Arquimandrita Touma (Bitar)
19/jul/2009
A raiva era uma coisa sagrada no Paraíso. O Senhor Deus implantou a raiva no homem para que ele possuísse um instrumento que fosse capaz de rejeitar dentro de si todas as artimanhas que o diabo armasse para separar o homem do verdadeiro Deus e para remover do homem sua fé em Deus. O diabo enganou Adão e Eva, e eles não fizeram uso dessa faculdade incensiva (ou irascível) para detê-lo. Se tivessem feito isso teriam escapado dessa artimanha do diabo e, portanto, teriam sido poupados dos sofrimentos que daí se seguiram. Quando a artimanha do diabo se lhes apresentou, caíram no mesmo erro que o diabo caíra – a autoadoração. O homem, ao aceitar as insinuações do diabo, deixou a esfera de Deus para entrar na esfera do diabo. Desde então, o homem tem se comportado, mesmo que de maneira espontânea, à maneira do diabo. Quanto à raiva, a partir do estado ao qual Adão e Eva chegaram, ela se tornou mais e mais um instrumento de opressão e destruição, no sentido do homem exercer poder sobre outros homens e sobre a morte. É assim que a autoadoração do homem começou a se expressar. A raiva tornou-se a faculdade destruidora da criação de Deus depois de ter sido a faculdade para preservá-la. Não mais ela é mais o instrumento para a defesa da verdade. Ao invés disso, tornou-se uma arma da falsidade.
A natureza humana de Jesus Cristo é a natureza do homem no Paraíso, antes da Queda. É por isso que a parte irascível foi implantada em prol do zelo a Deus. Quando Ele entrou no templo e viu aquelas pessoas fazendo comércio, transformando a casa de Deus em um bazar, ficou furioso por zelo à Verdade. Ele tomou de um chicote e bateu naquelas pessoas, virando mesas e cadeiras, dizendo-lhes: A minha casa será chamada casa de oração; mas vós a tendes convertido em covil de ladrões. (Mateus 21:13).
Para que os homens voltem a adorar Deus em espírito e em verdade mediante o cumprimento dos mandamentos divinos, não lhes é permitido que recorram à violência. O conselho para eles é: sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas. (Mateus 10:16). Para que os homens alcancem a humildade desejada pelo Senhor Deus, devemos imitá-Lo nisso. A parte irascível dos homens não retornou ao estado original e ela não recobrou o papel divino de defender a verdade e de preservar a criação de Deus. Até a Queda, a violência era uma arma exclusivamente diabólica. O clímax das artimanhas de Satanás foi trazer o homem ao campo da violência, fazendo-o matar em nome de Deus. Jesus Cristo alertou para este fato quando disse a Seus discípulos: Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus. E isto vos farão, porque não conheceram ao Pai nem a mim. (João 16:2-3).
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O diabo às vezes fala a verdade. Ele falou a verdade, por exemplo, quando chamou o Senhor de Jesus, Filho de Deus (Mateus 8:29). Nem tudo o que o diabo fala é mentira. Dito isto, ele continua sendo o enganador e o pai da mentira (João 8:44) porque seu objetivo é enganar os povos de todos os tempos e todos os lugares, seja falando a verdade ou falando mentiras. Seu objetivo principal não é testemunhar a verdade, mas lançar o homem ao erro. Ele sempre se moverá dentro do espírito da falsidade. Portanto, quando fala a verdade, ele o faz a serviço da falsidade. Se ele não falasse mentiras, ninguém acreditaria nele e todos se afastariam dele. É por isso que ele mistura mentira com verdade. É impossível que o homem conheça a verdadeira natureza do diabo exteriormente. Ele somente pode ser plenamento exposto através do Espírito de Deus.
Sejamos claros: o diabo tem um único objetivo, qual seja, o de afastar as pessoas de Deus. Para alcançar este objetivo, ele faz com que as pessoas pensem como ele pensa. Seu objetivo não é tanto dominar os homens por fora, mas dominá-los por dentro, implantando-lhes seus pensamentos. Ele nos faz pensar que o que ele quer para nós é exatamente o que nós queremos para nós mesmos. Seu slogan é: “Faça o que você quer”. Ele espalha seus pensamentos nas pessoas e desaparece. Dessa forma, ele nos transforma em demônios e em seus obreiros. A prova de seu sucesso é quando pensamos: “Este pensamento é meu. É assim que eu penso”; ou mesmo quando atingimos um elevado grau de cegueira e achamos que nossos pensamentos, que vêm do diabo, são de Deus.
Pois esta é a lógica da autoadoração e esta é a lógica do perverso poder humano. Quanto mais as pessoas se afastam de Deus, mais elas sujam as mãos com o poder terreno. Jesus Cristo alertou-nos contra a tomada de poder neste mundo, pois é impossível que o façamos sem estarmos sujeitos ao pensamento sobre o qual falamos acima. É impossível que alguém tome o poder de acordo com o mundo sem a presença desse pensamento diabólico. O poder é o primeiro passo da obra do diabo e o campo ideal para a manifestação de seus planos e pensamentos. Depois da Queda, a aquisição de poder tornou-se automaticamente a coisa que a alma mais deseja. O homem nasce com forte inclinação para isso – todos os homens. Por isso, para aqueles que têm fé em Jesus Cristo, há outros ditames, outros mandamentos e outra lógica. Eis o que disse Jesus Cristo: Sabeis que os que julgam ser príncipes dos gentios, deles se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas; mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal; e qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. (Marcos 10:42-45).
A grande tentação para as pessoas, não importa se tenham fé em Jesus Cristo ou não, mas sobretudo para os servos de Cristo – pois não temos “líderes” eclesiásticos no sentido estrito da palavra, mas “servos” eclesiásticos – é a tentação do poder. Para os servos de Cristo, essa tentação é ainda maior, pois não apenas estão expostos ao poder deste mundo, mas são chamados a exercer o poder em nome de Deus. Em outras palavras, são chamados a dar ao poder, o qual vem do Espírito Santo, também uma dimensão espiritual. É por este motivo que os servos de Cristo, se não são servos em verdade, são filhos de Satanás e seus servos por excelência, e aqui não importa se saibam disso ou não, pois roubam aquilo que é de Deus, de propósito ou por ignorância, e o cedem ao diabo. Neste contexto, o problema é que eles caem nas artimanhas de Satanás não por causa do que pregam, mas por causa do que dizem e não fazem (Mateus 23:3). Por sua pretensão em ignorar a prática, eles perdem o senso das coisas divinas. O exterior diz que são homens de Deus, mas o interior está firmemente atrelado ao serviço de Satanás. Este é o estado ideal para operar o trabalho do diabo. Eles insistem que estão a serviço de Deus, mas o que fazem é exercer o poder no espírito deste mundo. Eles exortam o amor de Cristo, mas não amam. Sempre têm desculpas. Eles dizem que cuidam do rebanho de Cristo, mas o que cuidam mesmo é de seus próprios interesses e paixões. Eles exortam ao perdão mútuo, mas odeiam e se vingam. Eles dizem que se preocupam com a ovelha perdida, mas afastam todas as ovelhas. Eles exortam a adoração a Deus, mas, no fundo de suas almas, querem mesmo é ser venerados e lisonjeados. Com palavras demonstram zelo pelo Evangelho, mas seus corações interiores têm zelo apenas pelo que é deles. Sua honra está acima da honra de Cristo! Eles não pensam duas vezes em desobedecer aos rituais da Igreja só para ganhar alguma vantagem pessoal, e chamam a isso de cuidado pastoral! Eles presidem os ofícios, mas o que querem mesmo é adorar a si próprios, à sua aparência, sua voz, suas vestes e suas homilias. Preocupam-se para que as pessoas se apeguem a eles, e não a Deus, e para que elas falem bem deles. Quando dizem a verdade, misturam-na com a falsidade que há neles, pois seus corações não são de Deus. Certamente não são!
Esse tipo de tentação satânica, este ambiente interior envenenado que reina em praticamente todas as pessoas da Igreja, sobretudo os pastores, não pode ser neutralizada apenas com conhecimento teórico, mas com o Espírito do Senhor e com exercícios práticos: cumprir os mandamentos divinos e andar em santidade. O ignorante é levado a Deus por quem O conhece, isto é, por quem O ama. Quando o cego guia outro cego, ambos caem no precipício do diabo. Por isso a Igreja tem ao longo da história tomado o cuidado de selecionar para o trabalho pastoral homens santos, ou seja, homens que conhecem a Deus e praticam os princípios da vida espiritual. Ninguém pode dar o que não tem. Somente aquele que teme a Deus pode levar o rebanho de Cristo a temer a Deus. Somente o arrependido pode lever o rebanho de Deus ao arrependimento. Somente quem ama a Deus pode levar o rebanho de Deus a amá-Lo. Somente o servo de Cristo pode liderar o serviço a Cristo. Quem jejua, reza e vigia pode levar o rebanho a jejuar, rezar e vigiar. Quem anda em santidade pode conduzir o rebanho de Deus à santidade. Somente quem possui o Espírito do Senhor pode conduzir o rebanho ao Espírito do Senhor. Este é o verdadeiro conhecimento prático dos cristãos, esta é a verdadeira filosofia dos cristãos. Teorias e conhecimentos não têm valor em si mesmos, não fazem de ninguém santo, mas servem na melhor das hipóteses como educação preparatória. A experiência mostra que os ignorantes espirituais tendem a depositar grande valor em teorias e aquisição de informações, mas quem tem experiência espritual não dá muito valor a teorias e precisa de pouca formação teórica. A maior parte de seu conhecimento é prático, de maneira que o que aprende vem do Alto. Para os cristãos, aquele que anda em santidade é o verdadeiro inteligente, mesmo que seja analfabeto; por outro lado, quem não anda em santidade não passa de um ignorante, mesmo que tenha memorizado todos os livros do mundo!
Hoje em dia, infelizmente, os padrões mudaram. Santidade não é o ambiente e a escola e a meta da maioria dos cristãos, sejam leigos ou sacerdotes. A santidade não habita mais a consciência dos fiés comuns, mas sim os grandes milagres! Não mais insistimos que nossos pastores sejam santos. De qualquer forma, não há muitos santos mais. A cultura da auto-satisfação não é propícia para a fabricação de santos. Damo-nos por satisfeitos com as pessoas que se comportam normalmente. Raramente investigamos a condição interior dos candidatos a pastores ou mesmo sua vida pregressa. Essa questão é totalmente ignorada quando se trata de selecionar bispos para a Igreja. A possibilidade de errar acaba se tornando enorme, causando constrangimento para a Igreja quando se descobre, depois de algum tempo, que o passado do recém-ordenado bispo é vergonhoso. Em outras ocasiões, bispos da Igreja não pensam duas vezes em ordenar pessoas que obviamente são indignas dessa posição.
O tipo de pastor a que me refiro é ainda mais valorizado hoje em dia se ele tiver algum diploma universitário e/ou alguma formação teológica qualquer, e se for bom de papo. Será ainda mais admirado se for um grande pensador, um orador eloquente, ou mesmo um escritor. Melhor ainda se conhecer línguas estrangeiras, se sua voz for bela e articulada, se tiver “consciência social” e se possuir conhecimentos administrativos e de educação religiosa. Não se exige, de maneira alguma, que seja um homem de oração. Isso é problema dele! Exige-se apenas que cumpra suas obrigações rituais com excelência. Ademais, não se exige que seja um homem que jejue. Isso também é problema dele! A maioria das pessoas, afinal, acha que o jejum na Igreja Ortodoxa é muito rígido mesmo, e que esse tipo de coisa não condiz com a época em que vivemos. Em geral, as pessoas se acostumam a conviver com as tendências impróprias desse pastor, seja ele ganancioso, vaidoso, orgulhoso ou briguento. No que tange as virtudes cristãs, raramente as encontramos nos pastores de hoje em dia – se é que as pessoas sabem quais virtudes são essas. Algumas se alegram ao identificá-las, algumas simplesmente não lhes prestam atenção. De qualquer forma, a maioria das pessoas simplesmente as acham supérfluas. O que importa mesmo é a ética mundana – ou seja, o pastor não pode ser fornicador, ladrão ou assassino. Na ausência de uma criação autenticamente cristã, o que acaba prevalecendo são os padrões humanos e mundanos!
Todas estas coisas fazem parte do contexto eclesiástico atual, já que a santidade não é preocupação de ninguém, nem do pastor. O que realmente valorizamos é a Igreja enquanto idéia, enquanto instituição, enquanto organização. Preocupamo-nos com os ofícios, com o coral, com as reuniões sociais e culturais, com grupos de estudo etc. Não que estas questões não sejam importantes. Elas são. Mas o mais importante não é isso. O mais importante é a purificação do coração e a aquisição do Espírito Santo. Eis o desvio fundamental daqueles que se consideram fiéis – sacerdotes e leigos, não importa. Eles não passam de pagãos que se autoadoram, que buscam sua própria glória. Preocupam-se com seu próprio poder, com sua própria reputação, com sua própria honra. Satisfazem-se com a forma exterior da adoração a Deus. O que lhes importa não é a conversão do coração, mas os costumes, as obrigações desprezíveis, os falsos elogios. Ora, não é esta a igreja ideal de Satanás? Não é esta a igreja que ele ama? Uma igreja mundana, ritualística, como um museu, um Cristianismo nominal, sem Cristo, sem santidade, sem verdade, sem Espírito, sem vida nova, cheia de pensamentos mundanos e preocupações mundanas! Não é esta a igreja que a maioria das pessoas recebe e pela qual trabalham? O diabo triunfou ao fazer as pessoas acreditarem que esta é a verdadeira igreja, que está é a igreja ideal, a igreja “moderna”!
Esta é precisamente a igreja contra o Cristo! E nós, desatentos à santidade, estamos construindo-na alegremente, persistentemente e continuamente!
Fonte: Notes on Arab Orthodoxy