11 de agosto de 2010

A influência das belas artes nas Grandes Idéias


O objetivo de Mortimer J. Adler em Art, the Arts, and the Great Ideas é responder a seguinte pergunta: a música, a pintura, o balé, enfim, todas as artes que não estejam associadas com palavras, podem ensinar ou adicionar conhecimento às Grandes Idéias?

A título de introdução, Adler lembra que, no livro VI de Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue cinco virtudes intelectuais:

A) Saber para saber (virtudes especulativas)

1) Noûs (insight)
2) Episteme (em latim, scientia)
3) Sophia (sabedoria especulativa ou filosófica)

B) Saber para agir (virtudes práticas)

4) Phronesis (prudência ou sabedoria prática) -> praxis (conduta moral ou política)
5) Techné (arte, técnica, habilidade -> poiesis (fazer algo, produzir, desempenhar)

Na esfera da poiesis, que é a que nos interessa, Platão distingue entre artes cooperativas (agricultor, médico, professor) e artes operativas (todas as demais). Ainda na esfera da poiesis, Aristóteles distingue entre as artes liberais (operadas com o intelecto, ou seja, o artista opera com símbolos e pode existir em qualquer lugar) e as artes servis (operada com materiais e só existe em um lugar). Neste caso, observa-se que há uma diferença ontológica, e não social, entre estas artes.

Há ainda outra distinção identificada por Aristóteles: (1) narrativa poética, que opera na região do provável e do possível e, portanto, não é exclusivista (verdade poética) e (2) narrativa histórica, que opera na região do factual e do actual e, portanto, é exclusivista (verdade lógica).

Em seguida, Adler afirma que a intenção do artista e de quem contempla a obra de arte não têm relevância para as belas-artes. Isso significa que por mais que o artista afirme que a obra de arte se conforma à idéia criativa que está em sua mente, ele terá manifestado uma verdade ontológica entre a obra de arte e si próprio. Ocorre que nosso interesse reside apenas na verdade lógica (factual) e na verdade poética (possível) das obras de arte, pois somente elas podem conter alguma instrução útil às Grandes Idéias.

Adler continua sua explanação relembrando o leitor sua doutrina dos signos. Há dois tipos de signos: os signos verbais (palavras) e os não-verbais. As palavras podem ser designadoras ou signais. Enquanto designadoras, elas dão nome às coisas; enquanto signais, elas elicitam comportamentos (como a palavra "fogo", quando gritada no interior de um cinema lotado, faz todos saírem correndo). Os signos não-verbais, por sua vez, também podem ser designadores (as representações simbólicas de banheiro masculino e feminino, por exemplo) ou signais (como as nuvens no céu, que signalizam chuva iminente).

A notação, por sua vez, é uma marca visível ou um som audível. As notações, embora perceptíveis, não possuem em si nenhum significado. Então, cabe a pergunta: de onde vem o significado que transforma uma notação em uma palavra? As palavras designam objetos, assim como trazem à mente determinado conteúdo. Elas funcionam, portanto, como signos instrumentais. No entanto, existem signos designativos cuja única função é de significação. São os signos formais. Assim, os signos instrumentais são objetos que apreendemos, mas os signos formais não: eles são os conteúdos mentais cognitivos, são os atos da imaginação (ou "imaginação intelectual"). As palavras que empregamos só têm significado como signos instrumentais quando se associam a signos formais.

Ora, os atos mentais são apreensões de percepções, memórias e imaginações, que combinam a ação das potências sensitivas e intelectivas, ou então são atos puramente intelectivos. Assim sendo, as obras de arte nunca carregam pensamentos puramente intelectuais, pois sempre dependem das potências sensitivas. A exceção a esta regra cabe à literatura, que pode perfeitamente carregar conceitos puramente intelectuais.

Por fim, cabe lembrar que as Grandes Idéias não fazem parte do conteúdo cognitivo de nenhuma mente humana, ou seja, elas não são memórias, nem imaginações, nem constructos teóricos, nem os conceitos que estão em nossas mentes. Elas também não são signos formais, ou seja, também não são as intenções mentais que são significados e que servem para colocar os objetos significados diante da mente. Em suma, elas não são id quo (aquilo por meio do que) pensamos, mas são id quod (aquilo que) pensamos: são, pois, objetos de pensamento.

As obras musicais e as obras de arte visuais não contribuem significativamente para as Grandes Idéias, pois o meio em que são produzidas é próprio dos sentidos. Sua linguagem consiste em símbolos não-verbais, e por isso atuam no pensamento perceptual, e não no pensamento conceitual.

A conclusão é que estas obras de arte têm função emocional, sentimental, pois impactam e influenciam a imaginação. É somente neste sentido, deveras limitado, que elas influenciam as Grandes Idéias. Claro que, além disso, elas também transmitem prazer estético. As obras literárias, antes de nos mover emocionalmente, têm de ser interpretadas intelectualmente. Por isso, no caso delas, podem, sim, contribuir para as Grandes Idéias.

Ilustração: trecho inicial da Sinfonia nº 36 em Dó Maior, K. 425, "Linz", de Wolfgang Amadeus Mozart.

Dez erros filosóficos


Em Ten Philosophical Mistakes, Mortimer J. Adler apresenta os assuntos mais importantes nos quais a filosofia moderna comete erros crassos. Lembre-se que os livros de Adler, por serem muito introdutórios e "mastigadinhos", são também necessariamente superficiais. São úteis como ponto de partida, mas só para isso.

Erro nº1: subjetivismo

O que você comeu ontem no almoço? Digamos que você tenha pensado em arroz e feijão. Este arroz e feijão existia na realidade, ou o que você lembrou era apenas a imagem daquilo que surgiu em sua mente como arroz e feijão? Em outras palavras, o que surgiu em sua mente é a única realidade a qual você tem acesso, ou existe uma outra realidade para a qual aquilo que lhe surgiu na mente aponta?

Instintivamente, sabemos que existiu um arroz e feijão à parte de sua mente, e que sua memória do arroz e feijão de ontem pode corresponder mais ou menos perfeitamente ao arroz e feijão "de verdade".

Mas pense de novo. Como você sabe que há algo para além de suas sensações, percepções, memórias e imaginações? Como você sabe que o conteúdo de sua mente possui uma relação com as coisas na realidade?

Estas dúvidas, segundo Adler, são fruto de um common sense deteurpado. Adler acredita que um common sense normal, íntegro, jamais duvidaria da existência real das coisas.

Adler explica que, para John Locke, as idéias são totalmente subjetivas. Eu tenho as minhas idéias, você tem as suas idéias. Mas Locke falhou ao não distinguir idéias de sensações, sentimentos e emoções. De fato, as percepções, memórias, imaginações e conceitos são idéias. No entanto, as emoções, sentimentos e sensações corporais não são idéias, pois as apreendemos diretamente. Além disso, outro erro de Locke era acreditar que todas as idéias são aquilo que apreendemos quando estamos conscientes. A visão oposta, defendida por Adler, é de que as idéias cognitivas são aquilo por meio do que apreendemos os objetos quando estamos conscientes. Por exemplo, quando lembramos de algum objeto, estamos lembrando dele, e não da memória do objeto. [Atenção: Adler não usa aqui a palavra "idéia" da mesma maneira que o faz na expressão "grandes idéias" (great ideas)].

Os que adotam a postura de Locke (aquilo que) acabam se fechando em seus mundos, negando a realidade objetiva ou negando que possamos ter acesso mesmo que indireto a ela. Alguns filósofos tentaram corrigir essa postura, mas apenas intensificaram o erro, pois afirmaram que as idéias seriam representações das coisas objetivas. Mesmo as representações jamais serão os objetos em si, e isso não resolve o problemas, mas apenas o esconde, "enrolando" sua solução. Essa postura separa a realidade em dois mundos, e detona qualquer ponte que porventura possa conectá-los.

Em suma, as pessoas estão diretamente conscientes dos conteúdos mentais somente nos casos em que sentem dores e prazeres. Os demais eventos mentais, as chamadas "idéias", são os meios pelos quais apreendemos os objetos, mas nunca as apreendemos diretamente.

Erro nº 2: nominalismo

O segundo erro é supor que a inteligência não existe e, portanto, os conceitos ou idéias abstratas também não existem.

Adler descreve a inteligência como o meio pelo qual os organismos aprendem com a experiência e modificam seu comportamento de acordo com ela. Dado que os insetos, por exemplo, não modificam seu comportamento, conclui-se que eles não têm inteligência, mas apenas instintos. Quanto mais superior for o animal, tanto mais inteligência terá. Adler acredita que, a rigor, os homens não têm instintos, pois são desprovidos de um padrão inato de comportamento e estão constantemente mudando seu comportamento ao longo da história. Ele não nega que o homem possua inclinações e tendências natas, mas acredita que o homem é capaz de superá-las e agir a despeito delas.

A idéia de que a mente humana é puramente sensorial é defendida por Locke, Berkeley e Hume, enquanto o ponto de vista de que a mente possui um elemento intelectivo, e não apenas sensorial, é defendido por Platão, Aristóteles, Descartes, Kant e Hegel. Este ponto de vista tradicional, também defendido por Adler, é de que os sentidos são responsáveis por imaginar, lembrar e perceber, enquanto o intelecto é responsável por entender, julgar e raciocinar.

Afinal, temos ou não temos idéias abstratas (conceitos) para além da percepção sensorial?

Os nominalistas afirmam que palavras como "cão" são nomes gerais, pois aplicamos a vários particulares de maneira um tanto indiferente. Adler acredita que os nominalistas estão errados no momento mesmo em que enunciam sua hipótese: ora, se somos capazes de distinguir algo nos múltiplos entes e damos a todos o nome de "cão", isso significa que aí mesmo a própria premissa de que não há conceitos abstratos foi podada.

Por outro lado, Adler acredita que Platão exagerou ao propor que os conceitos possuem existência à parte de seus objetos e da mente humana: os chamados arquétipos universais. Tal explicação não é necessária para rejeitar o nominalismo ou explicar a realidade das coisas e, portanto, é descartável.

Hobbes, Hume e Darwin achavam que, por causa da inexistência da inteligência, os homens diferem-se dos animais apenas em grau, não em tipo. Algumas pesquisas psicológicas modernas afirmam que os animais também apreendem conceitos. É uma conclusão errada, pois "conceito" implica em saber diferenciar certos tipos de objetos de outros tipos de objetos, e não um objeto de outro objeto. Portanto, a inteligência animal é totalmente sensorial, perceptual. O conceito está na cabeça do pesquisador, e não no animal.

Erro nº3: subjetivismo e nominalismo lingüísticos

O terceiro erro é derivado dos dois erros acima e afetam o campo da lingüística.

Adler explica que um signo instrumental pode tanto ser um signal (como nuvens carregadas no céu, prevendo uma tempestade, por exemplo) quanto um designador (a palavra "cão", por exemplo), ou mesmo ambos ao mesmo tempo (a palavra "fogo" quando berrada no interior de um cinema lotado). Os signos instrumentais sempre possuem existência perceptual própria. Um signo formal (ou signo puro), por outro lado, é aquele do qual não temos nenhuma percepção sensorial.

Neste contexto, Locke foi incapaz de explicar como nos comunicamos com palavras, pois ele achava que as palavras não podem designar coisas que, afinal, não somos capazes de conhecer. Lembre-se dos erros nº 1 e 2 acima. O erro de Locke é corrigido sabendo que as idéias abstratas são signos formais, ou seja, elas não têm significado ou adquirem significado ou ganham ou perdem significado. As idéias são significados. A comunicação se dá, portanto, por meio da associação de signos instrumentais com signos formais. Quando digo "cão", esta palavra não apenas designa um objeto real, mas desperta no interlocutor o signo formal que também tenho em minha mente.

Os animais se expressam apenas por meio de signais, e nunca por designadores. Os cientistas que acham que os animais têm conceitos ignoram a diferença entre pensamento perceptual e pensamento conceitual. Os "conceitos animais" têm apenas aparência conceitual.

Os lingüistas modernos deixaram-se levar pelo erro de que as palavras designam apenas e tão-somente os existentes fisicamente presentes no mundo. É por isso que a lingüística moderna em geral limita-se a pesquisar os usos das palavras, em vez de procurar explicar o significado léxico delas.

Erro nº4: positivismo e idealismo

O quarto erro é achar que a filosofia não alcança conhecimento genuíno, ou seja, que a filosofia é um exercício sofisticado de emissão de opiniões pessoais.

Adler explica que o conhecimento é algo sempre verdadeiro. O critério para sua identificação é triplo: certitude, incorrigibilidade e imutabilidade. A opinião, por outro lado, pode ser verdadeira ou falsa. A rigor, apenas as verdades auto-evidentes são conhecimento; por exemplo, declarações auto-evidentes como "o todo é maior do que as partes" ou "um triângulo tem três lados". A opinião somente será conhecimento se relaxarmos um pouco o critério triplo e incluirmos as opiniões cujas evidências são tão fortes que as chamamos de conhecimento "momentâneo". Por fim, restam as "meras opiniões", que são todos os preconceitos, gostos etc., ou seja, tudo aquilo que não possui evidências e/ou razões.

Hume entendia que conhecimento genuíno são somente (1) as abstrações desprovidas de julgamento quanto à sua existência real (matemática e lógica) e (2) os fatos particulares (história e geografia) e os fatos gerais (física e química). Nos séculos XIX e XX, esta postura ganhou o nome de cientificismo ou positivismo.

O julgamento sintético, segundo Kant, é aquele que versa sobre questões de fatos e existências reais, enquanto o julgamento analítico versa sobre definições. Para Hume, os julgamentos sintéticos a priori não existem, pois dependem de uma experiência sensório-perceptual anterior. Mas Kant, de maneira revolucionária, julgava que, sim, tais julgamentos existem, e para tanto dotou a mente humana de formas transcendentais de apreensão sensorial, ou seja, de intuições, e de categorias transcedentais de entendimento. São essas formas e categorias que moldariam a experiência que temos. Kant achava que elas explicam a certitude e a incorrigibilidade da geometria euclidiana e da física newtoniana, o que se mostrou posteriormente falso. Kant chegou a um extremo que Locke e Hume não chegaram: substituir o realismo pelo idealismo. A única coisa, segundo Kant, que é independente da mente é a Ding an sich (a coisa-em-si), mas essas coisas-em-si seriam incognoscíveis. Em outras palavras, a verdade é incognoscível.

Para Adler, as teorias científicas e filosóficas devem ser refutáveis de três maneiras: (1) pela experiência, (2) pela argumentação racional e (3) pela combinação dos fatores (1) e (2). Se nenhuma dessas maneiras se aplicarem, então a opinião não deve ser promovida a conhecimento, mas deve permanecer no estágio de "mera opinião".

Erro nº5: hedonismo e imperativo categórico

O quinto erro é considerar que todas as regras morais são opiniões pessoais.

Os hedonistas igualam bem com prazer. Fica claro o relativismo e o subjetivismo que isso implica. Amizade, saúde, riqueza, conhecimento, sabedoria etc., nesse contexto, não seriam bens. Os hedonistas, entre os quais Epicuro e John Stuart Mill, erram ao não distinguir entre prazer sensual e a satisfação de termos nossos desejos atendidos.

Hume estava certo quando afirmava que uma conclusão prescritiva não pode ser derivada de uma premissa descritiva. No entanto, como ele não conseguiu descobrir a saída para esse dilema, acabou tornando-se um dos maiores responsáveis pelo ceticismo moderno.

A solução de Kant foi em uma direção radicalmente oposta: ele tentou transformar as obrigações morais em coisas totalmente independentes dos desejos e totalmente desprovidas de referências ao mundo real, sobretudo à natureza humana. O imperativo categórico é, no final das contas, uma lei moral a qual a razão deve se conformar, como se o imperativo categórico fosse uma verdade auto-evidente. Mas ele, na verdade, (1) não é auto-evidente e (2) resume-se à regra de ouro, que é uma recomendação vazia; afinal, o que deveríamos desejar que os outros fizessem conosco?

Adler ensina que o mandamento prescritivo é correto quando se conforma ao desejo correto. Mas o que devemos desejar? Há dois tipos de desejo: (1) desejos naturais (needs) e (2) desejos adquiridos (wants). Portanto, "devemos desejar aquilo que é realmente bom para nós, e nada mais". Trata-se de uma verdade auto-evidente, pois não podemos pensar o contrário disso.

Por fim, Adler entende que alguns bens realmente bons não são tão bons quanto outros. Por exemplo: prazer sensual e riqueza são bons com moderação, enquanto o conhecimento nunca existe em excesso.

Erro nº6: relativismo moral

O sexto erro consiste em considerar a felicidade como um estado psicológico, como mero "estar contente", e não um estado ético da "vida bem vivida". Essa postura acarreta o relativismo moral, ou seja, a recusa de que haja uma filosofia moral possível.

Felicidade é um fim último, que deve ser almejado em prol de mais nada. A felicidade é o bem completo, a soma de todos os bens, o bem total. Neste contexto, devemos entender que os desejos não podem se resumir a desejos do tipo wants, senão a felicidade seria apenas um bem passageiro.

Concebida como a qualidade moral de uma vida íntegra, as pessoas encontram dificuldade em aceitar que a felicidade não é algo desfrutável. A felicidade não é algo que se alcança e, depois, descansa-se nela por um tempo. Os filósofos modernos se esquecem da seguinte distinção:
  • Objetivo terminal: tem término (por exemplo, uma escultura).
  • Objetivo normativo: existe somente em um todo temporal (por exemplo, a excelência de um compositor).

Erro nº7: determinismo

O sétimo erro consiste na recusa em admitir que a vontade humana é livre.

A livre vontade consiste na possibilidade de poder escolher outra coisa ou outro curso de ação, a despeito do que tenha sido escolhido no momento.

Os defensores do livre arbítrio situam a ação da vontade fora do domínio físico. É isso que os deterministas não entendem. A vontade é um apetite (ou potência) intelectual, e não sensorial. O intelecto e a vontade são imateriais.

Os atos do intelecto são (1) necessitados, no sentido de que são necessários e incontornáveis quando confrontados com conhecimento genuíno, como as verdades auto-evidentes e as proposições além da dúvida razoável, ou são (2) arbitrários, no sentido de que são contingentes e contornáveis quando confrontados com as meras opiniões. Similarmente, os atos da vontade são necessitados (buscar a felicidade enquanto totum bonum) ou arbitrários (os demais bens). O fato da livre vontade ter sua causa indeterminada não significa que a vontade aja por acaso. Mas os defensores da livre vontade precisam entender que ipso facto a realidade não se resume ao mundo físico.

Erro nº8: igualitarismo

Os membros da espécie humana não têm uma natureza comum da mesma maneira que as espécies animais têm uma natureza comum. Os homens têm a mesma potencialidade. Por exemplo, o discurso sintático é uma potencialidade actualizada de maneiras distintas nos diversos subgrupos humanos. As diferenças entre as línguas são superficiais se comparadas à potencialidade de aprender e falar aquela língua. nas demais espécies. As diferenças são características determinadas, sejam elas fisiológicas, anatômicas, comportamentais etc.

Em suma, os homens possuem uma potencialidade inata e determinável; enquanto os animais são determinados.

Como todos os homens têm a mesma natureza, não há como um homem ser inferior a outro por natureza, mas apenas por privação familiar, educacional e/ou cultural. Isso evita os diversos preconceitos.

Erro nº9: contrato social

Homens e animais são naturalmente gregários. Mas os animais são gregários no sentido de que são geneticamente determinados. Os homens não, pois suas sociedades, neste caso, seriam rigorosamente iguais.

O maior erro político é o contrato social. Há dois mitos fundamentais a esse respeito: (1) o "estado natural" anárquico, de completa autonomia, (2) os homens, insatisfeitos com esse estado, resolveram de comum acordo fundar formas de governo. Trata-se de um absurdo, e basta pensarmos nos recém-nascidos, que jamais conseguiriam cuidar de si próprios. O erro, portanto, se corrige sabendo que as famílias e tribos se formam naturalmente para a preservação da vida (need) e que governos se formam naturalmente para viver uma boa vida (need), ou seja, uma vida moralmente boa.

Neste contexto, há dois erros modernos: (1) assumir que viver em um governo implica em preservar a mesma liberdade que havia antes, no estado natural (tal afirmação é evidentemente contraditória), o que pode levar a (2) achar que os homens podem viver harmoniosamente sem governo (Kropotkin, Bakunin, Marx, Lênin).

Erro nº10: materialismo metafísico

Quando uma coisa muda, não importa de que maneira se dê essa mudança, ela deve permanecer a mesma coisa durante esse processo de mudança. Caso contrário, como poderíamos falar que esta coisa está mudando? Sem esta identidade identificável, o ser humano, que obviamente também muda, não poderia ser responsável por seus atos, moralmente falando.

O que acontece com nossa identidade, se não passamos de um amontoado de partículas físicas mutantes? Trata-se do erro do reducionismo, segundo o qual as partículas são a maior e verdadeira realidade.

Werner Heisenberg reconhece que há diferentes graus de realidade. Para ele, "os átomos e partículas elementares não são tão reais; elas formam um mundo de potencialidades ou possibilidades ao invés de um mundo de coisas e fatos". Portanto, enquanto a cadeira existe, suas partículas existem apenas virtualmente. A existência virtual não significa que sua capacidade de existência actual esteja anulada. Se explodíssemos uma cadeira em seus elementos constituintes, essas partículas elementares assumiriam o modo de existência actual, como ocorre em um cíclotron.

Portanto, as coisas individuais e perceptíveis de nosso cotidiano têm um grau de realidade actual superior.

9 de agosto de 2010

Inteligência e conhecimento


Somente as pessoas santas são, por causa de sua pureza, espiritualmente inteligentes. Esta era a inteligência natural do homem antes da Queda. O mero exercício intelectual não basta para que as pessoas purifiquem sua inteligência, pois, desde a Queda, a inteligência humana encontra-se corrompida por pensamentos malignos. O espírito materialista e verborrágico da sabedoria deste mundo permite que versemos sobre as mais diversas esferas de conhecimento, mas também acaba tornando nossos pensamentos cada vez mais toscos e grosseiros. A combinação da dialética bem-intencionada com os pensamentos toscos não chega nem perto da verdadeira sabedoria e da verdadeira contemplação, muito menos do conhecimento indiviso e unificado.

A expressão "conhecimento da verdade" significa, acima de tudo, a apreensão da verdade mediante a graça. Os outros tipos de conhecimento devem ser considerados como sendo meras imagens de intelecções ou demonstrações racionais de fatos.

Fonte: São Gregório do Sinai, Philokalia, On Commandments and Doctrines, Warnings and Promises; on Thoughts, Passions and Virtues, and also on Stillness and Prayer: One Hundred and Thirty-Seven Texts

2 de agosto de 2010

Justificar o pecado é pior do que cometê-lo


No verão de 2003, o Diácono Rados Mladenovic relatou um encontro recente que havia tido com o primaz da Igreja Ortodoxa Sérvia, o Patriarca Pavle. Eis o que ele contou:

Nosso santo patriarca Pavle (1914-2009) visitou recentemente a cidade de Vrnjačka Banja, e fui até lá para cumprimentá-lo. Perguntei-lhe: "Como vai, Sua Santidade?"

"Muito bem", respondeu-me, e, voltando-se para as monjas, disse-lhes: "Sirvam o diácono e tragam o lanche".

As monjas de Zica sabiam que o Bispo Estêvão sempre me concedia o privilégio de tomar uma dose de conhaque quando eu o visitava em seu gabinete. Elas então trouxeram o café e perguntaram: "Sua Santidade, podemos servir uma dose de conhaque ao diácono?" O patriarca ficou em silêncio. "Sua Santidade, podemos trazer o conhaque para o diácono?" O patriarca continuou mudo.

Para quebrar o gelo, disse: "Sua Santidade, na minha cidade, dizem que um café sem conhaque é como um homem morto sem vela".

"Este é o problema, meu caro diácono", disse-me o patriarca, "o maior pecado não é quando o cometemos, mas quando tentamos justificá-lo!"

1 de agosto de 2010

O demônio da distração



O autor defende a idéia de que uma das características mais marcantes da modernidade é a distração crônica. É como se o próprio objetivo de vida das pessoas fosse distrair-se incessantemente, pulando de programas de TV a músicas pop a internet a leituras superficiais a video games e novamente a programas de TV etc. Esse tipo de comportamento produz o vício da distração (distractedness), cujo efeito é dissipar as energias mentais, reduzindo abruptamente a capacidade de concentração do indivíduo.

Ocorre que a falta de concentração não implica apenas em incapacidade para concentrar-se em problemas teóricos ou práticos, sejam questões filosóficas ou problemas mais ligados à vida profissional e familiar, mas implica, acima de tudo, em uma certa insensibilidade perceptiva para as coisas que transcendem o mundo psicofísico que cerca o indivíduo. E essa insensibilidade porta conseqüências que vão muito além de  prejudicar a vida de "sucesso" profissional ou social. Na verdade, as conseqüências acompanham o indivíduo depois da morte. Este assunto é tão importante que Smith não deixa de expressar grande surpresa ao constatar que as autoridades eclesiásticas raramente ou nunca versam sobre ele.

Os leitores cristãos ortodoxos certamente já ouviram falar da expressão "dispersão do noûs". Há diversas passagens das Sagradas Escrituras que indiretamente lidam com esta questão. Por exemplo, em Mateus 12:30, Jesus Cristo afirma que quem comigo não ajunta, espalha. Embora tradicionalmente aquele que não ajunta é Satanás, quem comigo não ajunta pode ser o próprio homem, enquanto espalha pode ser as múltiplas potências da alma do homem. Em Mateus 7:13-14, Cristo também diz: Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela. E porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem. A porta estreita e o caminho apertado podem ser entendidos como sugestões à concentração.

Lembre-se de que a concentração mencionada não se refere apenas à concentração racional, filosófica, mas à concentração espiritual, ao recolhimento do noûs de volta ao coração místico, ao verdadeiro centro do homem. Este recolhimento é mencionado por Jesus Cristo: Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai que está em secreto (Mateus 6:6). Ademais, a literatura patrística deixa claro que o aposento não é apenas um lugar fisicamente isolado e afastado, embora tal conotação também esteja implícita, mas significa também o coração humano, o olho da alma, a consciência superior. É por isso que a vida espiritualmente sadia é inversamente proporcional ao grau de distração no qual se encontra o noûs humano. Quanto mais disperso o noûs, menos apegado estará à sua verdadeira identidade espiritual.

Desde a Queda, a raça humana apresenta um tipo de tendência pecaminosa que é muito mais sutil do que, por exemplo, os pecados ligados à concupiscência da carne. A natureza sensorial humana, aliada à imaginação, tagarela em voz alta dia e noite, sem parar, causando grande agitação e distúrbio à alma e ao espírito. É uma espécie de herança infernal, um verdadeiro "demônio da distração", ao qual, mais do que nunca, o homem moderno está sujeito.