dessa maneira poderá conhecer e julgar com segurança os crimes dos outros, como do próprio corpo ela conclui para as doenças. Ao contrário: é preciso que desde a mocidade se conserve pura e estreme de vícios, para que decida com critério sadio sobre os casos concretos, partindo de sua própria honestidade. Esta é a razão de parecerem simplórias na mocidade as pessoas justas e de serem fáceis vítimas dos espertalhões: é que, no íntimo, não carregam modelos do que se passa na alma dos perversos.

É precisamente, disse, o que se dá com eles.

Por isso mesmo, prossegui, um bom juiz não pode ser moço, porém já avançado em anos, só devendo aprender muito tarde o que é propriamente a injustiça, não por haver tomado conhecimento dela como de algo que residisse em sua própria alma, mas por observação demorada e como vício estranho na alma dos outros, para alcançar o conhecimento de sua natureza por meio do estudo, não da experiência pessoal.

Um juiz nessas condições, disse, seria o ideal. (Livro III, 408d-409c)

A educação física dá coragem, a filosofia e a música dão conhecimento. Ambas devem ser praticadas juntas, visando a alma. Se praticadas isoladamente, produzem brutalidade e covardia, respectivamente.

E seguindo essa mesma pista, na aprendizagem da Ginástica não conseguirá o músico, se assim o quiser, dispensar de todo a Medicina, a não ser nos casos de extrema necessidade?

Penso que sim.

Fará seus exercícios e trabalhos mais com o fito de despertar e fortalecer a coragem inata do que a força física, diferentemente dos demais atletas, que só por amor da força bruta se sobrecarregam de alimentos e exercícios.

É muito certo, respondeu.

E as pessoas, Glauco, lhe perguntei, que estabeleceram a Música e a Ginástica como base da educação, não teriam em vista, com isso, como muitos pensam, formar o corpo por meio desta, e por meio da outra a alma?

Que mais poderia ser? perguntou.

Pode-se dar o caso, observei, de haverem sido ambas estabelecidas principalmente para a alma.

Como assim?

Ainda não observaste, lhe falei, como é constituído o caráter das pessoas que a vida inteira se ocupam com Ginástica, sem tocar em Música, e o das que procedem ao contrário disso?

A que te referes? perguntou.

De um lado, brutalidade e dureza, lhe disse; do outro, maciez e doçura.

Sim, respondeu; sei muito bem que os que praticam com exagero a Ginástica tornam-se mais grosseiros do que fora de desejar e, por outro lado, os que só se dedicam à Música ficam demasiado moles, o que não é bonito para eles.

No entanto, observei, essa brutalidade se origina de um temperamento arrebatado, que com boa educação pode dar origem à coragem; mas, quando forçado além de certo limite, fica intratável e duro.

É também o que eu penso, disse.

Continuemos: e a doçura, não é de natureza filosófica? E, no caso de ser relaxada em excesso, não se torna mais mole do que fora razoável, como, se for bem dirigida, branda e moderada?

Isso mesmo.

Mas também afirmamos que nossos guardas terão de ser dotados naturalmente de ambas as qualidades.

É fato.

Logo, será preciso deixá-las harmônicas entre si.

Como não?

A alma assim harmonizada será a um tempo sábia e corajosa.

Perfeitamente.

E a desarmônica, covarde e grosseira?

Muito!

Logo, quando alguém se dedica à Música e derrama na alma pelo canal dos ouvidos, como por um funil, as harmonias doces, brandas e melancólicas a que há pouco nos referimos, e passa a vida a gorjear e a deleitar-se com a beleza do canto, inicialmente o elemento irascível de sua alma se torna brando, tal como se dá com o ferro que, de imprestável e quebradiço, fica maleável e útil. Mas, se não se detém nesse processo de amolecimento e continua a cultivar a Música, chegará a ponto de derreter-se e de fundir-se, até que a coragem se lhe dissolva de todo e ele, com os nervos da alma cortados, se degrade à condição de combatente sem préstimo.

É muito certo, respondeu.

No caso, continuei, de ser ele de espírito fraco por natureza, essa modificação se processa rapidamente; o indivíduo de alma decidida perde em pouco tempo a coragem e se torna impressionável, pronto para explodir à menor provocação e a acalmar-se de repente. De animosos que eram, tornam-se violentos, irascíveis e absolutamente imprestáveis.

Seguramente.

E na hipótese contrária: no caso de praticar alguém exercícios físicos em excesso e de comer em demasia, sem tocar nem de leve na Música e na Filosofia, a boa disposição física não o deixará, no começo, orgulhoso e animado, mostrando-se mais corajoso do que era antes?

Sem dúvida.

E daí? No caso de não fazer outra coisa e de não ter nenhum comércio com as Musas? Ainda mesmo que abrigue na alma certa curiosidade de saber, pelo fato de nunca provar nenhuma espécie de conhecimento ou de pesquisa nem de participar de discursos ou de qualquer outra manifestação de cultura, não acabará aquela curiosidade por enfraquecer-se e ficar surda e cega pela falta de estímulos e de alimentos e por não serem purificadas suas sensações?

É muito certo, observou.

Um indivíduo nessas condições torna-se inimigo do pensamento e das Musas; para persuadir, jamais recorrerá à palavra, e tudo realizará brutalmente, por meio da força, como um animal feroz, vivendo como ignorante nas mais grosseiras práticas e alheio de todo à graça e ao sentido do equilíbrio.

Tudo isso é muito certo, disse.

E foi provavelmente visando a esses dois princípios, segundo penso, que alguma divindade deu aos homens as artes da Música e da Ginástica, para o elemento da coragem e a sede do saber, não para a alma e o corpo, a não ser apenas como acessórios, mas tendo em vista aqueles dois princípios, a fim de se harmonizarem reciprocamente, por meio da tensão e do relaxamento, conforme as circunstâncias. (Livro III, 410a-412a)

Sócrates descreve a Glauco as quatro virtudes da alma (“cidade”): sabedoria, coragem, temperança e justiça.

Inicialmente, teremos de admitir que nossa cidade é perfeita, uma vez que foi construída como devia ser.

Forçosamente, disse.

Terá de ser, por conseguinte, sábia, valente, temperante e justa.

É claro.

[...]

[Sabedoria] E então? perguntei: haverá em algum dos componentes da cidade fundada por nós um conhecimento próprio para aconselhar, não a respeito deste ou daquele assunto peculiar à vida pública, mas ao conjunto dela própria, sobre a melhor maneira de dirigir-se a si mesma e de tratar com as demais comunidades?

Há, sem dúvida.

Qual é, perguntei, e em quem se encontra?

O conhecimento dos guardas, me disse, que se encontra nos governantes por nós qualificados como guardas perfeitos.

[...]

[Coragem] A cidade será corajosa em virtude de uma parte de si mesma, por ser nessa parte que reside o poder que em todas as circunstâncias mantém a opinião relativa às coisas que são para temer, e quem devem ser as mesmas e da mesma natureza das que o legislador indicou no seu plano educativo. Não é a isso que dás o nome de valentia?

Não apanhei bem o sentido de tuas palavras, replicou; torna a falar.

O que digo, observei, é que a coragem é uma espécie de salvação.

Salvação de quê?

Da opinião criada pela lei por meio da educação, a respeito do que sejam as coisas para se temerem e de sua natureza. Com a expressão em todas as circunstâncias, pretendi indicar que ela a conserva nas tristezas, nos prazeres, e também nas paixões e no temor, sem jamais vir a perdê-la.

[...]

[Temperança] Pelo que vi até agora, o certo é que a temperança se assemelha mais a acorde e harmonia do que a [justiça].

Como assim?

Por ser uma espécie de ordem, continuei, e domínio sobre os prazeres, o que em geral se define pela expressão Ser senhor de si mesmo, que se me afigura um tanto estranha, e outras mais que são como traços deixados por essa virtude, não é verdade? [...] A multiplicidade e variedade das paixões, os prazeres e as dores, encontram-se, de regra, nas crianças, nas mulheres e nos escravos, como também na maioria menos prestimosa dos homens denominados livres.

Perfeitamente.

Porém os desejos simples e moderados, sempre dirigidos pela razão e pela opinião justa, é o que encontrarás em muito poucas pessoas, precisamente as de natureza superior e de melhor educação.

É certo, observou.

E agora, não vês o que se passa em nossa cidade, em que as paixões das multidões inferiores são dominadas pelas paixões e pela inteligência de uma minoria de cidadãos prestantes?

Vejo, respondeu.

[...] Como deves ter notado, não fomos adivinhos de todo desprezíveis, quando comparamos a temperança a uma espécie de harmonia.

Como assim?

Porque a temperança não é como a coragem e a sabedoria, que se encontram em partes diferentes da cidade e a deixam valente ou sábia, conforme o caso. Com a temperança não se dá isso; estende-se por toda a cidade e segundo as leis da mais perfeita harmonia, promove acordo entre os cidadãos: os fracos, os fortes e os medianos, seja com relação à inteligência, se o quiseres, ou com a força, seja também quanto ao número e à riqueza ou com qualquer vantagem do mesmo gênero. Daí, estamos plenamente justificados por termos dados o nome de temperança a essa concordância, a saber, a harmonia entre as pessoas superiores e as de natureza inferior, para decidir quem deve governar na cidade e nos indivíduos.

[...]

[Justiça] Então, amigo, continuei, pode muito bem dar-se que nisso, precisamente, consiste a justiça: cuidar cada um do que lhe diz respeito. Sabes de onde tiro essa conclusão?

Não, podes falar, observou.

A meu parecer, lhe disse, a restante virtude da cidade por nós planejada, afora as três mencionadas acima: temperança, coragem e sabedoria, tem de ser a que empresta força para que as outras surjam e, uma vez existentes, pelo simples fato de sua presença, subsistam por quanto tempo ela durar. (Livro III, 427e-433b, trechos selecionados)

A divisão tripartite da alma (parte racional, parte apetitiva, parte concupiscível) e as virtudes a ela associadas (sabedoria, temperança e coragem, respectivamente).

Não será fora de propósito admitir que se trata de dois princípios diferentes: um deles, com o qual o homem raciocina, poderá ser denominado o princípio racional da alma; o outro, com o que ele ama e tem fome ou sede, e é arrastado por todas as paixões, receberá o qualificativo de irracional e concupiscente, amigo dos mais variados prazeres e satisfações.

Não é fora de propósito, respondeu, senão muito certo pensarmos como disseste.

Desse modo, continuei, conseguimos isolar na alma dois princípios distintos. E quanto à cólera e àquilo com que nos encolerizamos, tratar-se-á de um terceiro princípio, ou terá afinidade com algum dos anteriores?

Talvez tenha, observou, com o concupiscente.

Mas, lhe disse, lembro-me de ter ouvido certa vez uma anedota a que dou inteira fé. É o seguinte: Leôncio, filho de Aglaião, de uma feita, ao subir do Pireu, quando passava pelo lado de fora do muro setentrional, notando a presença de cadáveres no lugar das execuções, foi tomado a um tempo do desejo de contemplá-los e da repugnância que o levava a afastar-se dali. Durante alguns instantes lutou consigo mesmo e tapou o rosto, até que, dominado pelo desejo, arregalou os olhos e correndo para os cadáveres, gritou: Eis aí, miseráveis; saciai-vos desse belo espetáculo!

Conheço a anedota, observou.

O que essa história vem provar, lhe disse, é que, por vezes, a cólera entra em conflito com as paixões e que difere dela.

Prova-o, realmente, respondeu.

Por outro lado, lhe falei, não observamos também, com bastante freqüência, sempre que em alguém predominam os desejos sobre a razão, que essa pessoa se injuria e se insurge contra a porção de si mesma que a violenta, e que em tal modalidade de duelo sai a cólera em ajuda da razão? Mas que saia em ajuda das paixões, quando a razão diz que não pode ser feito, é o que nunca, quero crer, poderás dizer que já observaste em ti mesmo ou em quem quer que seja.

Não, de fato, por Zeus, foi sua resposta.

E então, lhe perguntei: quando alguém julga ter cometido alguma injustiça, não é certo que quanto mais nobre for, menos se insurgirá contra os tormentos da fome, do frio ou de qualquer violência que sobre ele exerça com justiça a pessoa injuriada e, como dizia, não quererá sua cólera levantar-se contra ele mesmo?

É verdade, respondeu.

E no caso de considerar-se vítima de injustiça? Não fica fervente por dentro, indignado, e não se alia com o que se lhe afigura justo, ainda que tenha de sofrer fome, frio e tudo o mais do mesmo gênero, esforçando-se por sair vencedor, sem jamais ceder do seu nobre propósito, até conseguir esse desiderato ou vir a morrer no empreendimento, ou, ainda, como se dá com o cão, ao chamá-lo o pastor, até ser acalmado pela razão?

Essa comparação, observou, é muito justa, tanto mais que pusemos os auxiliares em nossa cidade como verdadeiros cães, submissos aos dirigentes, que são os pastores da comunidade.

Verifico, respondi, que apreendeste muito bem o meu pensamento. Mas considera também o seguinte...

Que será?

A cólera se nos revelou agora como sendo o oposto, justamente, do que há pouco havíamos assentado. Antes, admitimos tratar-se de uma modalidade do desejo, enquanto agora estamos longe de confirmar semelhante proposição, para dizer que nos conflitos da alma ela toma as armas em defesa da razão.

É muito certo, disse.

E será ela, porventura, diferente da razão, ou uma simples variedade? Nesse caso não haveria na alma três princípios, porém dois: o racional e o concupiscente. Ou será como na cidade, em que três classes se congregam: a dos comerciantes, a dos auxiliares e a dos conselheiros? Nesse caso, ocorrerá também na alma um terceiro elemento, o colérico, auxiliar da razão, na hipótese, bem entendido, de não ter sido esta corrompida por uma educação viciosa?

Sim, respondeu; forçoso é que haja um terceiro elemento.

É certo, observei; no caso de revelar-se diferente da razão, como se nos patenteou diferente do desejo.

O que não será difícil demonstrar, me disse, pois isso mesmo observamos até nas crianças, que se revelam coléricas desde que nascem; algumas nem chegam a adquirir o uso da razão, e a maioria só muito tarde o consegue.

Por Zeus! exclamei; é muito certo o que dizes. Nos próprios animais é possível confirmar o que acabas de expor, se não quisermos mais uma vez invocar o testemunho de Homero, a que já recorremos há pouco:

Ao coração se dirige, batendo, indignado, no peito.

É fora de dúvida que nessa passagem Homero considera como perfeitamente distintas a porção racional que reflete sobre o bem e o mal, e a colérica, destituída de razão e que é admoestada por aquela.

Com muito trabalho, voltei a falar, conseguimos vencer a nado esse pequeno trecho; mas, afinal concordamos plenamente em que os mesmos princípios que ocorrem na cidade existem na alma dos indivíduos, em número igual tanto numa como na outra.

Isso mesmo.

E não será, então, forçoso que, sendo sábia a cidade por determinada causa, pela mesma razão seja também sábio o indivíduo?

Sem dúvida.

E, sendo corajoso de qualquer maneira o particular, será também, pela mesma causa, corajosa a cidade, havendo entre ambos relação idêntica em tudo o que diz respeito à virtude?

Necessariamente.

Diremos, portanto, Glauco, que um homem é justo do mesmo modo que é justa a cidade.

É o que também necessariamente se conclui.

Porém, ainda não nos esquecemos de que aquela só é justa pelo fato de exercer sua função específica cada uma das três partes de que é constituída.

Não me consta que nos tenhamos esquecido dessa particularidade.

Precisamos, por conseguinte, relembrar que cada um de nós será justo e realizará sua função própria, quando realizarem as suas cada uma das partes de que somos compostos.

Sim, respondeu; é o que precisamos ter sempre em mente.

E não compete o comando ao princípio racional, por ser sábio e cuidar de toda a alma, e à cólera, obedecer a auxiliá-la?

Perfeitamente.

E não poderá acontecer, conforme dissemos antes, que a mistura acertada de Música e Ginástica é que as põe de acordo, esticando a razão e alimentando-a com belos discursos e ensinamentos, ou afrouxando alguém tanto a outra, moderando-a e deixando-a mais branda por meio da harmonia e do ritmo?

Sem dúvida alguma, respondeu.

Logo, quando esses dois princípios forem educados como dissemos, e tiverem, de fato, apreendido o que lhes compete fazer, dirigirão a parte concupiscente que em todos nós ocupa a maior porção da alma e é por índole insaciável de riqueza. Terão de vigiá-la para que não venha a abusar dos denominados prazeres do corpo, tornando-se, com isso, cada vez maior e mais forte, e em lugar de exercer suas funções naturais, procure escravizar e governar do que não lhes estão naturalmente sujeitos, com o que acabará por destruir a vida.

Perfeitamente, respondeu.

E com relação aos inimigos de fora, continuei, não serão essas duas partes os melhores defensores da alma e do corpo, uma delas aconselhando e a outra defendendo, e ambas sempre obedientes ao comandante e pondo corajosamente em prática suas determinações?

Exato.

É por isso que damos o nome de corajoso ao indivíduo cuja parte animosa, tanto nos prazeres como nas dores, o conserva sob o comando da razão a respeito do que deve ou não deve ser temido.

É muito certo, disse.

É sábio graças à parte mínima que nele exerce o mando e determina tudo aquilo, e, além disso, possui o conhecimento preciso do que é útil a cada parte e ao conjunto da comunidade constituída pelos três.

Exato.

E mais: não dizemos que é temperante pelo fato da amizade e harmonia dessas mesmas partes, quando a que comanda e as que obedecem ficam de acordo em reconhecer que cabe à razão comandar, e não se insurgem contra ela?

Temperança não é senão isso mesmo, replicou, tanto na cidade como no indivíduo.

Por conseguinte, ele será também justo pelo modo e razões que já expusemos reiteradamente.

Sem dúvida nenhuma.

E agora, lhe perguntei: porventura a justiça ficará algo embaçada e nos aparecerá diferente do que se nos mostrou a cidade?

Eu, pelo menos, respondeu, acho que não. (Livro IV, 439d-442e)

As mulheres têm a mesma natureza dos homens. A real diferença entre homens e mulheres é que as mulheres são mais fracas que os homens. Pelos variados contextos em que as mulheres são citadas, por “mais fracas” Sócrates refere-se não apenas fisicamente, mas mentalmente.

Sendo assim, meu caro, não há ocupação especial na administração da cidade que toque apenas à mulher, na qualidade de mulher, ou ao homem, enquanto homem; as aptidões naturais são igualmente distribuídas nos dois sexos, podendo exercer por natureza qualquer função tanto a mulher como o homem, com a diferença de que a mulher é mais fraca do que o homem. (Livro V, 455d)

Sócrates ensina a Glauco que a felicidade reside em uma vida estável e moderada, não na felicidade tola e adolescente de prazeres e contentamentos imediatos. A “metade” (vida moderada) é maior do que o “todo” (vida plena de prazeres), segundo Hesíodo.

Parece-me oportuno repetir agora o que então aleguei: o guarda que procura ser feliz, a ponto de deixar de ser guarda, sem contentar-se com a vida modesta e segura que, na nossa maneira de pensar, é também a melhor, e se deixa levar por qualquer noção absurda e pueril de felicidade, para atirar-se à conquista de tudo o que houve no burgo: confessa que Hesíodo era verdadeiramente sábio, quando afirmou ser a metade, de algum modo, maior do que o todo. (Livro V, 466b)

Despojar cadáveres é tão estúpido quanto o cão que persegue a pedra atirada e não o atirador.

E o seguinte, perguntei: o costume de despojar os cadáveres depois da vitória, com exceção das armas, parece-te recomendável? Semelhante prática não servirá de desculpa para os pusilânimes, que se julgam dispensados de enfrentar o adversário, como se estivessem cumprindo seu dever, simplesmente com se agacharem junto dos mortos? Tanto mais que muitos exércitos já se perderam por causa de tal rapacidade.

Sem dúvida.

Não te parece vilania e cupidez espoliar cadáveres, e pensamento mesquinho, mais próprio de mulheres, considerar inimigo o corpo sem vida, quando, de fato, o inimigo já voou para longe, deixando ali apenas o seu equipamento de combate? Encontras alguma diferença entre os que procedem desse jeito e os cães que se enfurecem contra a pedra que os atinge, mas não tocam em quem a atirou?

Não há a menor diferença, respondeu. (Livro V, 469d-e)

Os males da raça humana só cessarão quando os filósofos se tornarem reis ou quando os reis passarem a filosofar seriamente.

A não ser, prossegui, que os filósofos cheguem a reinar nas cidades ou que os denominados reis e potentados se ponham a filosofar seriamente e em profundidade, vindo a unir-se, por conseguinte, o poder político e a Filosofia, e que sejam afastados à força os indivíduos que se dedicam em separado a cada uma dessas atividades, não poderão cessar, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, ainda, segundo penso, os do gênero humano. Antes disso, não se concretizará no mínimo nem verá a luz do sol a constituição cujo traçado acabamos de esboçar. Era isso o que há muito eu receava declarar, por ver como destoa da opinião comum. É difícil compreender que de outra forma não poderá haver felicidade, nem pública nem particular. (Livro V, 264c-d)

As coisas belas são também feias sob certos aspectos. Por isso, aqueles que amam as coisas belas, mas não acreditam no Belo e nunca quererão vê-lo, sustentam apenas opiniões, e não conhecimento real. As coisas belas também participam da feiura. Portanto, sustentar que algo é belo sem remetê-lo ao Belo é mera opinião.

Assentado este ponto, fale então e me responda aquele varão prestantíssimo que não acredita na existência do belo em si e na ideia da beleza que em todas as manifestações do belo se conserva idêntica a si mesma; para esse amigo de espetáculos, o belo será sempre no plural, motivo por que não admite que lhe falem em unidade da beleza ou da justiça ou do que quer que seja. Entre tantas coisas belas, meu caro, lhe diríamos, não haverá nenhuma que não possa ser feia? Como entre as justas uma, que pareça injusta, e entre as piedosas, também alguma impiedosa?

Não, repondeu; sob algum aspecto, forçosamente as coisas belas também podem parecer-nos feias, e assim com tudo o mais a que te referiste.

E muitas quantidades duplas, não parecem tanto duplas como divididas?

Certo.

E as coisas grandes ou pequenas, leves ou pesadas, não podem ser designadas tanto pelos nomes que por vezes lhe aplicamos como pelas expressões contrárias?

Não, disse; todas elas participam a um só tempo de ambas as propriedades.

E cada uma dessas numerosas coisas, será de preferência o que dizemos que seja, ou não será?

Parecem-me muito, respondeu, com essas adivinhas de sentido duplo propostas nos banquetes, ou com o enigma infantil do eunuco que acertou uma pancada no morcego, em que se tem de dizer com que e sobre que ele o atingiu. Essas coisas também apresentam duplo sentido, sendo impossível conceber exatamente qualquer delas nem como ser nem como não-ser, nem como os dois ao mesmo tempo, ou nenhum deles.

Sabes o que terá de fazer? lhe perguntei; poderá haver melhor colocação para ambas do que entre o não-ser e o ser? Aí não poderão ser mais obscuras do que o não-ser nem ultrapassá-lo em inexistência, nem mais claras e mais existentes do que o ser.

É muito certo, disse.

Desse modo, ao que parece, descobrimos que as ideias da maioria dos homens a respeito do belo e de outros conceitos semelhantes giram numa região intermediária entre o não-ser e o verdadeiro ser.

Foi o que, realmente, descobrimos.

Antes, porém, assentáramos que se se nos apresentasse alguma coisa desse tipo, teríamos de declará-la objeto de opinião, não do conhecimento, pois o que oscila entre aqueles extremos só pode ser apreendido pela faculdade intermediária.

Sim, assentamos isso mesmo.

De todas as pessoas, portanto, que veem muitas coisas belas, porém não contemplam a beleza em si mesma nem são capazes de acompanhar os que as concitam a contemplá-la, e muitas coisas justas, porém não a justiça em si, e tudo o mais pela mesma forma, diremos que apenas têm opinião mas que desconhecem de todo o objeto de suas conjecturas.

Necessariamente.

E a respeito do que contemplam as coisas como são em si mesmas e sempre idênticas a si mesmas, não poderemos legitimamente dizer que não conjecturam, mas que conhecem?

Isso, também, forçoso é que assim seja.

Desses, por conseguinte, diremos também que amam e se inclinam para as coisas de que há conhecimento, e dos outros, para as que são objeto de simples conjectura? Ou já não nos lembramos do que dissemos antes: que estes se afeiçoam mais aos belos sons e às cores e a tudo o mais da mesma espécie, e se comprazem na sua contemplação, porém, não admitem a existência da beleza em si mesma?

Lembramo-nos, sem dúvida.

Cometeremos, então, alguma impropriedade, se dissermos que são mais amigos da opinião do que da sabedoria? E zangar-se-ão conosco por os tratarmos desse modo?

Não, se me ouvirem, respondeu; não é direito zangar-se alguém com a verdade.

Nesse caso, teremos de denominar filósofos e amigos da sabedoria os que se comprazem com a essência das coisas, não amigos da opinião.

Perfeitamente. (Livro V, 479a-480a)

Adimanto aprende que quanto mais vigorosa a alma, tanto mais deficiente ela será em meio à ausência de nutrientes básicos. O mal é maior ao bom do que ao não bom.

Sabemos muito bem, continuei, que todas as sementes ou germens, tanto de planta como de animal, que não encontram alimentação apropriada ou a estação e lugar adequados, quanto mais vigorosos mais se ressentirão da falta dessas condições, pois o mal é mais adverso ao que é bom do que ao que não é.

Como não!

No meu modo de pensar, continuei, é certo dizer-se que as naturezas mais nobres ficam pior com uma alimentação inadequada do que as medíocres.

Sem dúvida.

Por isso, Adimanto, voltei a falar, podemos afirmar que com uma educação viciosa as almas mais bem dotadas se tornam particularmente ruins. Acreditas que os grandes crimes e a maldade consumada provenham de uma alma medíocre e não de uma natureza exuberante, porém, corrompida pela educação, ou que uma natureza fraca seja capaz de produzir em qualquer tempo algo grandioso, para o bem ou para o mal?

Não, replicou; é como disseste.

Logo, se for convenientemente educado a natureza que atribuímos ao filósofo, segundo penso, com o crescimento virá a adquirir todas as virtudes; porém, no caso de ser semeada e plantada em terreno impróprio, será fatal, do mesmo modo, que sua educação redunde no contrário disso, a menos que alguma divindade lhe saia em auxílio. Ou pensarás também como o vulgo, que muitos moços são corrompidos pelos sofistas e que esses corruptores particulares sejam figuras dignas de menção? Os que falam desse modo não serão, porventura, os maiores sofistas? Não são eles capazes de educar com perfeição e dar a forma que entenderem a moços e velhos, homens e mulheres?

E quando fazem isso? perguntou.

Quando muitos se concentram, respondi, em multidões compactas nas assembleias, nos tribunais ou em qualquer outro ajuntamento público, e com grande algazarra ora criticam, ora elogiam o que foi dito ou realizado, em ambos os casos com vaias ou aplausos além da conta, redobrando os ecos das rochas e dos recintos das assembleias a barulheira dos elogios e das críticas. Em semelhantes circunstâncias, achas mesmo, como se diz, que o coração dos moços aguente até o fim? E que educação particular fora capaz de resistir a semelhante impacto, sem se deixar levar pela corrente dos elogios e censuras para onde quer que ela o arraste? Não acabarão os moços por achar belo ou feio tudo o que os outros acharem, empenhando-se em pós do que todos se empenham, para terminarem como todos?

Sem dúvida, Sócrates, respondeu; forçoso é que assim seja. (Livro VI, 491d-492c)

Ninguém desenvolve virtudes baseando-se na educação das massas. Os sofistas apenas “ensinam” as próprias convicções das massas.

Nunca houve, nem há, nem poderá haver modificação do caráter com relação à virtude em que é educado nos métodos dessa gente. Isso, na escala humana, companheiro; porque tudo o que se refere aos deuses, como diz o provérbio, está fora de cogitações, pois fica sabendo que se alguma coisa se salva e vem a tornar-se como deve ser numa organização pública como a nossa podes afirmar sem medo que foi tudo por obra e graça do favor divino.

A mim, também, disse, não me parece que seja de outra forma.

E a respeito do seguinte, continuei, também hás de pensar como eu.

De que se trata?

Que todos esses mercenários particulares que o povo denomina sofistas e considera seus concorrentes, outra coisa não ensinam senão a doutrina defendida pela maioria em suas assembleias e a que dão o nome de sabedoria. Seria o caso do indivíduo que tivesse de alimentar algum animal grande e forte, e se pusesse a estudar suas manifestações de cólera, seus apetites, como ficar perto dele, de que jeito apalpá-lo, como e por que se mostra dócil ou rebelde, conforme as circunstâncias, o não ter um rosnar certo, e que vozes revelam a propriedade de irritá-lo ou de acalmá-lo, e que, depois de aprender tudo isso no trato diuturno e com observação prolongada, desse a tal conhecimento o nome de sabedoria e fizesse dele um sistema de arte, para poder ensiná-la, porém, ignorasse de todo, nos seus pronunciamentos acerca desses apetites o que seja belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto, por empregar todas essas expressões de acordo apenas com noções peculiares àquele monstro: bom é tudo o que lhe proporciona prazer; mau, o que o irrita, sem conseguir, porém, justificá-las de nenhum jeito, se não for considerado justas e honestas as necessidades da natureza. Mas quanto à grande diferença entre a necessidade e o bem, isso nunca ele viu nem nunca será capaz de mostrar a ninguém. Por Zeus, não achas que um tipo desse estofo daria um preceptor assaz estranho?

Sem dúvida, respondeu.

Ora bem; e ainda encontras diferença entre esses indivíduos e o que considera sabedoria o conhecimento das paixões e dos prazeres da multidão heteróclita das assembléias, seja no que se refere à Pintura e à Música, seja com relação à Política? Quando uma pessoa se mistura com essa gente e lhe mostra um poema ou uma obra de arte, ou comenta dispositivo político, submetendo-os ao juízo das multidões além do que fora razoável, a necessidade denominada de Diomedes o obrigará a fazer tudo o que for do agrado dos outros. Mas que isto ou aquilo seja realmente belo ou bom; já ouviste de qualquer deles argumento que não seja ridículo?

Nem nunca hei de ouvir, foi a sua resposta.

Depois dessas considerações, lembra-te também do seguinte: haverá algum meio de admitir a multidão, ou de reconhecer, que o que existe é o belo em si, não a infinitude de coisas belas, cada coisa em si mesma, não esse nunca acabar de objetos particulares?

De jeito nenhum, respondeu.

Sendo assim, as multidões não vão de par com a Filosofia.

Não é possível.

Como será fatal sofrerem suas críticas os que se puserem a filosofar.

Necessariamente.

E também a dos particulares que adulam as multidões para angariar-lhes a simpatia.

Claro. (Livro VI, 492e-494a)

Glauco aprende de Sócrates a famosa divisão das coisas em inteligíveis (noesis e pensamento) e visíveis (coisas e imagens) e o mito da caverna que a ilustra.

[O] mundo visível está nas mesmas relações para a vista e as coisas vistas como o bem no mundo inteligível para o entendimento e as coisas percebidas pelo entendimento.

Como assim? perguntou; explica-me isso com mais particularidades.

Como sabes muito bem, continuei, os olhos, quando não os dirigimos para os objetos cujas cores sejam iluminadas pela luz do dia mas pelo clarão da lua, vêem confusamente e se tornam quase cegos, como se carecessem de pureza de visão.

É exatamente como dizes, respondeu.

Mas estou certo de que, quando se voltam para objetos iluminados pelo sol, vêem distintamente, parecendo que neles mesmos reside a faculdade da visão.

Sem dúvida.

Considera agora a alma sob igual perspectiva; quando se fixa nalgum objeto iluminado pela verdade e pelo ser, imediatamente o percebe e o reconhece, e se revela inteligente; quando, porém, se volta para o que é mesclado de trevas, para o que se forma e desaparece, passa apenas a conjecturar e fica turva, mudando a toda hora de opinião, como se perdesse por completo a inteligência.

Isso mesmo.

Ora, o que comunica a verdade aos objetos conhecidos e ao sujeito cognoscente a faculdade de conhecer, podes afirmar que é a idéia do bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; mas, por mais belos que sejam ambos, o conhecimento e a verdade, se admitires que muito mais belo é esse outro elemento – a idéia do bem – terás pensado com acerto. Conhecimento e verdade: assim como há pouco nos foi lícito admitir que a luz e a visão têm analogia com o sol, porém que seria erro identificá-los com ele, agora podemos considerar o conhecimento e a verdade como semelhantes ao bem, sem que nenhum, no entanto, possa ser com ele identificado, pois a natureza do bem deve ser tida em muito maior apreço.

Que maravilha, disse, terá de ser essa beleza que nos anuncias, se produz o conhecimento e a verdade e é ainda mais bela do que ambos. Decerto não te referes ao prazer.

Quieto aí! objetei-lhe; porém considera mais de espaço a sua imagem.

De que jeito?

No meu modo de ver, o sol, como dirás, não somente empresta às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, como também a geração, o crescimento e a alimentação, muito embora ele mesmo não seja geração.

Como poderia sê-lo?

O mesmo dirás dos objetos conhecidos, que não recebem do bem apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência, conquanto o bem não seja essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e dignidade.

Rindo às gargalhadas, exclamou Glauco: Ó Apolo! quanta superioridade!

Tu também tens culpa nisso, lhe falei, por me obrigares a dizer o que penso.

Não cortes aí o assunto, respondeu; pelo menos até completares a comparação com o sol, se de fato ficou algo para tratar.

Sem dúvida, lhe disse; deixei de mencionar um mundo de coisas.

Pois não omitas nenhuma, por mais insignificante que pareça.

Receio que tenha de omitir muitas, lhe falei. Contudo, dentro da presente possibilidade, esforçar-me-ei por não cortar de ligeiro coisa nenhuma.

Sim, faze isso mesmo, respondeu.

Então, comecei, observa que se trata de dois poderes, como dissemos; um reina no gênero e na sede do inteligível; o outro, no mundo visível. Não falo em céu, para não pensares que estou jogando com as palavras, como fazem os sofistas. Mas, decerto, apanhas bem esses dois conceitos: o visível e o inteligível?

Sem dúvida.

Sendo assim, imagina uma linha cortada em duas partes desiguais, a qual dividirás, por tua vez, na mesma proporção: a do gênero visível e a do inteligível. Assim, de acordo com o grau de clareza ou obscuridade de cada uma, acharás que a primeira seção do domínio do visível consiste em imagens. Dou o nome de imagens, em primeiro lugar, às sombras; depois, aos simulacros formados na água e na superfície dos corpos opacos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais do mesmo gênero, se é que me compreendes.

Compreendo, sem dúvida.

Imagina agora a outra seção, da qual a anterior é simples imagem: os animais à volta de nós, o mundo das plantas e o conjunto de objetos fabricados pelo homem.

Perfeitamente, respondeu.

E não quererás admitir também, continuei, que o gênero visível se subdivide, ainda, de acordo com o critério da verdade e da inverdade e que o objeto da opinião está para o conhecimento na mesma relação em que está a imagem para o original?

Aceito a distinção.

Considera agora como devemos dividir a seção do inteligível.

Como será?

É o seguinte: numa das subdivisões, a alma, empregando como imagem os objetos imitados da seção anterior, vê-se obrigada a instituir suas pesquisas a partir de hipóteses e sem prosseguir na direção do começo, mas na da conclusão; na outra porção, a alma também parte de hipóteses, para um princípio absoluto, e sem fazer uso de imagens, como no caso anterior, avança apenas com o auxílio de seus próprios conceitos.

Não apanho muito bem, me falou, o sentido do que disseste.

Então, insistamos nesse ponto, respondi. Compreenderás melhor depois de uma pequena explicação. Estou certo de que sabes como as pessoas que se ocupam com a Geometria, a Aritmética e outras disciplinas do mesmo gênero admitem o par e o ímpar, três espécies de ângulo e tudo quanto se lhe assemelha no terreno especial de seus estudos; e, uma vez apresentadas essas hipóteses como conhecidas de todos, não se sentem na obrigação de justificá-las nem perante eles mesmos, nem perante os outros, por considerarem-nas evidentes para todo o mundo. Partindo desse ponto, prosseguem em sua exposição até chegarem, com a máxima coerência, à conclusão que tinham em mira desde o começo.

Sim, respondeu; conheço tudo isso.

Como também sabes que eles se servem das figuras visíveis e discorrem a seu respeito, muito embora não pensem nelas, mas nas outras, as formas primitivas com que elas se parecem, e não raciocinam acerca das figuras traçadas, mas do quadrado em si, da diagonal em si mesma, valendo igual procedimento para as demais figuras. Todas as figuras que eles modelam ou desenham produzem sombras e imagens refletidas na água, e é como imagens que eles as empregam, porém, sempre esforçando-se por alcançar a visão do que só pode ser percebido pelo pensamento.

Tens razão, falou.

Era isso o que eu entendia por gênero inteligível, em que a alma, em suas investigações, sem subir nunca ao princípio, por não lhe ser possível sair do domínio das hipóteses, vale-se de imagens tiradas dos objetos do mundo inferior, as quais, em comparação com estes, são geralmente consideradas mais claras e de maior valia.

Compreendo, disse; refere-te à Geometria e às outras artes irmãs.

Então, compreende também que pela outra divisão do inteligível entendo que somente pode ser apreendido por meio da razão e de sua capacidade dialética, com o emprego de hipóteses, não como princípios, porém hipóteses de verdade, isto é, ponto de apoio e trampolim para alcançar o fundamento primitivo das coisas, que transcende a todas as hipóteses. Alcançado esse princípio juntamente com tudo o que se lhe relaciona, desce à última conclusão, sem nunca utilizar-se dos dados sensíveis, porém, passando sempre de uma idéia para outra, até terminar numa idéia.

Compreendo, disse, porém não o suficiente; é assunto assaz difícil. De qualquer forma, vejo que pretendes demonstrar que o que é visto por meio do conhecimento da Dialética, no mundo do ser e do inteligível, é mais claro do que o alcançado com o auxílio das denominadas artes e ciências, que têm meras hipóteses por princípio, muito embora este também seja forçosamente contemplado pelo pensamento, não pelos sentidos. Mas, pelo fato de partirem de hipóteses, os que estudam os objetos da ciência sem nunca subirem a um princípio, parece-te que não chegam a adquirir deles um conhecimento racional, conquanto se nos tornem inteligível por meio de algum princípio geral. Tenho a impressão de que dás o nome dos geômetras e de outros investigadores do mesmo gênero, por ser o entendimento algo intermediário entre a opinião e a razão.

Apanhaste muito bem meu pensamento, lhe falei. Agora, para essas quatro seções admite outras tantas operações do espírito: razão, para a mais elevada; entendimento, para a que se lhe segue; à terceira atribuirás a fé, e à última a conjectura, e as distribui segundo o critério de que quanto mais participar cada uma delas da verdade, tanto maior evidência alcançará.

Compreendo, disse, e não somente aprovo, como adoto a ordem que aconselhas.

Depois disso, continuei, compara a nossa natureza, conforme seja ou não educada, com a seguinte situação: imagina homens em uma morada subterrânea em forma de caverna, provida de uma única entrada com vista para a luz em toda a sua largura. Encontram-se nesse lugar, desde pequenos, pernas e pescoço amarrados com cadeias, de forma que são forçados a ali permanecer e a olhar apenas para a frente, impossibilitados, como se acham, pelas cadeias, de virar a cabeça. A luz de um fogo aceso a grande distância brilha no alto e por trás deles; entre os prisioneiros e o foco de luz há um caminho que passa por cima, ao longo do qual imagina agora um murozinho, à maneira do tabique que os pelotiqueiros levantam entre eles e o público e por cima do qual executam suas habilidades.

Figuro tudo isso, respondeu.

Observa, então, ao comprido desse murozinho homens a carregar toda a sorte de utensílios que ultrapassam a altura do muro, e também estátuas e figuras de animais, de pedra ou de madeira, bem como objetos da mais variada espécie. Como é natural, desses carregadores uns conversam e outros se mantêm calados.

Imagens muito estranhas, disse, como também os prisioneiros de que falas.

Parecem-se conosco, respondi. Para começar, achas mesmo que, em semelhante situação, pooderiam ver deles próprios e dos vizinhos alguma coisa além da sombra projetada pelo fogo, na parede da caverna que lhes fica em frente?

De que jeito, perguntou, se a vida inteira não conseguem mexer a cabeça?

E com relação aos objetos transportados, não acontecerá a mesma coisa?

Como não?

Logo, se fossem capazes de conversar, não acreditas que pensariam estar designando pelo nome certo tudo o que vêem?

Necessariamente.

E se no fundo da prisão se fizesse também ouvir um eco? Sempre que falasse alguma das estátuas, não achas que eles só poderiam atribuir a voz às sombras em desfile?

Sim, por Zeus! exclamou.

De qualquer maneira, continuei, para semelhante gente a verdade consistiria apenas na sombra dos objetos fabricados.

É mais do que certo, respondeu.

Considera agora, lhe disse, quais seriam as conseqüências da libertação desses homens, depois de curados de suas cadeias e imaginações, se as coisas se passassem do seguinte modo: vindo a ser um deles libertado e obrigado imediatamente a levantar-se, a virar o pescoço, andar e olhar na direção da luz, não apenas tudo isso lhe causaria dor, como também o deslumbramento o impediria de ver os objetos cujas sombras até então ele enxergava. Como achas que responderia a quem lhe afirmasse que tudo o que ele vira até ali não passava de brinquedo e que somente, agora, por estar mais próximo da realidade e ter o rosto voltado para o que é mais real é que ele via com maior exatidão; e também se o interlocutor lhe mostrasse os objetos, à medida que fossem desfilando, e o obrigasse, à custa de perguntas, a designá-los pelos nomes? Não te parece que ficaria atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele vira até então do que quanto naquele instante lhe mostravam?

Muito mais verdadeiro, respondeu.

E no caso de o forçarem a olhar para a luz, não sentiria dor nos olhos e não correria para junto das coisas que lhe era possível contemplar, certo de serem todas elas mais claras do que as que lhe então apresentavam?

Isso mesmo, disse.

E agora, perguntei; se o arrastassem À força pela rampa rude e empinada e não o largassem enquanto não houvessem alcançado a luz do sol, não te parece que sofreria bastante e se revoltaria por ver-se tratado daquele modo? E depois de estar no claro, não ficaria com a vista ofuscada, sem enxergar nada do que lhe fosse, então, indicado como verdadeiro?

De fato, respondeu; pelo menos no começo.

Precisaria, creio, habituar-se para poder contemplar o mundo superior. De início, perceberia mais facilmente as sombras; ao depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidos na água; por último, os objetos e, no rasto deles, o que se encontra no céu e o próprio céu, porém sempre enxergando com mais facilidade durante a noite, à luz da lua e das estrelas, do que de dia ao sol com todo o seu fulgor.

Não há dúvida.

Finalmente, segundo penso, também o sol, não na água ou sua imagem refletida em qualquer parte, mas no lugar certo, que ele poderia ver e contemplar tal como é mesmo.

Necessariamente, disse.

De raciocínio em raciocínio, chegaria à conclusão de que o sol é que produz as estações e tudo dirige no espaço visível, e que, de algum modo, é a causa do que ele e seus companheiros estavam habituados a distinguir.

É evidente, respondeu, que depois de tudo, ele concluiria dessa maneira.

E então? Quando se lembrasse de sua primitiva morada, da sabedoria lá reinante e dos companheiros de prisão, não te parece que se felicitaria pela mudança e lastimaria a sorte deles todos?

Sem dúvida.

E as honrarias e os elogios atribuídos entre eles mesmos, os prêmios para quem percebesse com mais nitidez as imagens em desfile e se lembrasse com exatidão do que costumava aparecer em primeiro lugar, ou por último, ou concomitantemente, e que, por isso, ficasse em condições de prever o que iria dar-se, acreditas que semelhante indivíduo tivesse saudades do outro tempo ou invejasse os que entre eles fossem alvo de distinções ou fizessem parte do governo? Ou com ele se passaria aquilo de Homero:

Pois preferia viver empregado em trabalhos do campo, sob um senhor sem recursos,

e vir a sofrer seja o que for, a voltar para semelhantes ilusões e viver a antiga vida?

É também o que penso, respondeu; agüentaria tudo, para não voltar a viver daquele jeito.

Considera também o seguinte, lhe falei: se esse indivíduo baixasse de novo para ir sentar-se em seu antigo lugar, não ficaria com os olhos obnubilados pelas trevas, por vir da luz do sol assim tão de repente?

Sem dúvida, respondeu.

E se tivesse de competir outra vez a respeito das sombras com aqueles eternos prisioneiros, quando ainda se ressentisse da fraqueza da vista, por não se ter habituado com o escuro – o que não exigiria pouco tempo – não se tornaria objeto de galhofa dos outros e não diriam estes que o passeio lá por cima lhe estragara a vista e que não valia a pena sequer tentar aquela subida? E se porventura ele procurasse libertá-los e conduzi-los para cima, caso fosse possível aos outros fazer uso das mãos e matá-lo, não lhe tirariam a vida?

Com toda a certeza, respondeu.

Agora, meu caro Glauco, precisarás aplicar essa alegoria a tudo o que expusemos antes, para comparar o mundo percebido pela visão com o domicílio carcerário, e a luz do fogo que nele esplende com a energia do sol. Quanto à subida para o mundo superior e a contemplação do que lá existe, se vires nisso a ascensão da alma para a região inteligível, não te terás desviado de minhas esperanças, já que tanto ambiciona conhecê-las. Só Deus sabe se está de acordo com a verdade. O que eu vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do cognoscível está a idéia do bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos de pronto a conclusão de que é a causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz, no mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisará ser contemplada por quem quiser agira com sabedoria, tanto na vida pública como na particular.

Concordo plenamente com tua maneira de pensar, me disse, até onde consigo acompanhar-te. (Livro VI 508c – Livro VII 517c)

O Cálculo e a Geometria são fundamentais para treinar a habilitar a alma a pensar abstratamente, sem associar o raciocínio a coisas ou situações particulares. Há um “instrumento na alma” (noûs) que vale mais de dez mil olhos; a Geometria e Cálculo o refinam e o auxiliam a enxergar a verdade.

Só agora me ocorre, continuei, depois de tratar da ciência do Cálculo, quanto ela é bela e, sobretudo, útil, a todas as luzes, para nossos desígnios, quando a estudamos só por amor do conhecimento, não como comerciantes.

Como assim? perguntou.

É que, como dissemos há pouco, ela confere à alma esse impulso irresistível para a região superior e a obriga a operar mentalmente com o conceito do número, sem jamais consentir que se imiscuam nessa atividade números que representem algo visível ou palpável. Bem sabes como se comportam os entendidos na matéria, sempre que alguém se propõe a dividir em pensamento a unidade: riem-se dele, sem admitirem a possibilidade de semelhante operação. Se a trocares em miúdo, eles a multiplicam em outras tantas unidades, de medo que a unidade deixe de ser uma para ser considerada como a reunião de várias partes.

É muito certo o que dizes.

E que te parece, Glauco, se alguém lhes perguntasse: a que números vos referis, varões admiráveis, para terem unidades, tal como as concebeis, todas elas iguais, sem a mínima diferença e inteiramente privadas de partes? Como achas que te responderiam?

A meu parecer, diriam que se referem a números que só podem ser apreendidos pelo pensamento e impossíveis de serem manipulados de outra forma.

Já vês, amigo, por conseguinte, como de fato, essa disciplina nos é necessária, por obrigar a alma, como parece, a recorrer à inteligência para alcançar a verdade em si.

É, realmente, o que ela faz.

E então? Decerto já observaste que os calculadores natos são, por assim dizer, dotados de todas as formas de conhecimento, e que as pessoas de engenho tardo, quando instruídas e exercitadas no Cálculo, se outra vantagem não colhem, pelo menos lucram tornarem-se mais ágeis do que antes.

Isso mesmo, falou.

Como também não te será fácil, segundo penso, encontrar muitas disciplinas que exijam igual esforço dos que se aplicam no seu estudo e a praticam.

Sem dúvida.

Por todas essas razões, não devemos dispensá-la, porém transmiti-la aos mais bem dotados pela natureza.

De inteiro acordo, respondeu.

Já determinamos, continuei, qual seja a primeira disciplina para o nosso estudo. E a segunda, que se lhe relaciona, poderá ser-nos de alguma utilidade?

Qual é? perguntou; referes-te à Geometria?

Essa mesma, respondi.

No que entende com a arte da guerra, continuou, é evidente sua grande vantagem. Para assentar o acampamento, escalar fortalezas, estender ou apertar as linhas de combate, e em todas as outras operações militares, seja isso nos próprios campos de batalha, seja durante as marchas, é grande a diferença entre o conhecedor da Geometria e quem a desconhece.

Sem dúvida, observei; mas para tudo isso bastam rudimentos de Cálculo e de Geometria? Não; o que precisamos decidir é se a parte mais importante e avançada da Geometria serve ao nosso objetivo de facilitar a visão da idéia do bem. É para esse fim, como dissemos, que tende tudo o que obriga a alma a voltar-se para a região em que demora o mais feliz dos seres, que de todo o jeito ela terá de contemplar.

É muito certo, disse.

Logo, se a Geometria nos obriga a contemplar a essência, ela nos convém; se fizer isso com relação ao devir, não convirá.

É também o que afirmamos.

O que não poderá contestar-nos, continuei, quem entender, um pouquinho que seja, de Geometria, é que essa ciência é muito diferente do que dizem dela os que a praticam.

Como assim? perguntou.

Aqueles tais só empregam em suas falas expressões ridículas e forçadas, pois é sempre como práticos ou com vistas à prática que constroem seus discursos e falam em esquadrar, prolongar, acrescentar e quejandas expressões. No entanto, essa ciência inteirinha só é cultivada por amor do conhecimento.

Perfeitamente, respondeu.

E não teremos também de admitir o seguinte?

Quê?

Que se trata do conhecimento do ser eterno, não do que ora surge, ora desaparece.

Sobre isso o acordo é fácil, porque a Geometria é, realmente, o conhecimento do que é eterno.

Sendo assim, caro amigo, ela tem a propriedade de arrastar a alma para a verdade e de formar de tal maneira o espírito filosófico, que levamos para cima o que indevidamente conservamos cá por baixo.

Isso mesmo.

Então, continuei, teremos de insistir por maneira muito especial com os moradores de tua bela cidade, para que de nenhum jeito descurem da Geometria. Até mesmo as vantagens indiretas de seu estudo não são para desprezar.

Quais são elas? perguntou.

As que tu próprio indicaste, com referência à guerra. Sim, no que respeita às outras disciplinas, para que sejam bem compreendidas sabemos perfeitamente que há grande diferença entre quem conhece Geometria e o ignorante da matéria.

Sim, por Zeus, me disse; é enorme a diferença.

Será essa, pois, a segunda disciplina a aconselhar aos nossos jovens.

Aconselhamo-la, respondeu.

E agora? Poremos a Astronomia em terceiro lugar? Ou como te aparece?

Sem dúvida, respondeu; o conhecimento intuitivo das estações, dos anos e dos meses não é de vantagem apenas para o lavrador e o navegante, senão de igual necessidade para o general.

És engraçado, observei, com esse medo de que o vulgo te acuse de aconselhar estudos pouco práticos. No entanto, é um fato nada despiciendo, conquanto de difícil demonstração, que por meio desses conhecimentos se purifica e reanima em cada um de nós certo órgão da alma, estragado e cego por outras ocupações, apesar de ser muito mais de desejar a sua conservação do que a de mil olhos, pois é exclusivamente por seu intermédio que a verdade é percebida. Os que pensarem como tu dirão maravilhas de tua conclusão; mas os que nada entenderem da matéria pensarão que tuas palavras carecem inteiramente de sentido, visto serem incapazes de tirar disso tudo alguma conclusão prática. (Livro VII, 525d-527e)

A dialética, aliada às artes da Geometria, Cálculo, Astronomia e Música, são responsáveis pelo giro que o corpo do homem da caverna dá ainda dentro da caverna. É mais que opinião, mas menos que conhecimento. É entendimento.

[O] método dialético é o único que rejeita as hipóteses para atingir diretamente o princípio e consolidar suas conclusões, e que puxa brandamente o olho da alma do lamaçal bárbaro em que vivia atolado, a fim de dirigi-lo para cima, empregando para essa conversão as mencionadas artes, como auxiliares e cooperadoras. Por uma questão de hábito, demos-lhe mais de uma vez o nome de ciência; porém, a rigor seria preciso designá-la por um nome que sugerisse algo mais claro do que a opinião e mais obscuro do que ciência. Em certa altura de nossa exposição anterior, admitimos a expressão entendimento. Porém, não vamos brigar por causa de palavras, quando ainda temos tanta coisa importante para considerar. (Livro VII, 533d)

Só quem tem contato com o Bem tem verdadeiro conhecimento. Os demais, mesmo que tenham contato com imagens do Bem, acabarão no Hades.

O mesmo passa com relação ao bem. Quem não for capaz de determinar conceitualmente a idéia do bem e separá-la das demais idéias, e não souber abrir caminho, como num prélio renhidíssimo, pelo meio de um mundo de objeções, decidido a assentar suas palavras, não na opinião, porém na própria essência das coisas, e não resolver todas as dificuldades com explicações irrefutáveis, de semelhante indivíduo não dirás que conhece o bem em si ou qualquer outro bem, pois até mesmo no caso de chegar a alcançar uma espécie de simulacro do bem, só o fará por meio da opinião, não do conhecimento, não passando sua vida de um sonho e modorra contínuos, sem que jamais venha a despertar de tudo aqui na terra; antes disso baixará para o Hades e dormirá no sono eterno. (Livro VII, 534c)

Riqueza e virtude vão em direções opostas.

[Os ricos] empenham-se cada vez mais em acumular riquezas, e quanto maior valor lhe emprestam, menos concedem à virtude. Não é certo que a riqueza e a virtude se comportam reciprocamente como se estivessem colocadas nos dois pratos da balança, movimentando-se em sentido contrário?

Exatamente, respondeu.

Quando a riqueza e os cidadãos opulentos são tidos em alta conta, a virtude e os homens de bem decaem na consideração geral.

É evidente. (Livro VIII, 550e-551a)

Onde há mendigos há ladrões, trombadinhas, violadores de templos etc.

E não teremos, também, o direito de afirmar que assim como no favo nasce o zangão como doença da colméia: do mesmo modo esse indivíduo surge como zangão da casa, doença da cidade?

Perfeitamente, Sócrates, me falou.

E não é verdade, Adimanto, que a divindade criou sem aguilhão os zângãos alados; mas dos zângãos de dois pés, se alguns não têm ferrão, outros o possuem muito agudo? E também que os desprovidos de ferrão, com a idade se tornam mendigos, ao passo que é dos armados que sai toda corja de malfeitores?

É muito certo, disse.

Torna-se manifesto, por conseguinte, continuei, que a cidade com mendigos é o lugar em que se ocultam ladrões, batedores de carteira, violadores de templos e criminosos da mais variada espécie.

É claro, observou. (Livro VIII, 552c-d)

A distinção entre prazer necessário e prazer desnecessário/prejudicial.

Tomemos agora um exemplo de cada um, a fim de formarmos uma idéia geral.

Sim, façamos isso mesmo.

O desejo de comer, apenas no que entende com a saúde e a robustez do corpo, comer pão e carne, não deverá ser considerado necessário?

Acho que sim.

Por duas razões é necessário o desejo de comer pão: por ser útil e porque a vida pode parar se ele não for satisfeito.

Exato.

O de carne também é necessário, até onde contribui para o bem-estar do corpo.

Perfeitamente.

E os desejos que vão além desses limites e se estendem a guloseimas, de que a maioria dos homens pode livrar-se pela repressão iniciada cedo e pela educação, tão prejudiciais ao corpo como à alma no que respeita à sabedoria e à temperança, não teremos o direito de denominar desnecessários?

É muito certo.

E também não poderemos chamar estes de pródigos, e os outros de lucrativos, por serem úteis para o trabalho?

Como não?

Da mesma forma nos expressaremos com relação aos desejos do amor e a todos os outros.

Certo. (Livro VIII, 559a-c)

O homem imbuído do espírito democrático é aquele que aceita os prazeres necessários e desnecessários igualmente.

Assim, o [jovem democrático] passa a viver numa espécie de equilíbrio entre os prazeres, entregando-se às solicitações do prazer que a sorte lhe enviar primeiro, até saturar-se dele, e depois de outro, e de mais outros, sem maltratar nenhum e cuidando de todos com igual solicitude.

Exato.

Não recebe nem permite entrar na fortaleza, continuei, nenhuma palavra de bom senso; se alguém lhe diz que alguns prazeres provêm de desejos bons e nobres, e outros de desejos maus, e que é preciso cultivar e honrar os primeiros e reprimir e dominar os outros, para tais observações só tem uma resposta: todos os prazeres são iguais e precisam ser tratados da mesma amaneira.

Dada a sua disposição, me disse, é como terá de proceder.

Desse modo, prossegui, passa ele os dias a satisfazer os apetites do momento, ora a embriagar-se ao som de flautas, ora submetendo-se a dieta hídrica, para emagrecer; por vezes, entrega-se à prática de exercícios físicos, quando a preguiça não o prostra em completa inação; tempos há em que se ocupa com Filosofia ou com Política, ou então, levantando-se num repente, faz e diz o que lhe vem à cabeça. Quando fica com inveja de guerreiros, vira-se para esse lado; se se trata de comerciantes, para o destes. Numa palavra: nem a ordem nem a necessidade lhe definem a conduta; chama de livre semelhante vida, agradável, perfeitíssima, comportando-se dessa maneira até o fim.

Descreveste admiravelmente bem, me disse, a vida de um amigo da igualdade.

Pelo menos no meu modo de ver, prossegui, é um compêndio dos mais variados caracteres; belo e variegado como a cidade democrática. Por isso mesmo, homens e mulheres invejam semelhante vida, por conter tantos modelos de constituições e de costumes.

Isso mesmo, observou.

E então? Ponhamos esse indivíduo ao lado da democracia, pois com todo o direito merece ser chamado democrático.

Sim, façamos isso mesmo, disse. (Livro VIII, 561b-562a)

Os principais traços da democracia e suas incríveis semelhanças com a modernidade. E de como a extrema liberdade conduz à extrema tirania.

E o que destruiu a democracia, não foi a avidez do bem que ela a si mesma propusera?

Qual foi o bem a que ela se propôs?

A liberdade, lhe disse. A esse respeito, ouvirás dizer nas cidades democráticas que é o mais belo de todos, o único que em qualquer cidade dignifica a vida do homem livre.

É certo, me falou; é frase que se ouve a cada momento.

E não será justamente, lhe disse, é o que eu queria perguntar, o desejo insaciável desse bem, a par da indiferença por tudo o mais, a causa da alteração de semelhante forma de governo e do convite à tirania?

De que jeito? perguntou.

O que eu acho é que quando uma cidade democrática sedenta de liberdade tem a má sorte de ser servida por escanções ordinários, embriaga-se além da conta com o vinho puro da liberdade; e sempre que os governantes não se mostram complacentes e não a deixam beber à vontade, ela os persegue, acusando-os de criminosos e oligarcas.

É, realmente, o que todas fazem, observou.

Os cidadãos, continuei, que se mostram dóceis aos dirigentes são maltratados e chamados de escravos mansos e cidadãos indignos; porém, os dirigentes que se deixam dirigir, e os governados que passam, de fato, a governar, uns e outros igualados tanto na vida pública como na particular, esses é que são elogiados e tidos em alta consideração. Numa cidade desse tipo, não é inevitável estender-se por tudo a liberdade?

Como não?

Por fim, amigo, continuei, a anarquia penetra nas casas, chegando a alcançar até mesmo os brutos.

Como devemos interpretar essa afirmativa? perguntou.

O que eu quero dizer, lhe falei, é que o pai se acostuma a parecer-se com o filho e começa a temer-se dele, e o filho toma o lugar do pai, sem o menor respeito ou receio de seus progenitores, para provar que é livre; o meteco se iguala ao cidadão, e vice-versa, o mesmo acontecendo com os estrangeiros.

É realmente o que acontece, me falou.

Sim, é o que acontece, lhe disse, e mais estas coisinhas do mesmo tipo: em semelhante situação, o professor tem medo dos alunos e passa a adulá-los; os alunos desprezam o professor, o mesmo se dando com relação aos preceptores. De modo geral, os moços procuram igualar-se aos velhos e competir com eles por atos ou por palavras, como os velhos, por sua vez, se esforçando por imitá-los nos gracejos e ditos espirituosos, a fim de não passarem por casmurros ou autoritários.

Perfeito, observou.

Porém, amigo, continuei, o ponto mais alto do abuso de liberdade a que pode atingir o povo em cidade com essa forma de governo, é quando tanto os escravos comprados, como as escravas, não são menos livres do que seus compradores. Ia esquecendo de dizer até onde vão a igualdade e a liberdade nas relações entre o homem e a mulher, e vice-versa.

Por que não dizer com Ésquilo: ora falemos o que nos vier à boca?

Perfeitamente, respondi; eu também penso assim. Os próprios animais domesticados pelo homem, quem não viu não pode avaliar quanto são mais livres aqui do que em qualquer outra parte. De fato, como diz o provérbio, as cadelas se parecem com suas donas; os cavalos e os asnos habituaram-se a andar com liberdade e aprumo, atropelando os transeuntes que não se arredam do caminho, e tudo o mais pelo mesmo jeito, transbordante de liberdade.

Contas-me o meu próprio sonho, me falou; isso mesmo é o que eu observo sempre que vou ao campo.

A conseqüência de tais abusos, prossegui, quando os consideramos em conjunto, é ficarem os cidadãos com a alma muito sensível, e à menor tentativa de constrangimento, zangarem-se e revoltarem-se sem motivos. Por fim, como sabes muito bem, chegam ao ponto de não se incomodar com as leis, quer sejam escritas, quer não sejam; o que importa é não receberem ordens de ninguém.

Sei muito bem disso, respondeu.

Esta, amigo, continuei, no meu modo de pensar é a bela e sedutora raiz de onde brota a tirania.

Muito sedutora, não há dúvida, respondeu. E depois desse primeiro passo?

A mesma doença, lhe disse, que atacou a oligarquia e lhe causou a ruína, aqui se manifesta num âmbito maior e com mais força, pela falta de freio, até reduzir a democracia à servidão, pois é um fato que o abuso seja do que for provoca reação correspondente, o que se verifica tanto nas estações, nas plantas e nos corpos, como no governo das cidades.

É natural, observou.

O excesso de liberdade só pode terminar em excesso de escravidão, assim nos indivíduos como nas comunidades.

É a ordem natural das coisas.

É natural, por conseguinte, continuei, que a tirania não possa deixar de provir de outra forma de governo que não a democrática, a saber: da extrema liberdade nasce a mais completa e selvagem servidão.

Está dentro da lógica, observou. (Livro VIII, 562b-564a)

Antes de dormir temos de arrefecer as partes irracionais da alma para apreendermos melhor a verdade e evitarmos sonhos proibitivos.

[E]ntre os apetites e prazeres desnecessários, alguns me parecem ilícitos. De fato, nascem com o homem; mas, reprimidos pelas leis e pelos desejos mais altos, em algumas pessoas, com a ajuda da razão, podem extinguir-se de todo ou ficar reduzidos a raros e tênues vestígios do que eram, enquanto noutras se tornam mais fortes e freqüentes.

A que desejos te referes? perguntou.

Aos que despertam no sono, lhe falei, quando repousa a parte racional e dócil da alma, feita para dominar a outra, bestial e selvagem, e que, saturada de alimentos e de bebidas, levanta-se de súbito, sacode longe o sono e procura satisfazer seus apetites. Como sabes, nesse estado ela é capaz de tudo, por se ter desvencilhado inteiramente do pudor e da razão. Não hesitará nem mesmo ao pensamento unir-se à própria mãe ou ao que for: homens, deuses e animais, como não se corre de manchar-se de nenhum modo, nem se julga obrigada a abster-se de nenhum alimento. Numa palavra: não há loucura nem imoralidade que não esteja disposta a praticar.

Só dizes a verdade, observou.

Porém, quando alguém, segundo penso, se mantém são e temperante, e antes de dormir desperta a razão e a alimenta com belas máximas e reflexões para alcançar a consciência de si mesmo, sem tratar com escassez da parte concupiscente nem lhe permitir excessos, para que se mantenha calma e não venha a perturbar com suas alegrias e tristezas a outra parte, a melhor, deixando-a investigar e procurar descobrir por si mesma, em toda a sua pureza, o que ela ainda não conhece, seja do passado, seja do presente, ou do futuro; quando essa pessoa, digo, depois de acalmar a parte colérica, adormece sem estar com ânimo agitado nem com raiva de ninguém; sim, depois de dominar essas duas partes da alma e de estimular a terceira, da inteligência, para, afinal, adormecer: como muito bem sabes, é nessas condições que a alma atinge mais de perto a verdade e quando menos lhe surgem em sonos aparições monstruosas.

Declaro-me plenamente convencido de tudo isso, respondeu. (Livro IX, 571b-572b)

Comparação e hierarquização das três partes da alma. A parte irascível é superior à parte apetitiva, enquanto a racional é superior a ambas.

[A]ssim como há três partes na alma, quer parecer-me que há também três espécies de prazer, um para cada parte. Todas elas têm três desejos e comandos peculiares.

Como assim?

Por meio de uma das partes, digamos, o homem aprende; com a outra, encoleriza-se; quanto à terceira, dada a variedade de formas, e por não termos encontrado um nome único que lhe convenha, designamo-la pelo que apresenta de mais notável e predominante: damos-lhe o nome de apetitiva, por causa da veemência dos desejos relacionados com o comer, o beber, o amor e demais apetites do mesmo gênero. Denominamo-la, também, amiga do dinheiro, por ser principalmente com dinheiro que se satisfazem os desejos dessa espécie.

Tens razão, me disse.

E se acrescentarmos que o amor e o prazer dessa terceira classe se relacionam com o lucro, apoiaremos numa qualidade importante nossa maneira de designá-la e teremos uma idéia clara, sempre que nos referirmos a essa parte da alma, com denominá-la amiga do dinheiro e do lucro, o que viria a ser sua designação mais certa.

É também o que eu penso, observou.

E então? A parte colérica não diremos que se emprenha sempre em dominar, vencer e conquistar fama?

Sem dúvida.

E se a designássemos também como amiga da vitória e das dignidades, não seria adequado semelhante qualificativo?

Muito adequado, respondeu.

E depois, não é claro, também, para toda a gente, que a parte por meio da qual apreendemos se esforça integralmente para atingir a verdade, sendo das três a que dá menos importância à riqueza ou à fama?

Muito menos, de fato.

Se a denominarmos, pois, amiga do conhecimento e da sabedoria, ter-lhe-emos dado a designação apropriada?

Como não?

E não é certo, continuei, que nalgumas pessoas compete a essa parte o comando da alma, e em outras uma das duas restantes, conforme o acaso determine?

Exatamente, respondeu.

Essa é a razão, também, de afirmarmos que há três espécies de homens: o filosófico, o ambicioso e o interesseiro.

Certo.

Como há, também, três espécies de prazer, relacionados com esses três caracteres.

Perfeitamente.

Sabes muito bem, continuei, que se te resolveres a interrogar particularmente cada um desses tipos de homens sobre qual seja a vida mais agradável, todos eles farão o elogio da sua. O homem interesseiro dirá que, em relação com o prazer do ganho, o das honrarias e o do conhecimento de nada valem, a menos que servissem para juntar dinheiro.

É muito certo, disse.

E o ambicioso, prossegui, não considera grosseiro o prazer de acumular dinheiro? E o de aprender, também, se esse conhecimento não conferir fama, não equivalerá para ele a fumo e banalidade?

É também o que eu penso.

Quanto ao filósofo, como devemos imaginar que opina a respeito dos outros prazeres, em comparação com o do conhecimento da verdade em si e o de passar a vida a estudar? Não dirá que estão longe do verdadeiro prazer e que só de nome são necessários, pois os dispensaria de todo, se o não forçasse a necessidade?

É a conclusão que se impõe, falou.

E uma vez, lhe disse, que se acham em discussão as diferentes espécies de prazer com seus respectivos modos de vida, não para concluirmos qual seja a vida melhor, porém a mais agradável e isenta de sofrimento, como sabermos qual dos nossos homens enunciou sentença mais acertada?

Para ser franco, me disse, não sei como responder.

Considera o caso da seguinte maneira: com que precisa julgar quem quiser julgar bem? Não é com experiência, sabedoria e raciocínio? Alguém disporá de um critério mais elevado?

Como fora possível? perguntou.

Reflete mais um pouco: dos nossos três tipos de homem, a qual atribuiremos maior experiência dos prazeres? Acreditas, mesmo, que o indivíduo interesseiro que se dispusesse a investigar a natureza da verdade teria maior experiência do prazer do conhecimento do que tem o filósofo do prazer do ganho?

A diferença é muito grande, me disse. Desde criança, este último é forçado a provar dos outros dois prazeres, ao passo que quando o interesseiro não é levado por nenhuma necessidade a provar da doçura do prazer do conhecimento da natureza do ser nem a adquirir essa experiência, por mais que se afane nesse sentido, a coisa não lhe será muito fácil.

Logo, continuei, o filósofo deixa longe o interesseiro no que respeita à experiência que tem desses dois prazeres.

Muito, não há dúvida.

E com relação ao ambicioso? O filósofo será menos experiente do prazer ligado às honrarias do que o outro com o que se refere ao conhecimento?

De jeito nenhum; as distinções acorrem naturalmente para quem atinge a meta que se propusera.O ricaço é distinguido pelas multidões, o mesmo se dando com o corajoso e o sábio. Daí conhecerem todos por experiência própria o que seja o prazer das honrarias. Mas o prazer oriundo da contemplação do ser, só o filósofo, ninguém mais, está em condições de apreciar.

Assim, lhe disse, no que tange à experiência, dos três é este o que pode formar o melhor juízo.

Sem dúvida.

E o único que à experiência associa a reflexão.

Como não?

Mais, ainda: o instrumento que serve para julgar não é privativo do indivíduo cúpido nem do amigo de honrarias, mas apenas do filósofo.

Qual é?

Já não dissemos que para julgar é indispensável o raciocínio? Não foi isso?

Certo.

O raciocínio, por conseguinte, é o instrumento peculiar ao filósofo.

Sem dúvida.

Ora, se a riqueza e o ganho fossem o melhor critério para julgar, sempre que o indivíduo interesseiro elogiasse ou condenasse alguma coisa, seu juízo teria forçosamente de ser verdadeiro.

Com toda a certeza.

E se o critério fosse o das honras, da virtude ou da coragem, o certo seria quanto dissesse o ambicioso ou o amigo das disputas.

É evidente.

Porém, como neste particular o que decide é a experiência, a reflexão e o raciocínio...

É de toda a necessidade, continuou, que tudo o que o filósofo elogia, o amigo da razão, seja verdadeiro.

Assim, das três espécies de prazer, o mais agradável é o que corresponde à parte da alma com a qual conhecemos, como a mais doce vida é a de quem se deixa comandar por essa parte.

Nem poderia ser de outra maneira, observou, pois o sábio é juiz competente, quando se manifesta sobre sua própria existência.

E a que modo de vida, perguntei, com seu respectivo prazer atribui o juiz o segundo lugar?

Evidentemente, ao do guerreiro e do ambicioso; estes se encontram mais perto dele do que o homem interesseiro.

O último lugar, portanto, cabe ao indivíduo interesseiro.

Como não? me falou. (Livro IX, 580d-583a)

A mentalidade avessa à Filosofia é ignorante porque é inexperiente quanto à verdade do que seja alto, baixo e intermediário. Vive entre o intermediário e o baixo.

Não admites, lhe falei, que em todas as coisas há o que se denomina em cima, em baixo e no meio?

Sem dúvida.

E quando alguma coisa se desloca de baixo para o meio, não te parece subir? E quando se encontra no meio e olha para o ponto de origem, que mais poderá imaginar, senão que está em cima, visto não conhecer a verdadeira altura?

Por Zeus! exclamou; acho mesmo que em tal situação não poderia pensar de outra maneira.

E no caso de a deslocarem de novo para trás, não pensará, e com razão, que está descendo?

Como não?

Porém, só lhe aconteceria tudo isso, por ignorar o que significam, de fato, as expressões no alto, no meio e em baixo.

É evidente.

E ainda te admiras de que, havendo tanta gente que desconhece a verdade e forma opinião errada sobre um mundo de coisas, e que assim também se comportam com relação ao prazer e à dor e aos estados intermediários, imaginam que sofrem – como de fato, sofrem – quando passam para a dor, mas quando passam da dor para o estado intermediário ficam absolutamente convencidos de que alcançaram a plenitude do prazer, tal como se daria com o ignorante da cor branca, que depois do preto visse o cinzento: do mesmo modo, por desconhecerem o prazer, confundem a dor com a ausência da dor; porém, nesse ponto se enganam.

Por Zeus! me falou; disso não me admiraria; o contrário, sim, é que me causaria maior espanto.

[...]

Por isso, os indivíduos desconhecedores da virtude e da sabedoria e dados a comezainas e a outros divertimentos do mesmo gênero, movimentam-se, como parece, para baixo, e depois só se alçam até à região do meio, oscilando, desse modo, a vida inteira entre esses limites, sem jamais ultrapassá-los. Não havendo atingido em nenhum tempo nem visto a verdadeira altura, nunca se saciaram com a vista do verdadeiro ser nem conheceram o prazer firme e duradouro; porém, vivendo com o gado, o olhar sempre para baixo, e inclinados para a terra e para a mesa, passam a vida no pasto, a engordar e a se sujarem mutuamente, empenhados, cada qual mais, em vantagens próprias: atracam-se, batem-se uns nos outros com cornos e cascos de ferro, por nunca estarem saciados, visto não encherem com o que tem realidade a parte deles mesmos que realmente existe e retém o que recebe.

Como um perfeito oráculo, Sócrates, disse Glauco, descreveste a vida da maioria dos homens. (Livro IX, 584d-585a, 586a-b)

A imagem da alma humana: uma besta multiforme, um leão e um homem interior.

Muito bem, lhe falei. E, uma vez que chegamos a esse ponto de nossa exposição, recapitulemos quanto foi dito no começo e o que nos trouxe até aqui. Afirmamos, então, que a injustiça é de vantagem para o celerado perfeito, contanto que passe por justo. Não era isso que diziam?

Exatamente.

Então, continuei, ajustemos contas com essa pessoa, visto já termos chegado a uma conclusão positiva acerca dos respectivos efeitos da conduta justa e da conduta injusta.

De que jeito? perguntou.

Formemos em pensamento uma imagem da alma, para que o autor daquela afirmação compreenda todo o alcance de suas palavras.

Que espécie de imagem? perguntou.

Como essas, lhe falei, de que trata a fábula, e que a natureza gerou na antiguidade: Cila, Cérbero, a Quimera e tantas outras, é o que dizem, com diferentes naturezas num só corpo.

Sim, dizem isso mesmo, observou.

Modela agora numa única forma um monstro de vários corpos e cabeças, com uma coroa de cabeças de animais mansos e ferozes, e empresta-lhe a capacidade de tirar de si mesmo outras tantas formas, com desfazer-se das primeiras.

Seria tarefa, disse, para um artista habilidoso. Mas, como o pensamento é mais fácil de trabalhar do que a cera e outras matérias do mesmo gênero, está pronta a imagem.

Modela agora mais duas imagens, a de um leão e depois a de um homem; porém, é preciso que a primeira dessas três imagens seja muito maior do que as outras, e a segunda maior do que a terceira.

Essa é mais fácil, disse; por isso, já está feita.

Reúne agora as três numa só, de forma que não façam mais do que um todo.

Estão reunidas, me falou.

Agora reveste tudo isso de uma só forma exterior, a humana, de modo que quem não puder vê-la por dentro e apenas perceba o envoltório, julgue que se trata de um único ser, isto é, de um homem.

Está revestido, disse.

Procuremos, então, quem afirmou que para este homem é útil cometer injustiça e prejudicial ser justo, e lhe provemos que tal afirmativa equivale a dizer que lhe seria vantajoso alimentar e fortalecer aquela fera de mil formas e o leão com toda a sua companhia, e deixar morrer de fome e inanir-se o homem, de forma que este seja arrastado, para onde quer que os dois o puxem, e em vez de harmonizá-los e habituá-los a viver juntos, permite que se mordam e se batam e reciprocamente se devorem.

Foi exatamente o que afirmou, me disse, o autor do elogio da injustiça.

E o contrário disso: declarar que é vantajoso ser justo, equivale a dizer que tudo o que fizermos ou falarmos deverá ter em mira permitir que o homem interior domine quanto possível o homem inteiro e a cuidar do monstro de mil cabeças à feição do lavrador que alimenta e favorece as espécies mansas e impede de crescer as selvagens. Para educar o homem interior, alia-se à natureza do leão e cuida das outras partes em comum, de forma que todos se tornem amigos uns dos outros e também dele.

É evidente que isso mesmo foi dito pelo defensor da justiça.

Assim, de todo o jeito só diz a verdade o paladino da justiça, e o contrário disso o que saiu em defesa da injustiça, pois, quer considere os prazeres, quer a boa fama, quer a utilidade, o elogiador da justiça está sempre com a verdade, enquanto o seu detrator nada diz de são, por desconhecer tudo o que ele próprio censura.

Eu também, me falou, estou convencido de que desconhece.

Admoestemo-lo, portanto, com bons modos, pois não errou de caso pensado, e interroguemo-lo: temos ou não o direito, meu bem-aventurado amigo, de afirmar que a vida honesta e a torpe são assim definidas porque a primeira submete ao homem a porção bestial de nossa natureza, ou melhor, submete-a à sua porção divina, enquanto a torpe escraviza à parte animalesca do homem sua porção mais nobre? Declarar-se-ia de acordo, ou o que diria?

Sim, me disse; declarar-se-ia, no caso de ouvir-me. (Livro IX, 588b-589d)

É melhor para o escravo que ele seja escravo.

Ora, se quisermos que esse indivíduo seja dirigido por uma autoridade semelhante à que governa o homem superior, não terá ele de deixar-se comandar pelo homem superior, em que o elemento divino é dirigente? Porém, não no sentido de prejudicar-se o escravo com sua obediência, como a respeito dos súditos imaginava Trasímaco, mas porque redunda em vantagem para ambos, governante e governado, serem dirigidos pelo que é divino e racional, máxime se tiverem no seu interior esse elemento como parte integrante deles mesmos, ou, então, não sendo isso realizável, como autoridade de fora, para que, na medida do possível, sob o mesmo governo, todos nós nos tornemos semelhantes e amigos uns dos outros.

É muito certo, observou. (Livro IX, 590d)

A alma racional deve se acostumar com os percalços e tragédias da vida.

O indivíduo ponderado, continuei, que tiver a infelicidade de perder um filho ou qualquer coisa de muita estimação, suportará o golpe – foi o que dissemos – mais facilmente do que outro qualquer.

Perfeitamente.

Vejamos agora se ele não se deixará comover, ou, no caso de não ser isso possível, se conseguirá atenuar o sofrimento.

A última alternativa, observou, é a mais provável.

Porém a seu respeito dize-me o seguinte: na tua opinião, em que condições ele resistirá e lutará contra o sofrimento: quando se acha sob os olhares de seus semelhantes ou quando se encontra apartado no seu próprio isolamento?

Comportar-se-á de modo muito diferente quando estiver sob as vistas de outrem.

Segundo penso, quando ficar a sós consigo, permitir-se-á proferir lamentações de que viria a envergonhar-se se fossem ouvidas por estranhos, como também fará muita coisa que não gostaria fossem vistas por terceiros.

Isso mesmo, observou.

E o que o intima a resistir, não é a razão e a lei? Como é também a própria dor que o perturba?

Certo.

Ora, quando num mesmo indivíduo se manifestam duas tendências opostas com relação ao mesmo objeto, dizemos que há necessariamente nele dois princípios distintos.

Sem dúvida.

Um dos quais se dispõe a obedecer à lei em tudo o que ela mandar.

Como assim?

A lei diz que não há nada mais belo do que conservar-se sereno o homem na adversidade e não revoltar-se, por não haver modo de sabermos o que há de bom ou de mau em tais ocorrências, não advindo da impaciência nenhuma vantagem, e também por carecerem de maior importância os assuntos humanos, e porque a dor obstrui o caminho ao que poderia sair depressa em nossa ajuda.

A que te referes? perguntou?

Refletir, lhe disse, a respeito do que acontecer e restabelecer nossa posição no tabuleiro do jogo dos dados dos nossos negócios, como a razão demonstra ser melhor; e no caso de recebermos algum revés, não fazer como as crianças, quando se machucam, que seguram a parte ofendida e põem-se a gritar. Pelo contrário, é preciso habituar a alma a vir o mais depressa possível curar o que estiver doente, levantar o que caiu e fazer calar as lamentações com a Medicina apropriada.

É a maneira mais acertada, disse, de enfrentar os golpes da fortuna.

E não será a melhor parte de nós mesmos, é o que dizemos, que se prontifica a seguir a razão?

Evidentemente.

E o outro princípio, que nos leva a relembrar nossa desgraça e a lamentar-nos, e que nunca se farta: não poderíamos qualificá-lo de ilógico, indolente e covarde?

Sem dúvida.

Ora, esse princípio, quero dizer, o irascível, dispõe de material múltiplo e variado para a imitação, ao passo que o caráter calmo e ponderado e que se mantém sempre mais ou menos igual, nem é difícil de imitar, nem, quando imitado, fácil de compreender, principalmente por uma multidão em dia de festa ou por indivíduos da mais variada procedência reunidos num teatro. Para todos seria a imitação um estado de alma inteiramente estranho.

Perfeitamente. (Livro X, 603e-604e)