5 de março de 2011

Filosofia bizantina II


O objetivo de Jaroslav Pelikan em Christianity and Classical Culture é descrever a teologia natural dos Quatro Capadócios – São Gregório, o Teólogo, e os irmãos São Gregório de Nissa, São Basílio, o Grande, e Santa Macrina. Há, segundo Pelikan, uma diferença enorme entre o platonismo e o platonismo cristão dos Capadócios, e ele procura mostrar em quais instâncias e com qual especificidade os Capadócios fizeram uso das obras dos filósofos gregos clássicos. A teologia natural do Império Bizantino é fruto direto dos encontros do pensamento patrístico com a literatura clássica grega. Veremos aqui, assim como nas demais postagens da série Filosofia bizantina, de que maneira os primeiros filósofos bizantinos fizeram uso criativo dessa literatura.

Dos Quatro Capadócios, Pelikan considera São Gregório de Nissa como teologicamente superior aos demais, embora todos sejam de importância crucial para o desenvolvimento do pensamento bizantino. Por isso, Pelikan não os analisa de maneira individual, isolada, mas coletivamente.

Esta postagem é dividida de acordo com os capítulos do livro, que é, em verdade, escrito duas vezes sob aspectos distintos: a primeira parte descreve a função apologética da teologia natural, ou seja, a função de despertar no ouvinte/leitor o ímpeto para adentrar e aprofundar-se na fé cristã ortodoxa; a segunda parte descreve a função dogmática da teologia natural, ou seja, a função de aproveitar-se de explicações previamente existentes para auxiliar na descrição da teologia revelada cristã. O leitor verá que muitas idéias são repetidas, tendência esta que procurei suprimir, já que é ainda mais intensa no original. Parte da explicação para isso provém do fato de que o texto é um conjunto de transcrições de palestras, e não foi originalmente pensado como livro.

Parte A: A função apologética da teologia natural
1) Cultura clássica e teologia cristã

De acordo com os Capadócios, o cristão pode beneficiar-se e muito da cultura pagã. Isto não significa que tal cultura esteja isenta de críticas: as Escrituras são infinitamente superiores às “discussões investigatórias dos filósofos”, segundo São Basílio. São Gregório, o Teólogo, insistia que os chamados “filósofos” [philosophoi] não eram “sábios [sophoi] de maneira alguma”, e até mesmo o mais comum dos cristãos é superior à sabedoria dos filósofos gregos.

À época, um dos recursos intelectuais mais utilizados era a retórica. Os Capadócios eram muito bem versados nela, porém repreendiam as pessoas que se orgulhassem de suas habilidades oratórias. São Gregório de Nissa contou que o jovem São Basílio era um exemplo disso, e teria sido sua irmã, Santa Macrina, que o conduziu “à marca da philosophia”, termo este que, note-se bem, designa o asceticismo cristão. No entanto, é inegável que a retórica tenha desempenhado um papel importante na exegese bíblica.

A literatura clássica também foi importante para o desenvolvimento do pensamento dos Capadócios. Embora fossem críticos dos “poetas e fabricantes de mitologia”, ridicularizassem os mitos como sendo “divertimentos para crianças gregas” e os acusassem de conter “extravagâncias chocantes”, o fato é que, quando se comunicavam com cristãos, tratavam a literatura grega com a devida importância e seriedade.

Os Capadócios também tratavam a filosofia clássica com certa ambivalência. Ao mesmo tempo em que acusavam a filosofia pagã de ser fonte de heresias, faziam uso intenso de silogismos disjuntivos [diazeuktikos], um recurso explicitamente derivado da lógica e da dialética clássica, a fim de as refutarem. Santa Macrina resumiu com grande eloqüência esta ambivalência: “A dialética é um recurso sutil, cuja força pode ser utilizada das duas maneiras – subverter a verdade ou detectar a falsidade. [...] Começamos a suspeitar da própria verdade no momento em que ela é defendida com esse tipo de recurso; sua própria engenhosidade procura enviesar o julgamento e subverter a verdade”.

2) A função apologética da teologia natural

Os Capadócios sempre foram duros e críticos a respeito da antiga religião grega. Por outro lado, não deixa de ser interessante notar que eles não deixaram de fazer uso de algumas expressões típicas dessa religião para explicarem a teologia litúrgica cristã; por exemplo, panegyrizein [celebrar] e heortazein [festejar], que se encontram até mesmo no Novo Testamento. Ademais, São Gregório, o Teólogo, chamava a Crucificação de Jesus Cristo de “drama maravilhosamente elaborado”, assim como a crucificação dos mártires também era vista como um “drama”: isso implicava em certa comparação com a performance das tragédias gregas.

No entanto, o tom geral no que diz respeito aos “mitos” da antiga religião e da literatura gregas era muito negativo. São Gregório, o Teólogo, fazia uma distinção muito clara entre esses elementos e a “teologia natural” dos pensadores gregos. É sobre esta teologia natural que os primeiros cristãos debruçaram-se com interesse e afinco. Santa Macrina afirmava que a fé deveria basear-se tanto na “opinião vigente” quando na “tradição das Escrituras”.

O caso de Eunômio de Cízico é exemplar. Sua insistência no monoteísmo fundava-se, segundo São Basílio, no “conhecimento natural e na doutrina dos Padres”. No entanto, quando São Basílio procurou enquadrar a linguagem do Novo Testamento a respeito de Jesus Cristo invocando a distinção entre a teologia da Divindade em si e por si e a economia da Divindade em sua relação com a história, Eunômio atacou São Basílio afirmando que “a própria natureza das coisas” eram repugnante a tal harmonização, assim como as Escrituras. [O Pe. John Romanides tratou desta questão em Patristic Theology, no qual condenou a tentativa de fazer uso da enteléquia aristotélica baseada em observações naturais para caracterizar a Divindade]. Porém, São Gregório de Nissa rejeitava esta postura, ensinando que “a natureza não é confiável para instrução no que tange o processo divino de geração [no interior da Trindade], nem mesmo se o universo como um todo for levado em conta a título de ilustração argumentativa”.

O método teológico e apologético de São Gregório de Nissa é “juntar as declarações que pareçam se opor, ou seja, as declarações baseadas na explicação da Escritura e as declarações baseadas na explicação racional, de maneira que sejam consistentes em série [de pensamento] e em ordem”. É mais conveniente apresentar uma doutrina “para as pessoas treinadas somente pelos métodos técnicos da prova”, por meio de “meras demonstrações, que sejam suficientes para o convencimento” dentro dos limites da razão, e somente depois, dado que “as doutrinas da Sagrada Escritura” seriam “mais confiáveis do que as conclusões artificiais”, investigar se tudo o que fora provado pela razão pode também ser harmonizado com as doutrinas da Escritura. Esta seqüência funda-se no famoso axioma de São Gregório de Nissa: “Fé é aquilo que dá plenitude ao raciocínio”. A utilidade “instrumental” da razão a serviço da teologia ajudou, por exemplo, a explicar as distinções metafísicas do interior da natureza divina, a qual está em conflito com a idéia convencional da “simplicidade divina”.

Embora nunca tivessem desprezado o conhecimento acadêmico – os Capadócios freqüentemente se congratulavam mutuamente por sua eminência acadêmica –, a teologia natural dos Capadócios era restrita “à filosofia moral e à filosofia natural, mas que precisavam ser unidas a uma vida mais sublime” (São Gregório de Nissa). São Basílio ensina que há uma “racionalidade natural implantada em nós, que exorta a nos identificar com o que há de bom e evitar as coisas prejudiciais”; o medo da punição, a esperança de salvação e glória, a prática das aretai [virtudes, excelências] são exemplos de princípios implantados naturalmente no coração humano. Neste sentido, o Apóstolo Paulo não teria ensinado nada de novo, mas apenas reforçado as contenções morais clássicas, conforme ensinadas por Jesus Cristo no Sermão da Montanha. Digna de nota, porém, é a diferença entre a teoria clássica e teoria cristã no que tange a moralidade sexual.

No entanto, o método de traçar paralelos entre a teoria cristã e a teoria clássica, e daí trazer à tona a verdade, serviu não apenas ao campo ético, mas também ao campo doutrinal. Quatro doutrinas se destacam neste sentido: (a) a imortalidade da alma, da qual foi extraída a idéia falsa da metempsicose; (b) a doutrina de Deus, corrompida pelo hábito de “observar as coisas visíveis e fazer delas um deus”; (c) a doutrina da criação, maculada pela idéia da coexistência da matéria com Deus; (d) a doutrina da boa e poderosa providência divina, a qual torna-se viciada se imbuída da noção da “ananke [necessidade] da heimarmene [destino]”, ou seja, do determinismo. Quanto à doutrina de Deus (item (b)), os Capadócios eram especialmente cautelosos contra “tomar as coisas de baixo e estimar as coisas do alto” [artifício típico da teologia natural], mas isso não significa que não se imiscuíam em questões especulativas e apologéticas.

Em seu leito de morte, Santa Macrina afirmou que “nosso dever é não deixar nenhum argumento lançado contra nós sem ser examinado”. No entanto, os intérpretes da fé não devem se relacionar com os infiéis “mestres da onisciência”, os quais nada querem aprender, mas “com as pessoas mais cultas, com aqueles que detêm olhos capazes de penetrar na natureza perecível e efêmera”. Estas são as pessoas realmente preparadas, pois não adotam o método falho dos “mestres da onisciência”, que alegam compreender o mistério da natureza divina fazendo declarações afirmativas sobre ela ao “compararem as coisas eternas com as coisas temporais e perecíveis”, mas adotam o método da linguagem apofática da negação.

Pelikan entende que São Gregório, o Teólogo, foi quem contrastou com melhor eloqüência e maestria, com perfeito equilíbrio e harmonia, a distinção entre “as verdades dadas pela fé e as verdades dadas também ao raciocínio”. Ele evidentemente fazia uso da teologia natural, mas apenas de maneira ad hoc, cuja abrangência apologética jamais operava apartada da fé. Por exemplo, o fato de o Filho ter uma natureza divina é uma doutrina; tudo o mais que daí se depreende representa os primeiros princípios da teologia natural. Eis portanto que a aplicação apologética da teologia natural é aquela em que a razão fornece a base da religião, sendo apropriada para estranhos, não-iniciados. No entanto, melhor aplicação da teologia natural é enquanto pré-requisito da fé, ou seja, quando ela se soma à fé na tentativa de explicá-la e interpretá-la racionalmente. É a esta última que os Capadócios rendiam seus maiores elogios, embora não dispensassem a aplicação apologética da teologia natural. Assim, além de teólogos no sentido tradicional [ver Espiritualidade ortodoxa: uma breve introdução], os Capadócios tinham de ser também filósofos.

3) A linguagem da negação

São Gregório de Nissa explica que os termos negativos – inocente, indolor, ingênuo, imperturbado, desapaixonado, impassível etc. – ensinam “sob quais condições é permissível conceber Deus enquanto existente”. Segundo o principal oponente de São Gregório, Eunômio, a idéia de que é impossível definir termos que expressem as coisas espirituais é sinal de pura ignorância.

No entanto, dado que o objeto da teologia é “inexprimível pela voz humana” (São Basílio), a teologia apofática tornou-se uma teoria da linguagem, cujo axioma universal é: “O pensamento humano é fraco, mas a linguagem humana é mais fraca ainda”. Neste sentido, e de maneira não pouco curiosa, os Capadócios puderam ao mesmo tempo defender o uso exclusivo da terminologia bíblica e a introdução de termos como homoousion no Credo. Esta aparente inconsistência só pode ser compreendida quando a enxergamos através das lentes da linguagem negativa: toda linguagem que se refira ao divino é inadequada, seja ela apostólica ou pagã ou ortodoxa. “Como não temos outras palavras para empregar, empregamos as que temos”, disse um resignado São Gregório de Nazianzo. Os termos “Logos” e “luz”, por exemplo, ilustram bem como a linguagem metafórica e analógica pode ser indispensável e enganosa. A linguagem negativa é essencial para controlar as metáforas e analogias. As analogias e metáforas, neste contexto, são como provérbios, ou seja, como “formas de discurso que, através de idéias conjuntamente apresentadas, apontam para o oculto” ou “formas de discurso que não mostram diretamente a intenção do pensamento, mas fornecem sua indicação através de significações indiretas”. É assim que analogias como “Pai e Filho” devem ser compreendidas: são metáforas cujo sentido é muito mais profundo do que a simples relação natural “pai e filho” poderia transparecer. A despeito de serem catafáticos ou apofáticos, os nomes usados para Deus referem-se a qualidades e atributos que são blasfemos quando aplicados a Ele (ver a interessante proposta de apofaticismo radical de Philip Sherrard).

São Gregório de Nissa achava perdoável o “erro de argumentar sobre o incompreensível a partir dos fenômenos naturais” desde que se utilizassem as devidas limitações apofáticas. O emprego de “exemplos compreensíveis, voltados para formular conceitos apropriados” é compreensível, desde que tais ilustrações não sejam levadas a sério demais. São Basílio insistia que “não há denominador comum entre a natureza humana e a natureza divina, pois suas propriedades são totalmente distintas uma das outras”. Até mesmo o termo “Deus” é um “nome relativo”, e não absoluto, ensinava São Gregório, o Teólogo; quando Jesus Cristo mandou que se batizasse “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, Cristo evidentemente se referia ao “nome inominável”.

Neste ponto, é importante salientar que a apophasis refere-se não apenas aos termos da linguagem humana, mas ao próprio pensamento humano. No entanto, ao contrário de Eunômio, que entendia que a teologia negativa seria necessária por causa do pecado – opinião esta que os Capadócios achavam metafisicamente ingênua e teologicamente rasteira –, eles ensinavam que a teologia negativa é necessária por causa da divisão ontológica que separa Deus, “Criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis”, e as criaturas visíveis (corpos humanos, insetos, pedras) e invisíveis (anjos, almas humanas e formas platônicas).

A análise apofática não deve limitar-se apenas às questões metafísicas, mas deve estender-se também a todo conhecimento natural, ou seja, às realidades criadas: por serem “tão sublimes”, elas “tornam o conhecimento do mais minúsculo dos fenômenos mundanos algo inabarcável mesmo para a mais arguta das mentes humanas”.

Não seria tais posturas apofáticas um convite ao niilismo? São Basílio explica que não. Em primeiro lugar, a palavra “conhecer” admite diversos sentidos: conhecemos a grandeza de Deus, o poder de Deus, a sabedoria de Deus, a bondade de Deus, a providência de Deus, a justiça de Deus – mas nunca a ousia de Deus. Em segundo lugar, e por causa mesmo do fato da essência divina não ter sido revelada aos seres criados, tal conhecimento não é necessário: o que é realmente necessário é a memória humana apreender e reter todos estes vários nomes sob os quais o conhecimento do divino foi entregue. De maneira alguma o cristão deve desesperar-se por causa da incompreensibilidade divina; pelo contrário, quanto melhor a razão humana compreende a grandeza do Objeto de seu amor, tanto mais deve elevar e excitar seus pensamentos a fim de não perder a participação em Deus. A apophasis não deve engendrar o niilismo, mas, pelo contrário, deve por em marcha outras modos de conhecimento.

4) Modos de conhecimento

A epistemologia dos Capadócios possui um aspecto subjetivo: o autoconhecimento. Isso significa que o conhecimento objetivo, exterior, exige uma preparação prévia por parte do agente. O primeiro passo para o conhecimento é superar a ignorância acerca de si próprio e substituí-la por um autoconhecimento preciso e julgamental. O conhecimento subjetivo constitui uma espécie de norma ou pré-requisito para a posterior avaliação dos conceitos que possam ser aplicados ao divino.

A partir deste autoconhecimento é possível, então, passar às considerações acerca daquilo que é trazido pelos sentidos, ao conhecimento “dos fatos que nos são transmitidos pela experiência sensorial” (São Gregório de Nissa).

É necessário reconhecer que “o mundo das realidades” abarca não apenas os fatos sensoriais, mas “a contemplação do mundo inteligível, que transcende a apreensão dos sentidos”. A mente precisa aprender a limpar os empecilhos criados pelos sentidos para ascender ao invisível.

 No entanto, as verdades obtidas pela razão ainda exigem que o pensamento humano e a linguagem humana as expressem “com base em metáforas”. Mas o estudo acadêmico e intelectual não é perda de tempo. São Basílio ensina que “o julgamento da mente é bom e foi-nos dado para nosso bem, qual seja, para a percepção de Deus; mas ela só consegue operar dentro de seus próprios limites”.

Os métodos objetivos-subjetivos são tão importantes na apologética dos Capadócios que podem ser considerados como sendo verdadeiras contrapartes da revelação trinitária revelada. Todavia, os Capadócios são ambíguos no que tange as provas da teologia natural. Por exemplo, ao comentar Romanos 1:20 [Porque as Suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder, como a Sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis], São Basílio afirma que “através da visão das realidades visíveis e empíricas” a mente humana “é levada, como que pela mão, à contemplação das realidades invisíveis”. Logo em seguida, São Basílio acrescenta que “é impossível que o universo como um todo forneça uma idéia correta da grandeza de Deus”. São Gregório de Nissa faz algo semelhante ao corroborar o Salmo 18:2 [Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das Suas mãos]. Mas ele também diz a respeito deste mesmo verso que os céus são não são bons arautos da dignidade de Deus, pois a majestade de Deus não é exaltada na medida dos céus, mas “para muito além dos céus”; assim, o que os céus estariam declarando é, na verdade, a incognoscibilidade e a incontemplabilidade de Deus. Semelhantemente, os demais argumentos filosóficos, como o argumento do movimento e o argumento da causa, ambos aristotélicos, ou o argumento do design, devem ser compreendidos da mesma forma: quem quer que os negue são “alminhas” (Santa Macrina) de “julgamento deficiente” (São Basílio); contudo, “o que quer que tenha sido imaginado ou simbolizado não é a realidade de Deus”. Todo argumento apologético deve obrigatoriamente ser qualificado pela teologia apofática. Toda bondade e toda formosura do cosmo nada mais é do que “uma mão que nos conduz à beleza suprema”. “Não buscamos a glória nas analogias e nomes que usamos, mas buscamos guiar a mente com a ajuda destes termos para a compreensão das coisas que estão ocultas” (São Gregório de Nissa). A função apologética da teologia natural é preparar o fiel para a mensagem da fé cristã. “O conhecimento estimula a superação de si próprio”, nas palavras de Basil Tatakis. Portanto, todas as analogias são falhas, e isso inclui as analogias da Escritura e dos dogmas.

5) Muitos e um

São Gregório de Nissa admitia a necessidade de múltiplos modos de conhecimento, dependendo dos atributos divinos a serem aspirados. No entanto, este fato poderia sugerir que “a cisão de tais atributos” implicaria “na cisão do Sujeito dos atributos”. “Ao perceber que os pagãos, com sua inteligência estreita e imatura, estavam inclinados a enxergar as belezas da natureza com admiração e a não empregá-las como condutores e guias para as belezas da natureza divina, que transcende estas coisas, eles acabaram paralisando-se nos objetos de sua apreensão, maravilhando-se em cada porção da criação separadamente. Por isso, eles são incapazes de desenvolver seu conceito de Divindade em uma única coisa, mas acham que todas as coisas que observam na criação são dignas de serem divinas”. No exato instante em que supõem que a natureza não é una, nada os impede de “progredir através da criação”, atribuindo e distribuindo a divindade aos múltiplos objetos de sua admiração. E assim nasceu o politeísmo. A idolatria do politeísmo é a perversão do desejo por Deus.

Outros elementos das críticas pagãs ao politeísmo também foram considerados pela crítica dos Capadócios. Uma delas era a idéia dos filósofos de que o politeísmo fosse talvez um monoteísmo disfarçado. Em alusão a esta idéia, São Gregório de Nissa atribuía a Platão a doutrina da “existência no alto de um Criador dos deuses subordinados”.

São Basílio admitia três alternativas gerais para o problema de Deus: politeísmo, ateísmo e monoteísmo. Para ele, a adesão ao politeísmo ou ao ateísmo eram “superstições igualmente ímpias e igualmente irrazoáveis”. Havia ainda outras três alternativas: o sincretismo (esposado por Juliano, o Apóstata), o dualismo e o panteísmo.

Para os Capadócios, o dualismo resumia-se em fazer de Satanás um segundo deus. Conforme admitia São Basílio, o segundo versículo da Bíblia [e havia trevas sobre a face do abismo] tornou-se “uma nova fonte para fábulas e para as mais ímpias imaginações” dos maniqueístas dualistas. Sim, é verdade que há alguma plausibilidade superficial nas teorias dualistas. Afinal, a vida perecível e dolorosa explica-se facilmente se acrescentarmos ao mundo uma segunda força que seja responsável pela miséria de nossa natureza. Ocorre que este segundo deus, esta segunda força, destrói a doutrina da criação e, pior ainda, destrói a própria doutrina da unicidade de Deus.

O panteísmo, por sua vez, obscurece a divisão ontológica entre criação e Criador. A idéia de que Deus possui uma “natureza” significa dizer que Deus não se assemelha à natureza do universo, mas a transcende. O termo natureza (physis) é equívoco, não se refere a “Deus” e ao “cosmo” como se fossem modos alternativos de falar da mesma realidade. Observe que este tipo de panteísmo não tem nada a ver com a idéia de que o cosmo é um “todo completo”.

A rejeição racional a todos estes “ismos” filosófico-teológicos – politeísmo, ateísmo, sincretismo, dualismo e panteísmo – conduz naturalmente ao monoteísmo. Nada, nem mesmo a doutrina ortodoxa da Trindade, pode comprometer o alcance absoluto do monoteísmo, embora os Capadócios com o tempo tenham redefinido a unicidade de Deus.

6) Ordem cósmica

São Gregório, o Teólogo, identificou as três opiniões mais antigas acerca de Deus: “anarquia”, “poliarquia” e “monarquia”. Anarquia e poliarquia tendem ambas para a desordem. Somente a monarquia é capaz de salvaguardar a ordem no mundo. Assim, os Capadócios postularam uma conexão filosófica fundamental entre a doutrina correta do ser divino e a busca pela ordem cósmica. Quem se imbuísse “de uma perspectiva filosófica” e estudasse as ciências “possuiria a intuição psíquica” para apreender “a harmonia do todo” (São Basílio).

Todas as teorias cosmológicas e metafísicas que foram refutadas pelos Capadócios têm sua origem nas fontes clássicas. Platão e Aristóteles, por exemplo, postulavam a preexistência eterna da matéria, a partir da qual o Criador, que coexistia com ela, formou o cosmo. Mas é de Platão que os Capadócios extraem a maior parte das palavras, mas não necessariamente dos termos, que usam para explicar sua cosmologia. Por exemplo, São Basílio faz uso da palavra demiourgia, retirada do diálogo Timeu.

A doutrina platônica das idéias é certamente a doutrina mais importante, e que mais vêm à mente, dos Capadócios. Eles ensinam que a criação da humanidade procedeu “através de uma série de avanços graduais e ordenados” a partir de criaturas anteriores e inferiores, conforme narrado em Gênesis e evidente na própria natureza da criação (Santa Macrina). Além deste aspecto, também se verifica um “avanço gradual e ordenado” mais inclusivo, no que tange o desenvolvimento de cada criatura: das idéias para os fenômenos particulares, dos fenômenos particulares para a harmonia cósmica de todos os fenômenos. Primeiro veio “a forma que Deus quis dar” a cada criatura; depois, Deus “criou a matéria em harmonia” com a forma; “finalmente, Deus uniu todas as diversas partes do universo por elos indissolúveis, estabelecendo entre elas uma sociedade tão perfeita e harmônica que mesmo a mais distante das partes está unida em uma única simpatia universal” (São Basílio). Em Gênesis, quando Deus colocou o homem no Paraíso “para ser um lavrador”, São Gregório, o Teólogo, ensina que isto é uma alegoria para o homem ser um “lavrador das concepções divinas, das mais simples às mais perfeitas”. Isto também é um tipo de “preexistência”, tais como as teorias cosmogônicas clássicas; mas, na verdade, trata-se de uma “preexistência no poder presciente de Deus”, e não um fator independente do Criador. [Deus eterno, tu conheces todos os segredos e antevê todas as coisas. Susana 42 (Daniel)]. Deus é o “Criador do céu e da terra”, ou seja, Ele também é o Criador das essências dos seres, e não apenas um inventor de figuras, mas o Criador da “ousia com a forma”. Em outras palavras, Deus é a essência das essências.

No entanto, a apophasis também deve obrigatoriamente ser aplicada a esta doutrina, já que ela é “inconcebível à nossa mente, mas situa-se para além de todas as palavras, sublime demais para os iniciantes e os bebês em conhecimento”. Por este processo, a matéria foi criada em harmonia com a forma que Deus quis lhe dar. O arranjo sistemático do cosmo foi predeterminado pela vontade livre e soberana de Deus “antes mesmo do nascimento do mundo”. Platão estava errado ao extrair analogias das artes humanas, nas quais a techne toma a matéria [hylé] preexistente e impõe uma forma [morphe] sobre ela. Deus criou as idéias antes da matéria particular, criando o ser a partir do não-ser.

A observação científica às vezes ilustra, e às vezes até mesmo confirma, as conclusões alcançadas pela razão. A matemática era a ciência preferida. O valor apologético da geometria, segundo Santa Macrina, reside em sua capacidade de “conduzir-nos passo a passo através das delineações visíveis para as verdades supravisíveis”. Porém, nunca devemos nos esquecer que os números também são parte constituinte da ordem criada e, portanto, não devem ser levados mais a sério do que isso. Os hereges cristãos freqüentemente abusam do conhecimento racional e da teologia natural, extraindo conclusões acerca do divino a partir de analogias numéricas. O caso da Trindade é provavelmente o mais conhecido.

A medicina e a fisiologia também eram muito usadas neste sentido. Os mistérios da digestão humana, por exemplo, eram tomados por São Gregório de Nissa como analogias dos mistérios da mutação do pão e vinho em Corpo e Sangue de Jesus Cristo na Eucaristia. A metafísica da luz também é fartamente utilizada pelos Capadócios [“Luz de Luz”] e muitos outros Santos Padres, embora aqui, assim como no caso da medicina e outras analogias, as devidas correções apofáticas se aplicam obrigatoriamente.

Em suma, é absolutamente essencial que compreendamos que o cosmo não se ordena por sua própria iniciativa ou ananke [necessidade], mas contingencialmente, em função da liberdade e da vontade soberana de Deus. A “palavra” de Deus, a “vontade” de Deus e a “ação” de Deus devem ser compreendidas dentro do contexto apofático, ou seja, de maneira fundamentalmente diferente das aplicações que estes termos possuem nas palavras, vontades e ações humanas. Nunca é demais frisar que a teologia natural dos Capadócios possui dupla função: apologética – encontrar no pensamento clássico as antecipações da verdade revelada – e apontar para além de tudo isso a verdade revelada em si.

7) Espaço, Tempo e Divindade

Os Capadócios afirmavam que não é necessário ter acesso à revelação divina, mas somente “ter um insight, por mais moderado que seja, sobre a natureza das coisas”, para reconhecer que o espaço e o tempo representam “uma espécie de receptáculo” para todas as realidades materiais e visíveis do universo. Portanto, quando alguém cometia o erro de “atribuir lugar às coisas incorpóreas” isso era sinal de “ignorância” e “absurdidade”.

Mas será que a teologia natural e a teologia revelada não cometem esse erro? Por exemplo, o Novo Testamento diz em Filipenses 2:10: “Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra”. Santa Macrina diz que este versículo refere-se na verdade a três estados possíveis para uma natureza racional: o termo “nos céus” refere-se ao estado angélico, “na terra” ao estado humano e “debaixo da terra” às almas das pessoas falecidas puras e simples, temporariamente desligadas de seus corpos até a ressurreição dos corpos.

Ademais, o fato dos cristãos voltarem-se para o Oriente não ocorre porque eles  acreditem que Deus esteja lá, ou apenas lá, mas por causa da honra à profecia de que Cristo, o Verdadeiro Sol, “brotará do Oriente”. Inúmeras outras metáforas têm de ser entendidas desta forma, ou seja, não devem ser tomadas em sentido material: “Pai nosso que estás nos céus” (Mateus 6:9), “porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse” (Colossenses 1:19), os “dias” mencionados em Gênesis etc. São Gregório de Nissa ensinava que a natureza divina transcendente está para além de qualquer limite, infinita portanto, e para além de qualquer espaço e para além “da medida expressa pelo tempo”, pois arche e telos são “termos para coisas que têm extensão”. A natureza divina não está no tempo nem no espaço, esquivando-se de toda limitação e toda forma de definição.

Os Capadócios, como sempre, nunca se esquecem de aderir a apophasis quando falavam das coisas eternas, atemporais. O tempo, assim, também é um elemento criado, ao lado de todas as demais criaturas. Isso não quer dizer que o tempo não tenha um papel a desempenhar no que tange a Providência divina. O tempo é um receptáculo do mundo natural: a Encarnação do Logos e outros eventos divinos mostram que o tempo também faz parte da ordem divina e, portanto, da economia divina. A materialidade e a temporalidade da Encarnação pressupõe a bondade intrínseca da matéria e do tempo, pois são capazes de receber o Logos divino.

8) A imagem de Deus

Santa Macrina se referia ao homem como um “microcosmo”, ou seja, ele se encontra na fronteira entre o mundo inteligível [noetos] e o mundo empírico [aisthetos], feito de uma combinação de alma e corpo. No entanto, diferentemente dos autores clássicos, Santa Macrina não conferia um perfil puramente materialista ao termo “microcosmo”, pois a alma humana transcende sua existência material e a transitoriedade deste mundo, tornando-se algo semelhante à transcendência de Deus sobre o cosmo, desde que tal similaridade confine-se obviamente à teologia apofática. São Gregório de Nissa insistia que se nem a própria essência humana é atingível pela mente humana a minori ad maius a essência divina menos ainda. Assim, se o conhecimento do mundo está para o conhecimento de Deus apofaticamente, o conhecimento da mente humana também deve ser entendido apofaticamente.

Desta mistura de fontes cristãs e clássicas também se engendra a interpretação da postura ereta do homem, que seria uma evidência da dignidade e do status especial do homem em relação às demais criaturas. Assim, a teologia natural e a teologia revelada eram alternadamente invocadas: por exemplo, por um lado, todas as coisas foram produzidas pela essência divina – uma proposição da teologia natural cuja prova seria supérflua por ser inegável a “quem quer que tenha um mínimo de insight sobre as verdades das coisas” –, por outro, a criação da humanidade “de fontes heterogêneas” foi subseqüente à criação das demais coisas – uma informação que vem da teologia revelada. Portanto, nenhuma criatura existente é digna do título de “imagem de Deus”.

No entanto, Santa Macrina foi clara ao fazer a distinção entre “o fato” [hoti] da imagem de Deus ser cognoscível e “o processo como” [pos] se deu a imagem de Deus não ser cognoscível. Assim, o “como” da imagem de Deus é algo conhecido apenas para a própria Verdade. Porém, o “fato” do homem ser a imagem de Deus é o suficiente para o telos da vida humana e para servir de base para exortações morais.

As qualidades humanas repreensíveis, segundo os Capadócios, são principalmente a ira, a covardia e a ganância. As propriedades da natureza divina que são dignas de louvor quando encontradas na alma do homem são pureza, apatheia, bem-aventurança, alienação de todo o mal, amor, inteligência para apreender as coisas pela visão e pela audição e investigá-las. No entanto, conforme São Gregório de Nissa alertara, a metodologia da teologia apofática tem de ser aplicada nestes casos, uma vez que é impossível que “através de analogias ou semelhanças” a doutrina da essência divina seja construída. A teologia apofática significa que Deus não pode ser separado em distintas faculdades, como visão, audição, conhecimento etc., mas que é “ao mesmo tempo visão, audição, conhecimento” e quaisquer outras faculdades divinas e atributos divinos que existam. Mas será Deus apenas uma grande metáfora vazia? São Gregório insiste que não. “Quanto ouvires que a majestade divina é exaltada acima dos céus, que sua glória é inexprimível, sua beleza inefável e sua natureza inacessível, não te desesperes achando que jamais contemplarás o que deseja. Em verdade, está dentro de teu alcance; tu tens em ti o padrão pelo qual apreender o divino..., a semelhança das glórias da própria natureza de Deus, como se fosse a fôrma de entalhar cera”.

Três qualidades humanas são essenciais para compreender a imagem de Deus: razão, livre arbítrio e imortalidade.

A razão é, segundo São Gregório de Nissa, “a maior das faculdades”. Neste caso, a teologia natural e a revelada estão de acordo. Ademais, ambas também estão de acordo no que tange à exortação da alma racional elevar-se acima das paixões e emoções. Platão assim ensinou em Fedro e na República, e São Gregório de Nissa fez o mesmo em De vita Mosis. As emoções são compartilhadas com as criaturas irracionais; porém, é exatamente pelo fato do homem possuir uma alma racional que as paixões sejam consideradas pecaminosas, mas não sejam consideradas vícios no caso das bestas. Por outro lado, quando a razão domina as emoções, estas podem se transformar em aretai: a ira transforma-se em coragem, o terror em precaução, o medo em obediência, o ódio em aversão ao vício, o poder do amor em desejo pelo verdadeiramente belo etc.

A racionalidade leva necessariamente à conclusão que a natureza humana é dotada de liberdade. Em outras palavras, Deus deseja que o exercício da razão seja feito de maneira livre, e não sob a necessidade de um Deus soberano. O livre arbítrio é ensinado pela teologia revelada e pela teologia natural.

Quanto à imortalidade, a teologia natural chega à conclusão de que está presente no homem, pois explica o desejo humano pela imortalidade de Deus. Ademais, como ensina Santa Macrina, a crença na imortalidade é a chave para uma vida de arete, pois sem ela “o prazer do momento” prevaleceria; além disso, a santa também exortara os que estavam à sua volta para temerem a morte. Ela citou as palavras do Apóstolo – Não quero, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como os demais, que não têm esperança (I Tessalonicenses 4:13) – para lembrar que é dever de todos não se entristecer pelos adormecidos, já que isto seria típico da humanidade “que não tem esperança”. Logo em seguida, Santa Macrina deixou claro fazendo uso da parábola do joio e do trigo contada por Jesus Cristo que a teologia revelada é superior e transcende a teologia natural e a especulação filosófica:

O reino dos céus é semelhante ao homem que semeia a boa semente no seu campo; mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou joio no meio do trigo, e retirou-se. E, quando a erva cresceu e frutificou, apareceu também o joio. E os servos do pai de família, indo ter com ele, disseram-lhe: “Senhor, não semeaste tu, no teu campo, boa semente? Por que tem, então, joio?” E ele lhes disse: “Um inimigo é quem fez isso”. E os servos lhe disseram: “Queres pois que vamos arrancá-lo?” Ele, porém, lhes disse: “Não; para que, ao colher o joio, não arranqueis também o trigo com ele. Deixai crescer ambos juntos até à ceifa; e, por ocasião da ceifa, direi aos ceifeiros: ‘Colhei primeiro o joio, e atai-o em molhos para o queimar; mas, o trigo, ajuntai-o no meu celeiro’”. (Mateus 13:24-30).

Referindo-se a Aristóteles de maneira um tanto desdenhosa como “aquele que veio depois de Platão”, mas sem chamá-lo pelo nome, ela rejeitou sua doutrina da alma mortal. A definição da imagem de Deus serve para enaltecer a diferença metafísica fundamental entre o homem feito à imagem e o Arquétipo em si.

9) A fonte de todo o bem

Todos os Capadócios aspiraram a articular uma teologia natural, que a ela se referiam pela expressão genérica “filosofia moral e natural”. O primeiro princípio da teologia natural de São Gregório de Nissa é identificar “o Deus do universo” como sendo “o único absoluto, o primordial, a pureza e kalon kai agathon”. Porém, tal identidade deve ser prefaciada com o devido qualificador apofático: não há bem que não seja inerente à natureza divina, ou seja, ela não necessita de nenhum tipo de aperfeiçoamento.

O intuito da teologia apofática não é desqualificar as investigações especulativas, mas justificá-las. “Nem mesmo a admiração pela beleza dos céus, pelos deslumbrantes raios solares, por todo e qualquer fenômeno, nada disso cessará. A beleza assim notada será usada como uma mão que conduz ao amor à beleza celestial, cuja glória os céus e o firmamento declaram e cujo mistério toda a criação entoa”, escreve São Gregório de Nissa.

Em tom pesaroso, São Gregório notou que “não é fácil – na verdade, é quase impossível – preferir o bem invisível aos prazeres visíveis desta vida”. A inclinação congênere ao desejo de contemplar o bem é o “horror natural ao mal”. A razão para esta “aversão natural” é que embora o desejo natural pelo bem seja um desejo pelo ser e pela realidade, “não há realidade no mal, exceto como privação do bem”. O mal não pode vir de Deus. Deus às vezes permite que o mal alcance certo “escopo” na história humana, o que de certa forma é uma negação de sua irrealidade. Santa Macrina expressou este paradoxo eloqüentemente: “o mal possui existência em sua não-existência”. A realidade existencial do mal reside na própria ausência de realidade metafísica.

As aretai clássicas da “boa ordem e decência” também são consideradas virtudes cristãs. O respeito aos pais, por exemplo, é uma exortação comum entre os clássicos e os cristãos. No entanto, essa correspondência não se verifica em todo o campo da moral. Os epicureanos, por exemplo, achavam que a moral não passava de uma palavra. A arete clássica não é a genuína arete: “A união da justiça com a sabedoria é o que constitui a arete, pois, separadas e tomadas isoladamente, justiça não é bondade”, e também não a seria em Deus.

Assim, o conhecimento da moralidade natural, a exemplo da teologia natural, baseia-se “nos fatos apreendidos pela experiência sensorial”. Todavia, a vida da genuína arete é o caminho da perfeição e, enquanto tal, requer a própria “visão de Deus”. A idéia de beleza, a idéia de grandeza etc. são elementos essenciais à teologia natural, mas são inadequadas: toda idéia divorciada de exemplos vivos e concretos são constructos artificiais, são “estátuas mortas”. Não há piedade que consista apenas de doutrinas.

No que tange sua doutrina política e social, os Capadócios discordavam da idéia aristotélica de que os membros da raça humana são naturalmente e permanentemente segregados em categorias. As diferenças de aptidão existem, porém não se tratam de predeterminações, mas a razão é que as produz. “Não é a natureza que divide a raça humana em servos e mestres, mas o poder. [...] Quem quer que esteja submisso a ti por costume ou lei é apesar disso igual a ti em dignidade natural. É um mandamento do Senhor do universo que somente a natureza irracional dos animais e das coisas inanimadas seja naturalmente inferior à natureza humana, pois nesta todos foram criados iguais”.

O patriotismo e o dever cívico são virtudes, pois “assim como é um dever religioso honrar o pai e a mãe”, o país é “a mão comum a todos”. Quanto ao governante, ele deve tomar suas decisões baseado em princípios naturais e racionais: a paz e a ordem são os princípios maiores, segundo São Gregório, o Teólogo.

10) De tyche a telos

Disse Santa Macrina: “Se a vida começa por causa de tyche [sorte, acaso], todo seu conteúdo torna-se um capítulo dos acidentes de tyche”. É a tirania da sorte e do acaso. “O mundo não foi concebido por tyche e sem razão, mas para um fim útil e de grande proveito para todos os seres. [...] O mundo é uma escola para as almas racionais exercitarem-se, o campo de treinamento onde aprendem a conhecer Deus”, escreveu São Basílio. Estas conclusões podem ser alcançadas pela teologia natural, e não apenas pela teologia revelada. Qualquer um que perceba que Deus é razão, sabedoria, virtude e verdade em pessoa poderá concluir que tyche não está no comando do cosmo.

São Gregório, o Teólogo, considerava o tyche aleatório e o ananke determinístico do destino e das estrelas como os principais rivais da doutrina cristã de Deus e da teleologia da providência divina. São Gregório de Nissa também condenava os “malabarismos astrológicos”: “Deus não governa com violência, Ele não é um ditador tirânico, nem governa pela força intimidatória da ananke”.

Apesar disso, os Capadócios identificavam nas teorias determinísticas uma intuição válida: por trás das mudanças e acasos da vida mortal há um “objetivo” para o qual todos os eventos concorrem. Este objetivo é o “telos útil” embutido na criação e na ordem natural pela “razão inteligente que preside sobre a ordem das coisas visíveis”. Este telos nada mais é do que a participação em Deus.

A marcha da história humana avança indubitavelmente, embora instavelmente, em direção ao objetivo final: na criação, insistia São Basílio, nada existe sem razão. Mesmo nos eventos mais trágicos, como mortes de crianças, há “um plano que porta a marca da sabedoria divina”. Santa Macrina celebrava a techne de Deus, a “regularidade e ordem de acordo com o plano artístico do autor”. Porém, “as razões por trás dos eventos ordenados por Deus” estão para além da mente humana, baseando-se em “razões incompreensíveis ao entendimento humano”. No entanto, mesmo na presença de questões inefáveis, o exercício do julgamento humano sobre tudo e, portanto, especular sobre quais seriam os planos e objetivos da providência de Deus, é um exercício permissível. Isto não anula a presença nos seres humanos de uma vontade autenticamente livre.

O verdadeiro teste das doutrinas acerca da providência divina reside nas experiências da vida. Santa Macrina usou a morte de seu irmão como uma ocasião para uma “filosofia sublime”, versando sobre a “economia divina oculta nos desastres”. Mas as almas menos heróicas que Santa Macrina (a maioria das almas, pagãs ou cristãs) tendem a encarar eventos como desastres agrícolas como ameaças à sua fé.

Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. (Filipenses 3:13-14). Isso significa que é impossível “elevar-se a Deus exceto inclinando-se perpetuamente para as coisas do alto”. Este desejo incessante dá dinamismo à vida. Os apetites sexuais e alimentares alcançam certa saciedade de prazer para então começar a definhar: a vida em Deus, contudo, uma vez que a arete estabelece-se firmemente, não se circunscreve pelo tempo nem é limitada pela saciedade.

Parte B: A função dogmática da teologia natural

11) Teologia cristã e cultura clássica

Segundo os Capadócios, a maior glória de Constantinopla não era sua grandeza, seu poder militar ou sua riqueza, mas “a integridade de suas doutrinas [...] pois nada é mais magnífico aos olhos de Deus do que a doutrina pura e uma alma perfeita em todos os dogmas da verdade” (São Gregório, o Teólogo). Assim, o maior triunfo da teologia do século IV não foi apenas a apropriação da cultura clássica, mas a vitória da “doutrina pura” e dos “dogmas da verdade”.

A teologia, portanto, não é objeto apenas de estudos acadêmicos, mas de uma vida dedicada à contemplação espiritual.  Os Capadócios condenavam aqueles que abandonavam a fé em prol do conhecimento acadêmico. São Basílio, por exemplo, acusava as doutrinas pagãs de corromperem a pureza das doutrinas da fé cristã. No entanto, ele também admitia que os cristãos precisam de todos os “suprimentos de viagem” de que necessitassem para a jornada rumo ao Céu e, portanto, deveriam voltar-se para todas as fontes possivelmente benéficas neste sentido, o que incluía os autores clássicos, seus métodos lógicos, sua retórica, sua literatura e filosofia. São Gregório Nazianzo concordava que desprezar a educação clássica seria “mau julgamento” por parte dos cristãos.

Os contrastes entre as doutrinas clássicas e as cristãs faziam parte do plano apologético dos Padres Capadócios; porém, a educação clássica possui outra e mais importante função: ajudar a apresentar e explicar a doutrina cristã.

Todavia, ocorre que a filosofia precisa reconhecer que sem a “autêntica devoção religiosa” ela é incompleta (ver A filosofia esotérica). É esta devoção que produz os “verdadeiros amantes da sabedoria e de Deus”. Neste sentido, a filosofia é idêntica ao conhecimento de Deus. Na Igreja, segundo São Gregório de Nissa, há “milhares de pessoas favorecidas com o dom divino da sophia”, ou seja, com habilidade filosófica. Muitos destes cristãos, pessoas comuns e monges, eram filosoficamente superiores a Platão e Aristóteles.

A filosofia pode ser “teórica” ou “prática”, segundo Aristóteles. De fato, a filosofia cristã teórica pode ser vislumbrada em textos como “A Exposição Exata do Cântico dos Cânticos”, de São Gregório de Nissa, a Sabedoria de Salomão, o Livro de Eclesiastes etc. A filosofia cristã prática reside sobretudo na prática da disciplina cristã, especialmente as disciplinas ascéticas da virgindade e da temperança. Filosofia é, do ponto de vista cristão, sinônimo de teologia.

12) A função dogmática da teologia natural

Apesar das muitas declarações de desapreço pela filosofia natural, fato é que os Capadócios jamais manifestaram desprezo completo por ela. Em verdade, São Gregório de Nissa faz uso de Êxodo 12:35-36 para ilustrar o uso do helenismo como “compensação”: Fizeram, pois, os filhos de Israel conforme à palavra de Moisés, e pediram aos egípcios jóias de prata, e jóias de ouro, e roupas. E o Senhor deu ao povo graça aos olhos dos egípcios, e estes lhe davam o que pediam; e despojaram aos egípcios.

Ora, quando os Capadócios interpretam Deus, o mundo e o homem como tópicos da dogmática ortodoxa, eles podiam e de fato tomavam como pré-requisitos óbvios as visões acerca de Deus, do mundo e do homem herdadas da cultura clássica. Evidentemente, a autoridade maior cabe às Escrituras. Na doutrina de Deus, por exemplo, a Encarnação do Logos não veio para suplementar, mas para corrigir as pressuposições existentes sobre a natureza divina.

Todos os Capadócios ensinavam a necessidade de se partir dos primeiros princípios para então se atingir conclusões válidas. “Se os primeiros princípios permanecerem não-provados, é inútil deter-se nos princípios secundários” (São Gregório de Nissa). A característica principal das heresias é justamente partir de premissas falsas e, mediante passos perfeitamente lógicos, atingir conclusões perfeitamente falsas. Por exemplo, a doutrina pagã da metempsicose (ou “transmigração das almas”) tem por premissa a doutrina da preexistência das almas. Para derrubar a doutrina trinitária, muitos hereges lançam mão desta aparente verdade autoevidente: “as coisas de mesma ousia são contadas juntas, mas coisas que não são homoousios são contadas uma por uma”. Ora, se Pai, Filho e Espírito são contados um por um, separadamente, então se conclui (falsamente) que eles não podem ser de mesma ousia. Ocorre, porém, que a premissa é falsa: “a função do número é apenas expressar a quantidade de tudo o que está incluído nele, e não a natureza das coisas”.

Em suma, todas as falácias teológicas, por mais que suas premissas sejam “válidas”, “universais” e “úteis”, são necessariamente inadequadas para o correto entendimento de Deus. Assim, chegamos a uma conclusão importante: a teologia natural é suficiente em sua função apologética, mas insuficiente em sua função dogmática/explicativa. O conhecimento do Alto não apenas confirma o conhecimento natural, mas o suplementa, corrige e transcende. Ademais, a linguagem apofática é a chave para a resolução da aparente contradição entre a negação paradóxica (típica da teologia revelada) e a rejeição da contradição lógica (típica da teologia natural).

13) O léxico da transcendência

Os estudantes da teologia dos Capadócios não devem imaginar que a linguagem apofática aplica-se apenas à cultura clássica ou à teologia heterodoxa, mas não à teologia ortodoxa. O raciocínio válido tanto para a teologia natural quanto para a teologia ortodoxa é partir dos princípios gerais da teologia negativa e, por implicações logicamente necessárias, chegar aos vários corolários doutrinais.

No entanto, se a teologia apofática explica a teologia, como ela explica a economia divina, ou seja, como ela explica doutrinas como a Encarnação, a morada do Espírito no coração humano, a visão de Deus etc.? Em suma, a explicação dos Capadócios é que os títulos apofáticos informam apenas a privação dos dados óbvios da experiência sensório-perceptual humana, mas "eles não interpretam em si e por si a verdadeira natureza daquilo que foi removido destas condições abomináveis" (São Gregório de Nissa).

Isso não significa que a linguagem empregada acerca de Deus seja desimportante, e que apenas a atitude perante Deus é que importe. A linguagem catafática é, sim, importante, pois ela "aproxima" ou "aponta" para Deus, mas somente quando cuidadosamente controlada pela linguagem apofática. Somente assim a linguagem torna-se "símbolo" da realidade transcendente, passando a conter um sentido mais profundo do que o literal. O fato de não haver um nome que designe o Inominável é responsável pela existência de inúmeros nomes para Deus, mas todos entendidos sob o signo apofático. A fonte desta diversidade de nomes divinos é a diversidade das "ações" (energeiai) de Deus. E disse Manoá ao anjo do Senhor: Qual é o teu nome, para que, quando se cumprir a tua palavra, te honremos? E o anjo do Senhor lhe disse: Por que perguntas assim pelo meu nome, visto que é maravilhoso? (Juízes 13:17-18). "Maravilhoso" não é o nome de Deus em essência, mas uma referência à "maravilha inexprimivelmente despertada em nossos corações acerca dela". A partir deste senso de maravilha é que surgem os "nomes teológicos" de Deus, como sábio, poderoso, bom, santo, eterno etc.

Há três passagens muito importantes na Bíblia que são tomadas como a revelação da essência de Deus mediante nomes divinos: Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém. (Mateus 28:19-20); Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai. (Filipenses 2:6-11); E disse Deus a Moisés: EU SOU AQUELE QUE É. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós. (Êxodo 3:14).

A fórmula batismal ensina que os cristãos devem aplicar igualmente a Pai, Filho e Espírito "o nome que a inteligência humana conseguir encontrar para indicar a transcendência divina mediante esforços piedosos". Estes nomes -- Pai, Filho, Espírito -- não são nomes da ousia, mas nomes da relação de Deus com os homens e das relações mútuas das hipóstases divinas. O "nome sobre todo o nome" é evidentemente um paradoxo para a inominabilidade de Deus. Quanto à revelação dada a Moisés, a palavra "é" ou "ser" significa precisamente que somente Deus "é", afirmando categoricamente a distinção insolúvel entre o Incriado e o criado. Estes paradoxos são bem simbolizados pela sarça ardente, que ardia no fogo, mas não se consumia (Êxodo 3:2).

14) A fé é a plenitude da razão

As afirmações positivas não apenas eram permitidas, mas necessárias. Santa Macrina, por exemplo, citou trechos do Novo Testamento no qual o Apóstolo Paulo faz uso de ambos os métodos catafático e apofático: A fé é a substância das coisas que se esperam, e a evidência das coisas que se não vêem (Hebreus 11:1); Esse, pois, que vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio (Atos 17:23).

No entanto, São Gregório de Nissa diz que “para a fé, o divino é precisamente aquilo que o pensamento não alcança”. São Gregório Nazianzo, em uma de seus discursos, diz: “Vós, filósofos, vós, trovoadas da terra! Faltam-vos até mesmo o brilho que as pequenas faíscas da verdade poderiam vos dar”.

A maior das igrejas do Cristianismo Oriental é a Hagia Sophia, não a “Hagios Logos”. O rei Salomão era tido como homem de grande Sophia, mas Jesus Cristo é a Sophia em pessoa. A fé põe a razão humana em contato com as “coisas celestiais” ao ensiná-la a “reconhecer as coisas que superam a razão”. É exatamente isto que significa a definição axiomática de fé de são Gregório Nazianzo: “Fé é a plenitude do raciocínio”.

Uma das habilidades dos Capadócios era empreender análises filológicas, seja da Escritura seja de Homero. São Gregório de Nissa nunca se cansava de alertar que a interpretação literal do texto bíblico é uma postura altamente perigosa. Ocorre que “a intenção divina freqüentemente se oculta por detrás das palavras da Escritura, como em um véu, pois as representações jurídicas e as narrativas históricas são depositadas sobre as verdades a serem contempladas pela mente. [...] Freqüentemente, as interpretações mais óbvias, se despidas de seu sentido mais profundo, engendrarão o efeito contrário apontado pelo Espírito”. O método correto para a interpretação dos textos é “tomar as palavras alegoricamente, e penetrar no sentido interior da história, mas sem perder de vista a verdade dos fatos” – ou seja, um não deve ser considerado sem o outro: a história bíblica e a alegoria bíblica são interdependentes. Evidentemente, este método não deve ser aplicado igualmente e indiscriminadamente a toda a Escritura.

Como as alegorias pertencem a um “círculo fechado”, São Gregório orientava seus ouvintes a “não transmitir [as alegorias] aos de fora” e “a maior parte de nossos mistérios não deve ser transmitida àqueles que estão de fora”. Ademais, a Ortodoxia, ainda segundo São Gregório, para manter-se fiel às Escrituras, tem de recorrer a algo mais do que apenas as Escrituras: as tradições da Igreja, “a nós entregues ‘oculta em mistério’ pela tradição dos Apóstolos” (São Basílio).

Em suma, os Capadócios não encaravam a teologia natural e a tradição religiosa como instâncias contrárias, mas mutuamente complementares. Porém, não há estudo bíblico que baste para a correta compreensão das Escrituras: a fé e a contemplação espiritual são indispensáveis.

15) O Um e o Três

A apophasis também vale para a doutrina da Trindade. Assim, o Filho compartilha plenamente a transcendência do Pai, pois “não há afinidade entre o mundo criado e as coisas que a doutrina ortodoxa assume acerca de Deus”. Similarmente, o Espírito é um ser plenamente transcendente, situando-se para além da compreensão da mente humana. A “geração do Filho”, “processão do Espírito” e a comunhão e a distinção no interior da Trindade são processos inefáveis, inconcebíveis e transcendentes, bem como a harmonia e a liberdade de conflito compartilhadas pelas hipóstases. “Todas as doutrinas acerca da natureza inefável são apenas uma cópia do ouro, e não o ouro em si” (São Gregório de Nissa).

Os gregos cometiam o erro de colocar a criação na eternidade (quando assumem que a matéria possui existência eterna à parte de Deus), enquanto os hereges põem a Trindade no tempo (quando procuram projetar nela relações naturais).

Outro conceito que faz parte da Trindade é o da causalidade. São Gregório de Nissa explica que “a única maneira de distinguir [uma hipóstase da Trindade] de outra é compreender que uma [o Pai] é a causa e a outra [o Filho] depende da causa”. No entanto, “causa” só deve ser legitimamente empregada apofaticamente, ou seja, apenas metaforicamente e “analogicamente” para descrever a realidade divina.

Ser “um” no que tange a Trindade, segundo São Gregório, o Teólogo, é ser um em ousia. Deus não é um em número, mas em ousia. São Basílio explica: “O que quero dizer com isso é o seguinte. Dizemos que o mundo é um em número, mas não um em natureza, nem mesmo simples; pois dividimos o mundo em seus stoicheia constituintes, fogo, água, ar e terra”. A unidade de Deus é exatamente o contrário: unicidade em natureza, mas não em número. A Ortodoxia cristã é cega à “aritmética de ignorantes”, mas prega um monoteísmo que não é limitado por uma prosopon (“pessoa”), no qual não há distinção numérica nem cisão de ousia. Assim é a doutrina metafísica do Cristianismo: a rejeição do politeísmo e a afirmação da Trindade contra o “monoteísmo aritmético”.

Pelikan observa, ademais, que os três Padres Capadócios concordavam em condenar o Filioque, embora este tema não tenha sido especialmente preocupante para eles. No entanto, a partir de suas obras, fica evidente que faziam a devida distinção entre a teologia da Trindade e a economia da Trindade no mundo. Teologicamente, o Espírito procede do Pai; economicamente, o Espírito procede do Pai através do Filho.

16) O mundo é uma criação contingente

O trecho inicial do Credo niceno-constantinopolitano é uma declaração sucinta dos princípios metafísicos e cosmológicos dos Capadócios: “Creio em um só Deus, Pai onipotente, criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Os Capadócios não defendiam ou pleiteavam teorias cosmológico-filosóficas ou cosmovisões científicas.

A conclusão ortodoxa é traçar uma linha divisória metafísica entre o Logos e as criaturas. Enquanto Logos Criador, o Filho de Deus está para o Pai assim como o verbo está para a mente, “existindo inerentemente em todas as coisas” (São Gregório Nazianzo). O princípio apofático, no entanto, estabelece que Deus não fala à moda humana. A existência do Espírito, a exemplo do Pai e do Filho, também pode ser intuída a partir da teologia natural grega; por exemplo, a “mente do universo” de Platão (Fedro 97c-d).

A harmonia e a afinidade das coisas criadas é conseqüência direta do fato de “terem sido igualmente procedido do não-ser para o ser”. No entanto, essa harmonia não deve servir de impedância à doutrina cosmológica central dos Capadócios: a contingência do mundo criado. Um dos fundamentos desta doutrina encontra-se, curiosamente, no conceito cristão de milagre. Os milagres são fruto da soberania da natureza divina sobre o mundo criado contingente. “Tu és incapaz de crer no milagre? Eu simpatizo com tua incredulidade. Pois na tua própria confissão de que o que dissemos transcende a crença, tu reconheces que os milagres transcendem a natureza” (São Gregório de Nissa). Em Deus não há diferença entre vontade e ação; e porque “Deus fez todas as coisas por um ato de vontade”, a vontade de Deus permanece soberana sobre elas e elas, por sua vez, permanecem contingentes. Nesta economia divina, a Encarnação do Logos é uma evidência ainda maior da soberania divina do que os milagres.

Portanto, o Logos é a natureza das coisas criadas, ou seja, “a palavra falada [phoné] de Deus faz a natureza [de uma coisa]”. Tudo o que hoje existe sobre a terra continua existindo por causa da transmissão de sua semente desde a primeira criação. Isso acontece porque a techne e o poder divinos foram implantados na própria natureza das coisas criadas. Porém, nada disso implica em panteísmo, pois, em total contraste com a eternidade da Trindade, não há nada que impeça que a criação, totalmente distinta do Criador, tenha uma arche própria. O conhecimento e a soberania de Deus estende-se não apenas ao cosmo como um todo, mas a todas as minúsculas partículas que constituem o cosmo. “Os movimentos da vontade de Deus tornam-se fatos a qualquer momento que Deus desejar, e a intenção torna-se imediatamente manifestada na natureza” (Santa Macrina). O fundamento metafísico deste estado de coisas é que “os olhos de toda a criação estejam voltados para Ele [Jesus Cristo]; Ele é o centro e a harmonia da criação”. A propósito, os anjos também fazem parte de “todas as coisas visíveis e invisíveis” que foram criadas por Deus.

17) A economia da salvação

Quando Cristo disse a seus discípulos Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (João 20:17), a distinção entre teologia e economia torna-se fundamental para compreender Suas palavras: “Deus” para aquele que é visível, “Pai” para aquele que é o Logos.

A Encarnação do Cristo obrigou os Padres Capadócios a voltarem sua atenção da eternidade para a temporalidade. Em suma, foi uma metamorphosis fundamental da teologia natural. A teologia natural, enquanto teologia, sempre teve de lidar com a eternidade; mas, agora, a teologia natural, enquanto economia, tem de lidar com a temporalidade.

Há duas teorias expiatórias que são contrárias à interpretação dos Capadócios da economia da salvação: a famosa teoria ocidental anselmiana da “satisfação legal” e a teoria de que Cristo poderia ter efetivado a economia da cruz mediante uma anistia tipo fiat. A primeira é “humilhante”, a segunda foi rejeitada in limine. Mas por que Cristo disse Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (Mateus 27:46) Somente as pessoas “de pensamento desordenado” seriam capazes de atribuir sentimentos à Divindade em função da Encarnação e Paixão. Toda e qualquer “mudança” ou “devir” que afete o Filho deve ser atribuído à sua humanidade, e não à sua divindade. Porque eu, o Senhor, não mudo (Malaquias 3:6); qualquer alternativa a esta ontologia é blasfêmia: o Filho de Deus é digno de ser chamado de Filho do Homem, não por causa do que era, mas por causa daquilo que assumiu. (São Gregório de Nissa)

Deus se fez homem por causa da revolta da humanidade contra Deus, da escravidão ao pecado, da alienação humana da vida eterna e verdadeira. O Logos assumiu na Encarnação, e portanto salvou, precisamente os três componentes da imagem de Deus no homem: racionalidade, livre arbítrio e imortalidade. Todavia, em última instância, a Encarnação do Logos é um milagre que transcende não apenas a realização humana, mas a compreensão humana.

18) A metamorphosis da natureza humana

“Da primeira vez, [Deus Logos] tomou o pó da terra e formou a humanidade; desta vez, Ele tomou o pó da Virgem e não fez somente a humanidade, mas formou a humanidade em torno de Si próprio. Da primeira vez, Ele criou; desta vez, Ele foi criado. Da primeira vez, o Logos fez a carne; desta vez, o Logos se fez carne a fim de mudar nossa carne em espírito, tornando-Se participante conosco na carne e no sangue. Desta nova ordem em Cristo, portanto, a qual Ele mesmo iniciou, Ele é chamado de Primogênito”. (São Gregório de Nissa). “[Cristo] comunica uma segunda comunidade [com Deus] muito mais maravilhosa do que a primeira. Pois outrora Ele comunicou a melhor natureza (à humanidade], enquanto agora Ele mesmo participa na pior natureza [da humanidade]. Isto é mais divino do que a ação anterior, mais sublime aos olhos de todos aqueles que a entendem”. (São Gregório, o Teólogo)

As três qualidades da imagem de Deus são elaboradas e refinadas agora, transformando-se em ressurreição (imortalidade), apatheia (livre arbítrio) e iluminação da razão (racionalidade).

A ressurreição é a apocatastasis (restauração) da natureza humana à sua forma original. O conceito de apocatastasis deriva muito provavelmente de Platão (Symposium 193d). A combinação de argumentos filosóficos, paralelos científicos e analogias artísticas constituem, na opinião de Santa Macrina, “uma defesa excelente da fé na ressurreição”. A idéia é levar os oponentes da ressurreição a refletirem acerca da possibilidade de átomos se aglutinarem e formarem o mesmo ser humano de antes. Um dos argumentos dos Capadócios é que o ser humano não é puramente constituído de “fluxo e mudança”, já que uma natureza sem algum tipo de continuidade seria incompreensível. Tal combinação de fluxo e continuidade constitui uma das bases dos Capadócios em favor da ressurreição.

A verdadeira liberdade e autodeterminação é a liberdade das paixões, a liberdade da razão exercer controle sobre o prazer. Um dos elementos da paixão – conforme o uso cotidiano desta palavra denota – é a sexualidade. E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou (Gênesis 1:27). São Gregório de Nissa explica que, no princípio, Deus não criou a humanidade unida à própria essência da natureza divina, mas a criou dupla: à imagem de Deus e dividida segundo a distinção entre homem e mulher. Contudo, o elemento divino, racional e inteligente não admite a distinção entre homem e mulher: esta pertence ao elemento “irracional, à estrutura e forma corporais”. Trata-se, aqui também, de um axioma da teologia natural: a superioridade da alma racional sobre as paixões, a superioridade do nous, a “faculdade superior da humanidade”, segundo os gregos clássicos.

19) A adoração das criaturas racionais

Ambos São Gregórios afirmam que o mistério eucarístico é o “sacrifício exterior, o antítipo dos grandes mistérios”, o que denota uma ligação indissolúvel entre os sacramentos da Igreja e a economia histórica da salvação nos eventos da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Estes eventos da economia divina são precisamente os grandes mistérios, dos quais os mistérios sacramentais como a eucaristia, o batismo e demais ofícios litúrgicos exteriores derivam sua eficácia enquanto atítipos. Por extensão, os sacerdotes e leigos devem tornar suas “mãos perfeitas para as santas obras”, ou seja, a adoração não deve ser meramente exterior, mas acompanhada de santidade interior.

Os Capadócios fizeram uso de vários termos da cultura grega clássica ao explicarem os mistérios sacramentais, como transelementação [metastoicheiosis] e transfiguração [metamorphosis]. Embora os mistérios gregos fossem considerados “idolomania” [eidolomania], isso não os impediu que domesticarem o conceito grego de stoicheia e morphe. Por sua vez, a palavra adoração [proskynesis], quando aplicada a Deus, sempre carrega certa acepção apofática: os mistérios interiores da Trindade devem ser honrados com um “silêncio reverencial” (São Gregório de Nissa); a natureza divina é inescrutável, mas falar dela é possível através da adoração silenciosa do inefável e do inacessível.

20) A vida do aeon futuro

A vida do aeon futuro é o ápice da relação entre teologia natural e revelada. São Gregório de Nazianzo escreve que a unidade da raça humana é descrita no Evangelho, como em Mateus 5:45: Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Há somente um céu e uma distribuição uniforme e igual da “chuva”. Cristo é o único juiz, e toda a humanidade estará diante dEle para ser julgada; o corolário deste raciocínio é a idéia monoteísta, expressada vagamente na filosofia teológica de Platão (Timeu 39c-41a). Deus não foi conhecido apenas na Judéia, mas entre caldeus, egípcios e babilônios, sobretudo entre os gregos.

Uma das grandes críticas dos Capadócios contra a filosofia grega é a falta de uma doutrina que dê conta da direção em que a natureza e a história se dirigem. As doutrinas típicas da teologia natural da ananke e da tyche são inaceitáveis. Por outro lado, doutrinas excessivamente descritivas e catafáticas fracassam ao procurarem descrever aquilo que está para além de qualquer descrição. A promessa do Paraíso só pode ser descrita em termos apofáticos, e somente por aqueles que atingiram o “terceiro céu”. Platão foi claro (Fedro 240c) ao atribuir saciedade somente aos prazeres terrenos, enquanto a vida de arete não encontra limites ou saciedade.

O universo, explica Santa Macrina, está destinada a “ser transformado em outro estado”. Este é o escopo de todas as economias do universo, que são guiadas pela sophia e pela techne de seu Autor. No entanto, ninguém sabe o propósito da vontade divina, ninguém sabe como exatamente o universo é ordenado por Ele. Todos os eventos da história humana são instrumentos da vontade divina para com a raça humana. O mundo é, em verdade, “uma escola para as almas racionais exercitarem-se, o campo de treinamento para aprenderem a conhecer Deus”. Contudo, somente no último evento da história humana, quando o ciclo histórico finalmente se completar, o cosmo fará sentido por completo.