Pe. Stephen Freeman
Eu me lembro bem das minhas primeiras aulas de Teologia Moral. Isso já faz uns 35 anos. Este assunto é essencial para o pensamento ocidental, sobretudo nas tradições católica romana e anglicana. Por diversas vezes as aulas se pareciam mais com aulas de Direito do que Teologia. Aprendíamos métodos e princípios sobre os quais as questões morais eram debatidas e decididas. Mas, no fim das contas, as aulas serviram mesmo é para despertar algumas dúvidas em mim.
O problema central da maior parte da moral está nestas perguntas fundamentais:
- O que significa agir moralmente?
- Por que moral é melhor do que imoral?
- Por que certo é melhor do que errado?
Estas perguntas são respondidas por algumas fórmulas legais clássicas:
- Agir moralmente é agir em obediência à lei ou aos mandamentos de Deus.
- Moral é melhor do que imoral porque moral é uma descrição da obediência ao Bom Deus. Ou, moral é a descrição de fazer o bem, ou de fazer o maior bem à maior quantidade de pessoas (depende muito da sua escola de pensamento).
- Certo é melhor do que errado pelas mesmas razões que moral é melhor do que imoral.
É evidente que todas estas perguntas (certo e errado, moral e imoral) depedem não apenas de um padrão de conduta, mas de alguém que force tal conduta. Assim, certo é melhor do que errado porque Deus vai castigar o errado e recompensar o certo -- se não fosse assim (no contexto deste raciocínio), tudo seria mero exercício acadêmico.
Admitamos desde já que muitos cristãos se sentem perfeitamente à vontade com a idéia de que Deus recompensa e castiga. Admitamos também que há farta evidência bíblica que serve de suporte às pessoas que pensam assim. Todavia, este tipo de raciocínio está longe de ser unânime nas tradições de fé cristã -- e menos ainda na Igreja Oriental.
Que a Escritura ensina essas coisas -- que Deus é castigador e recompansador -- é inegável, mas há mais coisas no âmbito bíblico que precisam ser lidas e entendidas:
E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto [a recusa dos samaritanos em receberem Jesus Cristo], disseram: "Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?" Voltando-se, porém, repreendeu-os, e disse: "Vós não sabeis de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las". E foram para outra aldeia. (Lucas 9:54-56).
Se Tiago e João estavam raciocinando com base no binômio castigo-recompansa -- e obviamente eles estavam --, a repreensão do Cristo pegou-os de surpresa. O mesmo se aplica a vários outros momentos do ministério de Jesus Cristo. A interpretação dada pelos Padres neste e em outros trechos da Escritura é de que o papel de Deus como "castigador" é apenas um aspecto de Seus papel como "terapeuta". As agruras que padecemos não são para nossa destruição e castigo, mas para nossa salvação e cura.
Esta observação faz com que as coisas tomem uma nova direção. Trata-se de uma interpretação aplicada ao Velho Testamento a partir da revelação do Cristo no Novo Testamento. No Cristo vemos com clareza aquilo que era apenas conhecido "em enigmas" na Velha Aliança. Através dEle vemos agora com clareza.
Deus enquanto Cristo é uma realidade que invoca novas perguntas sobre moralidade:
- O que a encarnação de Deus significa para a moralidae humana?
- O que está em jogo nas nossas decisões sobre o que é certo e errado?
- O que significa ser moral?
Os ensinamentos de Santa Atanásio (+373), o grande Padre do Concílio de Nicéia e defensor da fé contra os ataques do arianismo, sobre a natureza do estado aflitivo em que se encontra a humanidade (pecado e redenção) são especialmente importantes. A abordagem que ele faz sobre o assunto, em especial em De Incarnatione, começa com a criação do mundo do nada (ex nihilo). Nossa própria existência é uma coisa boa, que nos é dada e sustentada pela misericórdia e pela graça do Bom Deus. A ruptura de comunhão que ocorreu na Queda (e em todo pecado) é a rejeição da verdadeira existência que nos é dada por Deus. Portanto, o problema do pecado não é de natureza legal, mas de natureza ontológica (uma questão de ser e de verdadeira existência). O sentido da vida, no âmbito cristão, é a união com Deus, é ser participante de Sua vida. O pecado rejeita a verdadeira existência e nos afasta de Deus em uma espiral de não-ser.
Ora, as questões que vivenciamos não são morais em sua natureza, ou seja, não se trata de obedecer certas coisas porque são certas etc., mas são ontológicas em sua natureza. A grande escolha dos homens é entre a união com Deus e Sua vida ou cair no vazio do não-ser. A salvação não é uma questão jurídica, mas ontológica. As grandes promessas do Cristo apontam nesta direção.
Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso noûs, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus. (Romanos 12:1-2).
Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor. (II Coríntios 3:18).
Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós. Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados. Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos; trazendo sempre por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste também nos nossos corpos; e assim nós, que vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também na nossa carne mortal. De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida. (II Coríntios 4:6-12).
Há muitos outros versículos que apontam na mesma direção. Eles deixam claro que a salvação é algo que ocorre dentro de nós -- não se trata de uma mudança de nosso status jurídico. Somos exortados a entender que Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade (Filipenses 2:13). A salvação nada mais é do que conformar-se à imagem de Deus, uma verdadeira comunhão de vida e participação na natureza divina.
As abordagens jurídicas ofuscam a compreensão dessas coisas. A obsessão por modelos jurídicos rapidamente reduz a fé a um tribunal cósmico (ou sistema penal). O grande problema é que as questões morais tendem a ser objetificadas e situadas fora da vida dos fiéis. A superação de todas as questões legais que se interpõem entre nós e Deus não tem nada a ver com o paraíso. O objetivo do cristão ortodoxo é ser transformado na união com Cristo -- ser curado do pecado e renovado. Isto exige uma mudança no homem interior, exige a restauração do "verdadeiro eu" que está "oculto com Cristo em Deus".
Quanto à justiça, trata-se de um mistério. Cristo fala de Deus recompensando um grupo de pessoas que trabalharam somente no fim do dia da mesma forma que recompensou aqueles que trabalharam o dia inteiro. O princípio subjacente aí é diferente do princípio da justiça (é um exemplo usado por Santo Isaque, o Sírio).
O moralismo é uma degeneração da verdadeira doutrina cristã. Como o secularismo (e o universo de dois andares), ela pretende debater questões morais como se Deus não existisse. O moralismo (e todas as suas primas éticas) tornou-se uma "ciência", um exercício abstrato racional baseado em princípios puramente presumidos. A Escritura é clara quando diz que "ninguém há bom, senão Deus", nem pode haver nada que seja bom que não venha de Deus. As únicas "boas ações" são aquelas que nos levam à união profunda com o Cristo. Estas ações começam em Deus, são apoderadas por Deus e levam a Deus. "Moralidade" é uma ficção, pelo menos no sentido em que é versada pelo pensamento moderno.
O pecado que infecta nossas vidas e produz más ações é uma doença mortal (morte). Somente a união com a verdadeira vida no Cristo pode curar esta situação, causando a transformação e o renascimento na verdadeira vida, que é nossa no Cristo.
Conforme disse em várias ocasiões: Cristo não morreu para tornar homens maus em bons - Ele morreu para tornar homens mortos em vivos.
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Abba Lot certa vez visitou Abba José e lhe disse: "Abba, na medida do possível, rezo meu pequeno ofício, jejuo um pouco, rezo e medito, vivo em paz e purifico meus pensamentos o quanto posso. Que mais posso fazer?" O ancião levantou-se e apontou com os braços o céu. Seus dedos se tornaram como dez lâmpadas de fogo e eis que ele respondeu: "Se quiseres, poderás te tornar todo fogo".
Fonte: Glory to God for All Things